Além de nos levar para diferentes lugares, a literatura nos permite experimentar outras vidas e, dessa forma, criar vínculos com o outro.
Tudo que está vivo hoje no mundo um dia vai morrer, mas nós, seres humanos, somos os únicos habitantes da Terra que passamos quase toda a existência preocupados com isso. Inventamos mil maneiras de enganar a morte. Contar histórias – assim como descobrir a cura de uma doença, inventar vacinas e realizar transplantes (guardadas as devidas proporções) – é uma delas
Šahrāzād (nome grafado também como scheherazade ou, em português, Xerazade), a lendária rainha persa, sabia desse antídoto contra a morte; por isso, durante mil e uma noites, entreteve o rei Sahriyār com as mais belas histórias que conhecia. Estratégia que não só serviu para apaziguar o coração traído do soberano, como ainda para curar-lhe de sua sanha assassina. Ao rei, Šahrāzād oferece seus dons mais preciosos: sabedoria e capacidade de desvendar a alma dos homens. Com isso, tece com ele uma nova história, a história de suas vidas. Essa construção impede que cabeças sejam cortadas ao amanhecer, como periga acontecer quando não estabelecemos vínculos com o outro, quando não partilhamos nossas ficções.
Nesse sentido, retomando o romancista e médico alemão Alfred Döblin(1878-1957), quando ele declarou seu amor à linguagem, podemos afirmar que a literatura é um modo de amar os outros. Para ele, “a maioria de nossas funções humanas é singular: não precisamos de ninguém para respirar, andar, comer ou dormir; mas precisamos dos outros para falar, para que nos devolvam o que dissemos” (citação extraída do livro A cidade das palavras – As histórias que contamos para saber quem somos, publicado por Alberto Manguel em 2008 pela Companhia das Letras). E aqui acrescento que precisamos também dos outros para ler e interpretar o que escrevemos, única forma de alcançarmos a imortalidade.