‘PEC das praias’: os riscos da privatização de áreas da União no litoral brasileiro

Jornalista, especial para o ICH

Discussão sobre transferência dos terrenos de marinha a estados, municípios e particulares acende alerta entre ambientalistas, que apontam ameaça à preservação de ecossistemas cruciais para um mundo em emergência climática

CRÉDITO: FOTO CEDIDA PELO ENTREVISTADO

A retomada em maio no Senado das discussões em torno da PEC 03/2022, a conhecida ‘PEC das praias’, é, para o geógrafo marinho e professor da Universidade Federal Fluminense Eduardo Bulhões, nadar contra a corrente da preservação da costa e de ecossistemas cruciais no enfrentamento da mudança climática. Caso aprovada, a proposta de emenda à Constituição passaria a propriedade dos chamados terrenos de marinha a estados, municípios e proprietários privados. Hoje, essas terras junto ao litoral pertencem à União, encarregada de fiscalizar e garantir sua preservação.
“Os terrenos de marinha são ocupados por vegetação de restinga e áreas de mangue, que nos oferecem serviços ambientais que são muito importantes. O primeiro deles é a defesa do litoral frente às ameaças climáticas”, conta Bulhões. Em entrevista à CH, Bulhões enumera ainda os riscos de restrição de acesso livre a praias e de aumento de ocupação desordenada no litoral, caso a medida avance. “Deveríamos estar discutindo como aumentar a proteção costeira e melhorar a capacidade das áreas litorâneas se adaptarem às novas ameaças frente à crise climática, e não como descentralizar o domínio sobre elas. O debate está invertido”, afirma. Confira a seguir.

CIÊNCIA HOJE: O que é a chamada ‘PEC das praias’?

EDUARDO BULHÕES: Esse foi o nome que se popularizou para uma proposta de emenda constitucional que alteraria a Constituição Federal sobre o domínio dos chamados terrenos de marinha. São terrenos de marinha, e não da Marinha. A Marinha, parte das Forças Armadas, também tem terras, áreas militares, inclusive algumas delas no litoral. Mas falamos aqui dos terrenos de marinha, que são o objeto da PEC 03 de 2022 em discussão no Senado, depois de ter passado pela Câmara dos Deputados.

CH: E o que são os terrenos de marinha?

EB: Terrenos de marinha são terras junto ao litoral que pertencem à União. Conceitualmente têm uma origem colonial, quando a Coroa portuguesa separou essas terras para o domínio da corte. Elas não foram incluídas nas sesmarias, nos terrenos que eram dados a particulares, porque era uma forma que a Coroa tinha não só de controlar a defesa do território pelas vias costeiras como de auferir recursos de atividades como a extração de sal e da pesca. Os terrenos ficavam como propriedade da União, e isso foi regulamentado em 1946. Esses terrenos se definem como uma faixa de 33 metros lineares contados a partir da linha média das marés mais altas do ano de 1831. Era a área que a Coroa achava importante manter sobre o seu domínio para essas atividades. Desde então, esses terrenos fazem parte do patrimônio da União. Ainda assim, é permitido à União a concessão de ocupação por particulares sob um regime de partilha. Os proprietários privados pagam um imposto anual específico chamado de foro. Uma das ideias da PEC é acabar com esse regime e fazer com que os proprietários tenham domínio pleno dessas terras.

Terrenos de marinha são terras junto ao litoral que pertencem à União. Conceitualmente têm uma origem colonial

CH: Todos os chamados terrenos de marinha seriam alvo dessa PEC?

EB: Todos os terrenos de marinha passariam ao domínio dos particulares onde há essa ocupação. Estados e municípios também ocupam essas áreas, com escolas, estradas ou outro tipo de infraestrutura. Então também passariam a ter domínio sobre essas áreas. Permaneceriam ainda sob domínio da União os terrenos de marinha não ocupados do litoral brasileiro, delimitados por unidades de conservação e proteção ambiental. Mas já há preocupação com o avanço de grilagem e corrida a áreas do litoral em alguns territórios do litoral de pessoas na expectativa de aprovação da PEC.

CH: Por que a transferência desses terrenos de marinha, como prevê a PEC, tem provocado controvérsia? Como funciona a demarcação dessas terras?

