O que o mundo precisa aprender com a pandemia

Jornalista ICH

“O relaxamento do isolamento seria uma catástrofe total e absoluta. As previsões são apavorantes”, afirma Eduardo Massad, nesta entrevista concedida à Ciência Hoje em meados do mês de maio. Suas projeções se baseiam em uma área que, só agora, durante a pandemia de covid-19, muitos brasileiros começaram a conhecer: a epidemiologia matemática. É a partir dela que governos do mundo todo estão traçando suas estratégias para conter a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. De sua casa, onde está isolado, o médico, físico, professor emérito de Informática Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas (FGV) acompanha todos os dados, prestando consultoria ao Instituto Butantan, que assessora o governo do Estado de São Paulo, e trabalhando de perto com o governo do Piauí. Ele considera que o mundo voltará ao normal depois da covid-19, mas que a chegada de outra epidemia, ainda mais letal, é provável.

CIÊNCIA HOJE: Como a epidemiologia matemática pode ajudar a combater a pandemia? Ela tem sido usada na elaboração de políticas públicas?

EDUARDO MASSAD: Quando aparece uma doença como essa, as autoridades de saúde ficam mais ou menos perdidas, sem saber o que fazer porque é tudo muito novo. Nessas condições, a única coisa que resta é lançar mão desses modelos matemáticos para fazer projeções. Se você quiser saber, por exemplo, quando os leitos de UTI vão saturar em São Paulo, não adianta pegar os dados registrados até agora, traçar uma curva e tentar estender essa curva infinitamente para fazer projeções porque não é assim que a epidemia se comporta. Então, precisa ter um modelo que não só explique o que está sendo observado até agora, mas que tenha capacidade de fazer predições. É isso que temos feito, projeções sobre o número de casos, de mortes, de leitos de UTI, quantidade de respiradores etc., para ajudar quem vai tomar as decisões.


Cada estado, cada prefeitura está traçando a sua estratégia sem coordenação central. Estamos num barco completamente à deriva se depender do Ministério da Saúde

CH: Em que lugares a modelagem matemática está sendo usada de forma mais eficiente nesta epidemia? O Brasil é um deles?  

EM: Quem mais usa esse tipo de modelo é o Reino Unido, onde todas as decisões são tomadas a partir disso. Aqui em São Paulo, estamos trabalhando junto com o Instituto Butantan, que está assessorando o governo do estado a elaborar suas estratégias de contenção da epidemia. Em relação ao governo federal, esses modelos deveriam estar sendo usados. O que estamos observando na instância federal é que o Ministério da Saúde está completamente perdido, não está conseguindo coordenar as ações, e isso fragmentou completamente o trabalho, o que é péssimo. Cada estado, cada prefeitura está traçando a sua estratégia sem coordenação central. Estamos num barco completamente à deriva se depender do Ministério da Saúde.

 

CH: Hoje expressões como “achatar a curva” entraram no vocabulário popular. Quais os conceitos importantes, como crescimento exponencial e taxa de contágio, o público geral deve saber?

EM: Toda epidemia nova quando chega numa população virgem da doença cresce como uma exponencial. Uma exponencial é aquele crescimento em que o número de casos não acompanha o tempo de uma forma linear. Num crescimento linear, quando dobra o tempo, o número de casos dobra junto. No crescimento exponencial, quando você dobra o tempo, o número de casos mais do que dobra. Ou seja: a epidemia cresce muito rapidamente como uma curva. Mas ela não cresce indefinidamente porque, chega uma hora, em que não tem mais população suscetível para pegar essa doença. O Brasil ainda está na fase de crescimento exponencial. O achatamento da curva, na verdade, é da curva epidêmica, não é a curva de casos acumulados, mas de casos novos, o que se chama de incidência. A curva de incidência é o número de casos novos por dia e tem a forma de um sino. Quando você diminui o contato entre as pessoas, esse sino fica mais baixinho e gordinho. A curva se achata, mas o pico dela vai parar lá na frente. Então se, sem medidas de distanciamento, teríamos um pico agora em maio, com 50% de distanciamento, esse pico vai parar em julho, achatando a curva de modo que o sistema de saúde possa dar conta da demanda. Tudo isso está relacionado à reprodutibilidade, ou seja, quantos casos cada pessoa infectada é capaz de gerar na população. Quando a doença apareceu no Brasil, cada caso gerava 3,5. Hoje em dia, cada caso produz 1,7. Tudo que a gente tenta fazer, ao tomar as medidas de mitigação, é para que essa taxa caia para abaixo de 1. De modo, que 1 caso não é capaz de gerar nenhum outro, e, nessa condição, a doença vai desaparecer. Ela cai rapidamente e desaparece. É por isso que é tão importante chegarmos ao distanciamento social acima de 70%.


