Conheça a trajetória da pesquisadora que descobriu o desejo de ser cientista ainda na infância e hoje se destaca em um universo tipicamente masculino
Descobri o desafio de ser mulher no mundo científico no primeiro dia de aula na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Naquele ano, ingressaram somente oito meninas, entre 80 alunos. Em um universo onde lideranças femininas eram escassas, a mensagem era clara: física não era para mulheres. As meninas eram organizadas e esforçadas, mas não eram as ‘geniais’. Aos poucos, minhas colegas foram silenciosamente abandonando o curso. Eu, no entanto, não podia me dar ao luxo de desistir e tratei de criar as oportunidades.
Além de estudar para as disciplinas, fiz iniciação científica com uma professora de perfil forte, fui presidente do diretório acadêmico e representante discente. Era a época do programa nuclear e do crescimento da Petrobras, do Polo Petroquímico e da Embraer. Os estudantes que entravam na UFRGS, em sua grande maioria provenientes de escolas privadas, tinham a expectativa de revolucionar o mundo. Eu, da primeira geração na minha família a ter uma graduação, queria fazer ciência para ajudar a transformar a realidade do Brasil.
Na pós-graduação, optei pela física teórica. Após o doutorado, fui para os Estados Unidos. Era época de uma das crises do petróleo e embarquei na jornada de entender como água, óleo e surfactante (detergente) formavam estruturas que poderiam ser usadas para recuperar petróleo de rochas.
De volta ao Brasil, os estudos com surfactantes despertaram a minha curiosidade por outras macromoléculas que, por terem distribuições de carga, podiam se agregar ou repelir, formando diversas estruturas. Nesses sistemas, a água não era descrita como uma molécula independente, mas como um meio uniforme.
Resolvi estudar só a molécula água. Para isso, precisava usar uma nova ferramenta, para mim desconhecida: a simulação computacional. Lembro que um colega me disse que eu era muito velha para mudar de área e aprender a programar. Tomei isso como um desafio e, em uma semana, já tinha o meu primeiro código funcionando.
Eu me apaixonei pela água e suas propriedades bizarras. Uma das características estranhas mais conhecidas da água é o fato de o gelo flutuar em água líquida, enquanto a fase sólida da maioria dos materiais, por ser mais densa, afunda no líquido.
Mas a anomalia na densidade não é a única ‘esquisitice’ da água. Descobrimos, por meio de simulações, que a água se difunde mais rapidamente em ambientes mais densos, graças a uma competição entre suas duas escalas de interação: com e sem ligação de hidrogênio. Esse mecanismo depende muito do tipo de molécula com a qual a água interage. Se a água está próxima a moléculas sem carga, ela se move mais rapidamente do que se está próxima a estruturas com carga.
Uma consequência ainda mais espetacular da competição entre essas duas escalas é o super fluxo que a água apresenta quando confinada em nanotubos de carbono (estruturas tubulares finíssimas, da ordem de nanômetros).
As moléculas de água confinadas em nanotubos tentam formar ligações de hidrogênio com moléculas de água lateralmente vizinhas, dando origem a uma espécie de tubo conectado. Como as ligações de hidrogênio se fazem e se desfazem, esse é um processo bem dinâmico. Quando o tubo em que as moléculas estão confinadas tem um diâmetro maior, essas conexões ocorrem com certa folga lateral e a água se move livremente em um rápido fluxo, decorrente da combinação da rede de ligações. É como se houvesse um tubo menor dentro do nanotubo.
Quando diminuímos o diâmetro do nanotubo, essa folga desaparece e a rede de conexões de água forma uma estrutura rígida; a água congela dentro do tubo, passando a não fluir tão facilmente. É como se houvesse um tubo bem apertado dentro do nanotubo.
Diminuindo um pouco mais o diâmetro, para menos de 2 nanômetros, a água não consegue mais fazer ligações laterais. As moléculas fazem uma fila indiana ‘superligada’ que flui a uma supervelocidade dentro do nanotubo.Nesse sistema, os sais são repelidos na entrada do nanotubo.
Encontramos o mesmo super fluxo e repulsão salina nas simulações em furos nanométricos em folhas de grafeno e de dissulfeto de molibdênio (MoS2). Hoje, pesquisamos como usar essas estruturas para remover sais e metais pesados da água.