EB: Como fazem parte do patrimônio da União, esses terrenos são fiscalizados pela Secretaria do Patrimônio da União. Ela tem o dever de demarcar essas áreas e cobrar os impostos relativos a áreas da União, como prédios públicos, por exemplo, não só dos terrenos de marinha. A SPU sempre teve um número pequeno de servidores e técnicos para conseguir fiscalizar ou manter sob controle todos esses terrenos em um litoral brasileiro que é continental. Seja em praias como conhecemos ou em rios onde o mar entra, nas áreas estuarinas, são mais de 20.000 Km de áreas sujeitas aos efeitos de maré e sobre as quais se aplica essa faixa de 33 metros que define os terrenos de marinha. É uma área colossal, e a SPU nunca conseguiu delimitar plenamente esses terrenos. Em 2017, foi aprovado o Plano Nacional de Caracterização dos terrenos sob propriedade da União, e a informação era que a SPU tinha demarcado menos de um quarto de todos os terrenos de marinha. É insuficiente para termos dimensão completa do que está em jogo. O Plano Nacional de Caracterização foi adiado até 2026. Existem técnicos muito bons na SPU, há uma metodologia bem estabelecida para medir onde era essa posição da preamar (maré alta) lá em 1831, para a partir daí marcar os 33 metros. No entanto, faltam pernas para a SPU realizar isso a nível nacional. E isso aumenta a preocupação porque a PEC propõe a transferência dessas terras para particulares, estados e municípios sem que a sociedade saiba de fato quais são esses terrenos ou quantos são.

A PEC propõe a transferência dessas terras para particulares, estados e municípios sem que a sociedade saiba de fato quais são esses terrenos ou quantos são

CH: Rapidamente se espalhou a ideia de que o objetivo da PEC seria privatizar as praias. O texto prevê isso? Qual é a importância do modelo atual na preservação do caráter público das praias brasileiras?

EB: Pouca gente sabe o que é terreno de marinha. A PEC acabou associada à privatização das praias, e “privatização” aí é mais força de expressão, uma forma de chamar atenção ao tema. O texto da PEC não fala em privatização das praias. As praias brasileiras são regidas pela legislação federal, protegidas no artigo 10 da Lei 7661/88, que as coloca como um bem público de uso comum do povo. O conceito de praias abrange faixas de areia adjacentes ao oceano. Não são passíveis de privatização. Mas, no risco de se privatizarem os terrenos de marinha, não temos garantia de que seja cumprido o livre acesso às praias. Já vemos esse problema no litoral do Rio de Janeiro, também no litoral de São Paulo, com condomínios de luxo. O mesmo no Nordeste, com resorts que colocam acesso privado às praias. Elas não estão privatizadas, se alguém for nadando pode chegar à areia. Mas ninguém faz isso. As pessoas querem acesso à praia e, em alguns lugares, esse acesso é controlado, seja por seguranças, cancelas etc. Isso pode virar tendência e preocupa. O que se teme é o risco de que em algumas áreas esse acesso seja cada vez mais restringido ao uso público.

Deveríamos estar discutindo como aumentar a proteção costeira e melhorar a capacidade das áreas litorâneas se adaptarem às novas ameaças frente à crise climática, e não como descentralizar o domínio sobre elas. O debate está invertido

CH: Qual seria o papel da União, nesse cenário?

EB: A União poderia, numa ação fiscalizatória, por exemplo, exigir que se abram acessos à praia, ou exigir que certas construções não sejam feitas. Ainda teria algum poder de legislar sobre essas áreas. No Brasil, a política pública de garantir o acesso às praias e uma gestão compartilhada desses espaços que são da União é alvo do Projeto Orla, que é um projeto nacional, ao qual já aderiram mais de uma centena de municípios. A União concede aos municípios a possibilidade de gerir os ambientes litorâneos nos seus territórios a partir de um plano. Já existem políticas públicas sendo tocadas dentro dos terrenos de marinha. Se a PEC for aprovada, essas áreas que são privadas podem simplesmente não ser mais geridas pela União, e podem surgir problemas como os de interrupção do acesso às praias, cobranças etc. Tudo isso gera insegurança em relação ao uso público das praias, um bem tão querido dos brasileiros.

CH: Como tem sido a experiência com casos em que terrenos da marinha já são administrados por municípios e estados?

