Os desafios da Capes na expansão da pós-graduação

Jornalista, especial para o ICH

Diretor de Avaliação da instituição, o físico Antonio Gomes explica iniciativas para aumentar a equidade na distribuição de bolsas e comenta mudanças na classificação de artigos científicos

CRÉDITO: FOTO: DIVULGAÇÃO/ NAIARA DEMARCO (CGCOM/CAPES)

Das 23 cidades brasileiras que possuíam pós-graduação stricto sensu em 1970 aos 330 municípios com programas de mestrado e doutorado hoje no Brasil, são mais de cinco décadas de diferentes políticas e desafios. Hoje, ao lado de expandir a oferta, urge a tarefa de melhorar a qualidade dos programas e a distribuição de bolsas, equipamentos e verbas, sobretudo nas regiões assimétricas. “Sabemos que é preciso capilarizar a oferta de pós-graduação, e a dimensão do investimento é importante”, diz Antonio Gomes, diretor de Avaliação (DAV) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao Ministério da Educação (MEC).
Em entrevista à CH, Gomes, que é professor titular do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC), comenta as novidades para o próximo ciclo avaliativo da Capes que, por um lado, visam a aumentar a inclusão, com aposta em programas que estimulam a equidade e, por outro, buscam se aproximar das necessidades de cada região, com pós-graduações mais temáticas. “O objetivo é alinhar a agenda construída com as instituições e governos e com o setor produtivo não acadêmico, e daí confrontar com o que ofertamos hoje e o que as realidades de cada estado demandam”, conta ele, que foi bolsista da Capes.

CIÊNCIA HOJE: O sistema de pós-graduação avançou bastante desde os anos 1960 no Brasil. Ainda assim, o país está abaixo da média da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na formação de mestres e doutores. Qual é o panorama atual do setor no Brasil?

ANTONIO GOMES: Parte da missão da Capes é acompanhar, avaliar e fomentar o Sistema Nacional de Pós-graduação nos cursos de pós-graduação stricto sensu, ou seja, de mestrados e doutorados. Atualmente há cerca de 4.700 programas de pós-graduação no Brasil. Se detalharmos por curso de mestrado e doutorado, são quase 7 mil espalhados por todas as regiões do Brasil. É um avanço significativo. Em 1970, tínhamos pós-graduação stricto sensu em 23 cidades brasileiras. Hoje são 330 municípios, resultado de diferentes políticas ao longo do tempo. Uma delas foi o FNDCT, o Fundo Nacional de Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia, que em determinado momento passou a destinar ao menos 30% dos recursos a propostas de instituições nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Tivemos a expansão das universidades federais para o interior, a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). E os estados se estruturaram com suas Fundações de Amparo à Pesquisa. Tudo isso permitiu que a pós-graduação se capilarizasse não só em quantidade, mas em qualidade. Em 2004, Rio de Janeiro e São Paulo respondiam por 60% de toda a produção científica brasileira. Em 2024, a situação se inverteu a favor dos demais estados da federação, com Rio e São Paulo contabilizando ainda 40% do total. Temos cerca de 320 mil matriculados na pós-graduação stricto sensu, com 180 mil docentes envolvidos e uma capacidade de formação anual de 92 mil mestres e doutores. Claro que temos o desafio da assimetria. Os programas e as notas mais altas ainda se concentram na região Sudeste.

CH: Como é feita a distribuição dos programas e bolsas pelo país? Pesquisadores citam frequentemente a falta de investimentos em regiões específicas. Como garantir maior equidade nesse sentido?

AG: A Capes lançou um modelo de distribuição de bolsas que está em aprimoramento e revisão e busca corrigir algumas situações históricas. Ele contempla o desempenho do programa, mas também o IDH local, a localização da instituição e o percentual de utilização das bolsas concedidas. Recentemente, a Capes também retomou o programa Pró-Equipamentos, que destina 46% do total de recursos para aquisição de equipamentos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Lançou ainda um programa institucional de pós-doutorado com critérios específicos em que programas nota 5 (as notas vão de 1 a 7) dessas regiões são contemplados com bolsas. A Capes também firmou um convênio importante com as Faps da região Centro-Oeste e está em discussões com Faps das regiões Norte e Nordeste para potencializar investimentos. E, numa revisão de processos de avaliação, adotou indicadores mais flexíveis, sem renunciar à qualidade, para abertura de novos cursos em regiões de maior assimetria.