Estamos vivendo um período de obscuridade. Não é só a matemática que está sendo atacada, é toda a ciência. Temos que mostrar a realidade dos fatos para quem vai tomar a decisão

CH: O já famoso estudo do Imperial College fez a Grã Bretanha e os Estados Unidos mudarem suas políticas de combate à covid-19. A mesma instituição previu um milhão de mortes para o Brasil, caso medidas não fossem adotadas. Muitos negacionistas atacam esse estudo e a adoção de medidas de isolamento com o argumento de que o número de mortes será menor. O movimento anticiência não costumava atacar a matemática, mas isso está acontecendo. Como vê esse cenário?

EM: O modelo do Imperial College é o mesmo que todos estão usando, porque a doença é uma só. Caso nada tivesse sido feito, a julgar pelo início da curva epidêmica, poderíamos chegar, sim, a mais de um milhão de mortos no Brasil. Hoje estamos chegando perto de 50% de distanciamento social. O número de mortos em outros países caiu muito porque medidas foram tomadas. O próprio Reino Unido conseguiu baixar a reprodutibilidade da doença a menos que 1, que é o limiar que se tem como resultado do lockdown. Enquanto isso não acontecer aqui, vamos ter centenas de milhares de mortos. Não há dúvida em relação a isso. O que significa que o lockdown, de verdade, vai ter que ser adotado em algum momento, principalmente, em São Paulo. Eu faço esse tipo de trabalho há quase 40 anos. De fato, a gente não costumava ser tão atacado quanto agora. Estamos vivendo um período de obscuridade. Não é só a matemática que está sendo atacada, é toda a ciência. Temos que mostrar a realidade dos fatos para quem vai tomar a decisão. Se quem toma a decisão se alinha a esses grupos, fica muito mais difícil. Cada vez que alguma autoridade faz um pronunciamento que vai contra o que a ciência diz, há um acréscimo no número de mortos. Nós temos que nadar contra essa corrente.

 

CH: O Brasil padece de um problema de subnotificação. Como confiar em modelos que usam dados com muita incerteza? 

EM: Alguns dados têm uma incerteza menor; outros, maior. Ao mesmo tempo em que estamos montando esses modelos, existem trabalhos de campo, levantamentos empíricos que vão fornecendo dados mais confiáveis. Por exemplo, o estado de São Paulo está iniciando um programa de testagem gigantesco, para milhões de pessoas. Isso vai permitir ter uma ideia muito mais próxima do número de casos e, principalmente, da letalidade. Conforme esses dados vão chegando, vamos corrigindo o modelo. O modelo nada mais é do que um reflexo da realidade. Se o dado é ruim, o resultado do modelo é ruim. A alternativa é não fazer modelo nenhum, mas aí você fica no escuro.


Teremos estimativas razoáveis, principalmente se passada a onda epidêmica, o número de mortes voltar aos níveis basais pré-epidemia. Mas nunca saberemos com exatidão quantas pessoas terão morrido

CH: Apesar da subnotificação, será possível calcular o número real de mortes por covid-19? Uma opção é comparar as taxas de mortalidade antes e durante a pandemia?

EM: Se teve uma diferença significativa em relação a uma série temporal, você pode atribuir perfeitamente o aumento das mortes à covid-19. É assim que surgem essas projeções que podem duplicar ou triplicar o número de mortos. E acredito que é isso que está acontecendo. Teremos estimativas razoáveis, principalmente se passada a onda epidêmica, o número de mortes voltar aos níveis basais pré-epidemia. Mas nunca saberemos com exatidão quantas pessoas terão morrido.

 

CH: Há semelhança com pandemias anteriores, como a gripe espanhola, peste negra ou Aids?

EM: Todas essas doenças, em algum momento na história da humanidade, se estabeleceram de uma forma pandêmica e com altíssima letalidade. A varíola é um exemplo disso também. E qual é o paralelo que podemos traçar? Por um lado, esse vírus é diferente de tudo que já vimos. Tem algumas características que fizeram com que se estabelecesse como uma pandemia de fato: uma transmissibilidade muito alta e uma mortalidade também importante. Mas a principal característica que está causando muito problema é que uma fração não desprezível dos infectados precisa de suporte da UTI, respirador mecânico… E isso satura o sistema de saúde. Mas esse vírus não vai chegar aos níveis de letalidade da gripe espanhola, porque, quando ela apareceu, em 1918, a ciência estava engatinhando nessa área, e as condições de higiene eram muito ruins. As pessoas morriam de pneumonia por infecção bacteriana secundária porque não havia antibiótico. Hoje em dia, o H1N1, o vírus da influenza que causou a gripe espanhola, é muito mais brando do que o novo coronavírus. Estou convencido de que precisamos tirar um grande aprendizado dessa pandemia. A covid-19 ainda não é a pior das pandemias que pode assombrar nossos piores pesadelos. Acho que chegaremos a entre cinco e dez milhões de casos e mais de um milhão de mortos no mundo. Mas isso está longe de ter um impacto na demografia. Morrem, por ano, cerca de 60 milhões de pessoas por todas as causas. Se a covid-19 conseguir matar um milhão a mais, é um impacto pequeno no total. É possível que, em algum momento, venha algo até pior.

 

CH: Essa próxima grande epidemia, ainda mais letal, pode ser também uma infecção respiratória provocada por vírus zoonótico, como a covid-19?