EB: Tenho contato com alguns planos de gestão de orla marítima e vemos que os principais problemas são justamente os usos e ocupações desordenadas na orla. São marinas, clubes privados, construções sobre a praia. Há áreas em Cabo Frio (Região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro), por exemplo, com quiosques na faixa de areia, ou em cima da vegetação de restinga. Há pequenas privatizações do espaço público no dia a dia. Na Barra da Tijuca, (zona Oeste do Rio) há um clube na Praia do Pepê. Também há exemplos no Nordeste. Isso é comum no Brasil inteiro e poderia ser agravado com as ideias trazidas pela PEC.

Vamos ficar em uma discussão patrimonial sobre de quem deve ser o terreno ou pensaremos medidas inteligentes para nos defendermos da elevação do nível dos oceanos e das ameaças climáticas?

CH: Quais são os riscos de danos ambientais, considerando a ampla extensão litorânea brasileira?

EB: Os principais impactos ocorrem porque os terrenos de marinha, como são definidos logo a partir do final da praia, são naturalmente ocupados por vegetação de restinga, aquela vegetação de praia, e por áreas de mangue. As áreas de mangue não necessariamente têm praia na frente, mas também fazem parte desses terrenos de marinha. E ambas são áreas muito sensíveis e de fácil destruição, por meio de desmatamento ou terraplanagem. Por outro lado, elas nos oferecem vários serviços ambientais, ou serviços ecossistêmicos, que são muito importantes. O primeiro deles é a defesa do litoral frente às ameaças climáticas. Temos um contexto atual de elevação do nível do mar e, associado a ele, um aumento na ocorrência de eventos extremos. E aí cito o exemplo das ressacas. Quando temos esse tipo de evento, seja associado a uma ressaca ou a uma perspectiva futura de elevação do nível do mar, precisamos de alguma proteção para nosso bem-estar. E essa proteção é fornecida gratuitamente por esses ecossistemas. Mangues e restingas funcionam como um filtro para a energia das ondas, e um filtro para a energia maior que o oceano pode dispender, agredindo o litoral. As áreas mais sujeitas a erosão e inundação marinha são aquelas que já foram ocupadas, ou seja, em que esses atributos naturais e ecossistemas litorâneos já foram danificados e degradados. É generalizado. Não é difícil perceber que, quanto mais fragilizados são esses ecossistemas, mais indefesa fica a costa frente a esses riscos de ressacas e inundações marinhas. Em praias urbanas, já vemos uma grande degradação desses ecossistemas. Com a PEC, é possível que outras novas áreas, apesar de protegidas por lei, sejam ainda mais fragilizadas sob domínio pleno de particulares e interesses econômicos. E são áreas chave diante dos impactos de desastres naturais associados às mudanças climáticas. Deveríamos estar discutindo como aumentar a proteção costeira e melhorar a capacidade das áreas litorâneas se adaptarem às novas ameaças frente à crise climática, e não como descentralizar o domínio sobre elas. O debate está invertido.

CH: Medidas parecidas já foram adotadas em outros países? Como foram essas experiências?

EB: Países como Portugal e Espanha estão recuando áreas ocupadas para renaturalizar o litoral e a linha de costa em busca de maior capacidade de adaptação aos desafios climáticos. Na Grécia, existem delimitações específicas por lei de faixas de areia que não podem ser mais ocupadas para garantir uma faixa de segurança ambiental frente ao avanço do nível do mar e a ocorrência de eventos extremos. Aqui no Brasil, o que temos são recomendações de que em áreas ocupadas se deveria manter uma faixa de 50 metros livres a partir do final da praia e, em áreas não ocupadas, se deveria manter uma área de 200 metros livres. Mas são indicações, sequer estão na lei. O debate aqui sobre terrenos de marinha é patrimonial, se esses terrenos devem seguir sob domínio da União ou se podem passar a domínio pleno de estados, municípios e particulares. É quase uma questão fundiária, sobre quem é o dono efetivo desses terrenos. Em outros países essa questão aparentemente não existe. O que há é uma preocupação com a temática ambiental e como fazer que essas áreas litorâneas sejam aliadas no enfrentamento da crise climática. O Brasil precisa estabelecer suas prioridades. Vamos ficar em uma discussão patrimonial sobre de quem deve ser o terreno ou pensaremos medidas inteligentes para nos defendermos da elevação do nível dos oceanos e das ameaças climáticas?