A Capes lançou um modelo de distribuição de bolsas que está em aprimoramento e revisão e busca corrigir algumas situações históricas

CH: Qual é a importância de um olhar diverso e quais os benefícios de mais investimentos nas regiões e nos perfis menos atendidos no país?

AG: O Brasil é um país gigantesco, e um olhar diferenciado para as regiões e suas realidades permite aproveitar o potencial dessa diversidade. A avaliação teve um efeito colateral ao longo do tempo, que foi movimentar o sistema numa direção contrária à diversidade. Os indicadores e a forma como avaliamos ao longo do tempo, em grande medida, uniformizam os programas. Isso não necessariamente limita o perfil dos pesquisadores que integram o programa, mas, de alguma forma, uniformiza muitos processos de formação e investigação. Como todos prestam muita atenção à avaliação, ela acaba se tornando o objetivo e não a consequência do que é feito. Temos trabalhado essas questões para, no próximo ciclo de avaliação, ter um redirecionamento para programas que identificam, desde seu planejamento, qual é seu perfil e sua missão. E é algo que deve ser diferenciado para cada instituição, a partir dos contextos de onde estão localizadas. Também precisamos avançar nas políticas afirmativas que buscam equidade. Não só de gênero, mas outras assimetrias nos corpos discente e docente que não refletem completamente o perfil da nossa sociedade. O próximo ciclo avaliativo traz firme a proposta de que os programas de pós-graduação apresentem suas políticas de equidade e o que estão fazendo para mitigar distorções históricas no objetivo de ter uma pós-graduação mais inclusiva. Isso também entra como elemento avaliativo. A Capes reativou o Comitê Permanente de Ações Estratégicas e Políticas para a Equidade de Gênero, cuja tarefa é sugerir iniciativas para que essas políticas sejam de fato executadas, além de outros programas focados em mulheres cientistas autodeclaradas pretas e pardas e mulheres das áreas de ciências exatas. Também estamos formulando um mecanismo que capta propostas de programas de pós-graduação numa dinâmica mais induzida e menos espontânea. A ideia é ter outro formato, obviamente sem nenhum prejuízo do atual, de pós-graduações mais temáticas, que se alinhem mais à agenda estratégica e às necessidades de uma região ou de um estado.

A avaliação teve um efeito colateral ao longo do tempo, que foi movimentar o sistema numa direção contrária à diversidade. Os indicadores e a forma como avaliamos ao longo do tempo, em grande medida, uniformizam os programas

CH: Como funcionaria isso na prática? Há propostas de como alinhar essa produção científica às necessidades locais?

AG: Em 2023, a Capes visitou todos os estados da federação para construir uma agenda com as instituições e com os governos e saiu com um levantamento muito rico das necessidades locais. A partir desse material, estamos fazendo um estudo para identificar o potencial do sistema atual diante das agendas estratégicas dos estados. Associado a isso está o perfil da indústria em cada um dos estados. O objetivo é alinhar essas agendas, a construída com as instituições e governos e com o setor produtivo não acadêmico. E daí confrontar com o que ofertamos hoje e o que as realidades de cada estado demandam. A partir desse resultado, vamos desenhar as chamadas de programas que contemplem todos esses aspectos. Para citar um caso, foi identificado, a partir dos programas de pós-graduação do Rio Grande do Sul, que uma das grandes necessidades locais é a questão climática. O estado tem uma pós-graduação de excelência, mas falta investimento na formação de pessoas no tema de emergência climática. É um exemplo de características identificadas em cada estado e suas necessidades a partir de uma agenda estratégica local. A conclusão do estudo sairá no fim deste ano.