EM: Eu tenho quase certeza de que, se vier, será uma zoonose de transmissão respiratória, um vírus com altas taxas de mutação e transmissão, e letalidade acima de 50%, bem maior do que a covid-19. O que chegou mais perto até hoje foi a gripe aviária, H5N1, que infectou um número pequeno de pessoas, mas não conseguiu uma mutação para passar de pessoa para pessoa. Para pegar o H5N1, tinha que ter contato com uma ave infectada. Se um vírus desse tipo sofresse uma mutação para transmissão entre humanos, aí, sim, estaríamos diante de uma pandemia de proporções dantescas.

 

CH: Quando fala que a covid-19 pode ser um aprendizado para essa doença mais letal, a que está se referindo?

EM: Os países que sofreram com a SARS em 2003, lá no sudeste asiático, foram os que lidaram melhor a covid-19, porque aprenderam com aquela epidemia. Nós vamos aprender a ter distanciamento social, a ter reserva de respirador, de leitos de UTI. Agora, tudo isso depende de quanto tempo vai levar para chegar uma nova pandemia. Se for daqui a 50 anos, essa experiência se perderá. Se for nos próximos 10 anos, muita coisa que aprendemos agora, vai servir para enfrentar algo, talvez, pior.

 

CH: Das doenças emergentes, quais as mais ameaçadoras?

EM: A família dos coronavírus é, particularmente, preocupante. O MERS-CoV, lá do Oriente Médio, tem uma letalidade que pode chegar a 50% dos infectados. Ele não conseguiu compensar com uma transmissibilidade suficientemente alta. Um vírus que mata muito tem que se transmitir mais ainda para causar um estrago grande na população. Essas zoonoses das famílias da influenza ou mesmo dos coronavírus são os candidatos mais naturais. Li outro dia que os morcegos albergam mais de cinco mil tipos de coronavírus. Não custa nada um desses sofrer uma mutação e passar a se transmitir entre os humanos.

 

CH: Há possibilidade de uma “segunda onda” da covid-19? 

EM: Não sei dizer ainda. O que acho é que a doença veio para ficar, não vai desaparecer como a SARS de 2003. Acredito que ela vai voltar a cada ano, mais ou menos, no padrão da gripe. Com duas vantagens. A primeira é que, no próximo ciclo, provavelmente, teremos uma vacina. E a segunda é que, com o passar do tempo, o vírus ficará mais brando. Isso é uma particularidade da evolução natural dos vírus em geral. Então, é provável que, em algum momento, essa doença não cause tantas fatalidades nem tantos casos que precisem de UTI. Portanto, sim, pode ter um segundo pico da doença, dependendo das medidas de isolamento durante o do surto. Quando esse surto passar, é provável que ocorra um caso aqui e acolá, enquanto esperamos a vacina.


Não tenho cálculo sobre isso, é só uma opinião, mas acho que, daqui a uns seis meses, estaremos com uma vida perto do normal. Mas muita gente vai morrer até lá

CH: Se não chegar uma vacina, quando o mundo voltará ao normal? Ou melhor, voltará ou mudará radicalmente, como muitos têm previsto?

EM: É um exercício de futurologia, mas acho que voltará praticamente ao normal. Não acredito nessas previsões catastróficas. O mundo já passou por coisa pior. A varíola, só no século 20, matou 500 milhões de pessoas, e o mundo continuou rodando do mesmo jeito. Não tenho cálculo sobre isso, é só uma opinião, mas acho que, daqui a uns seis meses, estaremos com uma vida perto do normal. Mas muita gente vai morrer até lá.

 

CH: A partir da Aids, já se falou que a história do nosso tempo seria marcada pelo aparecimento de novas doenças sucessivamente. Concorda? Isso estaria relacionado à destruição ambiental?

EM: Não cabem mais de 7 bilhões de pessoas no mundo. Já passamos do limiar para ter uma vida razoável. Com a promiscuidade que certas populações têm com a vida selvagem, mesmo com animais domésticos, é inevitável que as zoonoses acabem atravessando essa ponte para a espécie humana. Estamos vendo isso acontecer. A cada três ou quatro anos, aparece uma nova zoonose, nenhuma com a ferocidade desse coronavírus, mas outras virão. Com essa densidade populacional que só cresce e com a destruição do meio ambiente, é inevitável haver uma consequência maior. Será difícil haver uma mudança de comportamento tão cedo, porque estamos vendo uma onda de retrocesso político em escala global com esse tipo de postura muito mais de direita e hipernacionalista que entra em guerra com a ciência.

 

CH: A próxima pandemia pode surgir no Brasil, diante da devastação ambiental?

EM: O Brasil é um país tropical, e há muitos vírus tropicais zanzando por aí. Alguns bastante graves. Seria um exercício de futurologia apostar nisso. Mas o Brasil está numa escalada de destruição do meio ambiente e de negação da ciência que eu não ficaria surpreso se aparecesse uma coisa dessa natureza aqui.

Valquíria Daher

Jornalista
Instituto Ciência Hoje

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