É importante garantir que esses terrenos continuem sendo parcialmente da União para que os impactos ambientais negativos não se aprofundem

CH: Municípios e estados teriam condições similares às da União para fiscalizar a evitar irregularidades ambientais na ocupação desses terrenos?

EB: A União tem capacidade limitada porque as dimensões dos terrenos de marinha são continentais em um país como o nosso. E até entendo de certa forma a justificativa dos municípios, porque na prática é nos municípios que as coisas acontecem. São eles que lidam com o turismo, o comércio, o trânsito de veículos em vegetação de restinga. Mas não tenho certeza de que teriam capacidade de sustentar pressões imobiliárias ou turísticas. Muitos exemplos mostram municípios favoráveis à exploração económica dessas áreas sem preocupação com a manutenção dos ecossistemas e do cumprimento dos regramentos federais. Os municípios poderiam aderir à gestão compartilhada, por meio do Projeto Orla. Existe um regramento legal, a lei 13.240/2015, em que a União passa aos municípios a administração das áreas litorâneas, e eles têm a obrigação de elaborar um plano de gestão dessas áreas. E, ainda assim, vemos muitas dificuldades, porque há vários interesses envolvidos. No Brasil, o turismo de sol e praia é fortíssimo. O domínio federal sobre essas áreas, traria ainda alguma capacidade de regulamentar e frear a ocupação desordenada do nosso litoral.

CH: Alguns municípios fazem projetos de alargamento das faixas de areia para reparar erosões causadas por fenômenos naturais, mas também para ampliar o espaço disponível para o banho de sol. Que prejuízos esses “engordamentos” podem causar?

EB: Além dos terrenos de marinha, existem os chamados acrescidos de marinha. Se no passado o litoral estava em uma posição e tínhamos a demarcação dos terrenos de marinha e depois houve um grande aterro hidráulico, como na praia de Copacabana na década de 1970, ou no Aterro do Flamengo (ambos no Rio de Janeiro), esses terrenos novos construídos em direção ao mar são também patrimônio da União, são os acrescidos de marinha, e estão nesse contexto da PEC. Cerca de um terço do litoral brasileiro sofre esse processo de erosão, que é a perda de terrenos frente ao  avanço do mar. A erosão tem diversos motivos, mas as medidas para enfrentá-la historicamente têm sido a construção de obras rígidas, muros, blocos de pedras, espigões, quebra-mares. Nas últimas décadas, temos ido para o caminho de “engordamento” de praias, que não só protege o litoral frente ao avanço do mar como cria uma praia recreativa, o que possibilita a exploração económica. Muitos municípios estão adotando isso como uma estratégia dupla. Não existe regramento federal sobre isso. O que existe é a necessidade de um estudo de impacto ambiental, dependendo da obra. E esses estudos são feitos pela legislação, sobretudo estadual, e em alguns casos também entra a federal. Há vários desses projetos em Santa Catarina, no Paraná, no Rio de Janeiro. Temos cobrado a existência de um plano nacional para o controle da erosão costeira, porque cada município faz à sua maneira e acaba à mercê das empreiteiras que detêm essa expertise e nem sempre são projetos são bem-sucedidos. A falta de um critério unificado é um problema.

CH: Como a opinião de especialistas tem pesado na análise dessa PEC, considerando a emergência climática e inclusive a catástrofe recente no Rio Grande do Sul?

EB: Vários especialistas no país vem tentando pressionar para que essa PEC não seja pautada e não passe. O cenário hoje no Senado é favorável à medida, assim como foi em 2022 com a maior parte dos deputados. Continuaremos pressionando, porque realmente estamos muito preocupados com essa falta de controle que tendemos a ter sobre esses terrenos à beira-mar se a PEC avançar. É fato que existe uma discussão tributária e quem mora hoje nesses terrenos de marinha paga um imposto a mais, além do IPTU, mas isso talvez possa ser revertido a partir de outra emenda. É importante garantir que esses terrenos continuem sendo parcialmente da União para que os impactos ambientais negativos não se aprofundem cada vez mais.

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