Estamos fazendo um estudo para identificar o potencial do sistema atual diante das agendas estratégicas dos estados. Associado a isso está o perfil da indústria em cada um dos estados

CH: A Capes anunciou mudanças para 2025 no sistema de classificação dos artigos científicos produzidos no país. Em que consiste essa metodologia?

AG: A mudança preserva o que se tem e amplia as formas de classificação dos artigos. Normalmente, no sistema Qualis (metodologia que faz a classificação da produção científica dos programas de pós-graduação do país) há uma série de indicadores bibliométricos que classificam os periódicos de publicação. Esses indicadores serão mantidos, mas a classificação será dada ao artigo. Entendemos que ele pesa mais do que a revista onde é publicado. Há um segundo procedimento, que, além dos indicadores bibliométricos do periódico, lança também um olhar focado diretamente no artigo, por exemplo, o número de citações. Nesse procedimento é possível também adicionar características qualitativas do periódico, como o fato de estar cadastrado no SciELO, ou outras qualidades editoriais que permitem valorizar as boas revistas nacionais. Nessa configuração, pode haver artigos publicados na mesma revista com classificações diferentes. Os dois primeiros procedimentos têm uma abordagem quantitativa e são apropriados para avaliar a produção total de um programa de pós-graduação, ou um grande número de artigos. O terceiro procedimento é uma análise qualitativa dos artigos, que vai depender de cada área. Algumas áreas de avaliação usam indicadores indiretos, outras usam indicadores diretos do artigo, como o avanço conceitual que ele traz, a aderência às linhas e pesquisas do programa etc. É uma avaliação indicada para um recorte da produção mais destacada do programa. O principal nesse processo é redirecionar o foco de avaliação e classificação para o artigo em si.

CH: Qual é o benefício desse foco maior nos artigos?

AG: O futuro tende a ser a concentração na classificação dos artigos em si, porque as metodologias e ferramentas que medem o desempenho dos artigos, sua relevância, inserção e visibilidade estão cada vez mais comuns nesse arsenal digital de hoje. Antigamente era mais difícil rastrear a repercussão de um artigo. Com a mudança, buscamos valorizar os artigos que de fato são bons, a produção que é relevante. Muitas vezes as pessoas dizem “Ah, mas se publicar em uma revista boa o artigo vai ter relevância”. Na forma do Qualis Periódico, essa valorização é indireta e nem sempre se concretiza. Coloca no artigo um impacto presumido garantido pelo local em que ele está. E depois o tempo pode revelar que não. A classificação do Qualis levou a uma dinâmica negativa para o processo de formação dos recursos humanos e de divulgação da pesquisa. O pesquisador elabora um artigo e busca a lista do Qualis quase como um menu. Isso levou muita gente a fazer divulgação científica ou a própria pesquisa orientada pelo Qualis. Buscando a revista tal “porque é bem classificada”. Isso é negativo, porque o local de divulgação deve ser consequência natural do avanço conceitual da pesquisa. Outros requisitos deveriam vir antes: “Esse é o fórum onde a comunidade discute o assunto que estou trazendo?”. A dinâmica de pesquisa não pode ser ditada pela dinâmica de avaliação. Por isso digo que, para os pesquisadores, não deve mudar nada em suas pesquisas. O que muda são os olhares sobre o que vai ser produzido. Quem faz boa pesquisa sempre vai divulgar em bons lugares e vai ser bem avaliado. O Brasil hoje está como 14º do mundo em produção científica. Se esse sistema de avaliação levasse à qualidade, talvez não estivéssemos na 47ª posição, dentre os 50 países que mais publicam artigos, em termos de impacto da produção. A mudança não resolve toda essa complexidade, mas pode ajudar a mitigar alguns problemas.

O Brasil hoje está como 14º do mundo em produção científica. Se esse sistema de avaliação levasse à qualidade, talvez não estivéssemos na 47ª posição, dentre os 50 países que mais publicam artigos, em termos de impacto da produção

CH: Ao mesmo tempo, existe um desafio de manter os pesquisadores no país. Falta de investimentos e cortes de verbas para manutenção de equipamentos são citadas entre os principais motivos para os cientistas brasileiros optarem por continuar suas pesquisas no exterior. Quais ações são necessárias para fazer frente a essa “fuga de cérebros”?

AG: São aspectos estruturais, que não se resolvem do dia para a noite e demandam um processo de continuidade. A depender dos governos, os programas não são mantidos a médio e longo prazo. A ciência no Brasil é subfinanciada. Sem ampliação, seguiremos na margem de 1% de investimento do PIB no setor. Seria necessário pelo menos dobrar isso, somando recursos públicos e privados. Os países que mantêm a atratividade mínima para a comunidade científica não investem menos de 2%. A carreira também precisa ser mais atrativa. É muito difícil um jovem hoje optar por um programa de pós-graduação, principalmente de dedicação exclusiva, com os valores das bolsas de mestrado e doutorado atuais. E isso acontece mesmo depois do reajuste nas bolsas de 40% concedido no novo governo Lula. Outro ponto é a carga burocrática para a execução de projetos. Os cientistas gastam mais tempo com burocracia do que fazendo pesquisa. A simplificação de processos é necessária. Muitos pesquisadores preferem fazer carreira em outros países onde essa dinâmica é mais flexível.

Os cientistas gastam mais tempo com burocracia do que fazendo pesquisa. A simplificação de processos é necessária. Muitos pesquisadores preferem fazer carreira em outros países onde essa dinâmica é mais flexível.

CH: Qual o benefício para a carreira de um jovem fazer mestrado e doutorado? O mercado de trabalho valoriza esse profissional?

AG: A política pública de bolsas é fundamental no Brasil. Ela transforma as pessoas, nos aspectos individual, cultural, social, econômico. É um mecanismo de promoção social. A manutenção e a ampliação desses programas de bolsas não são um gasto, são investimento, com impacto na sociedade. E a empregabilidade é alta. Um estudo do CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) mostrou que o número de mestres e doutores empregados aumentou nos últimos anos. Os ganhos salariais após uma pós-graduação também são significativos. Para mim, os benefícios são claros. Fui bolsista da Capes no mestrado e no doutorado, incluindo doutorado sanduíche no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Sem essas políticas públicas, inclusive, não estaria na posição que estou. E busco ajudar a fortalecer o sistema que me formou. O investimento na formação de uma pessoa na educação pública básica até o doutorado não é baixo. E esse investimento traz um bom retorno para a sociedade.

CH: Como aproximar a pós-graduação da sociedade que não está na universidade e mostrar os resultados efetivos que vêm das pesquisas?

AG: É um desafio e mais uma tarefa para os pesquisadores. O mundo vive essa crise de desconfiança e negacionismo da ciência. No Brasil, infelizmente, parte da sociedade acha que ciência não é algo importante. Numa pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, mais de 80% dos jovens entrevistados não souberam dizer o nome de uma instituição nacional de pesquisa ou de um cientista brasileiro. Isso passa por questões educacionais e traz um alerta. Será que a ciência e o próprio método científico estão no dia a dia das escolas? Será que no conteúdo ensinado está a informação de que a sociedade se beneficia o tempo inteiro dos resultados da ciência? A Capes tem um programa de investimento na formação de professores para educação básica, no nível de mestrado, para tentar tornar esses aspectos mais presentes. Por outro lado, falhamos no sentido de que nem tudo que fazemos está conectado com a sociedade. E, quando está, não temos capacidade de comunicar bem. As pautas de ciência precisam ser colocadas numa linguagem na qual a sociedade atual se engaje. É um desafio complexo, porque normalmente cientistas não sabem fazer isso. Para a próxima avaliação, estamos incentivando programas de pós-graduação a fazerem um exercício de mostrar e materializar que, sem eles e suas atividades, a sociedade deixaria de ter várias coisas. A popularização da ciência também entra como item avaliativo. Vamos analisar casos de impacto, que demonstram que o que determinado programa faz é percebido de maneira natural na sociedade. Essa construção precisa ser fortalecida.

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