Sociogenômica: caixa de Pandora ou pseudociência?

Em vez de ter sido banida diante do horror do nazismo e de outros casos de limpeza étnica, a eugenia renasce, agora endossada por especialidades da ciência moderna, que usam a genética para explicar o comportamento humano.

 

Raças, sempre as raças.

“Não é minha intenção aqui descrever as assim chamadas raças humanas; mas darei início a uma pesquisa sobre qual o valor das diferenças entre elas (raças) sob o ponto de vista de classificação e de como estas se originaram.” Esse parágrafo abre o capítulo ‘Sobre as Raças do Homem’ do livro A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo, do naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), publicado primeiramente em 1871 e cuja segunda edição apareceu em 1879.

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O problema maior não é tanto a discussão das raças como uma mera classificação biológica, mas sim aquele decorrente das inferências que são feitas ao associar determinados predicados comportamentais a diferentes grupos e etnias.

Após uma extensa narrativa, na qual Darwin apresenta os argumentos de vários naturalistas que defendiam que os humanos em existência naquela época podiam ser divididos em várias espécies, ele conclui com a sua costumeira sensatez que “…tanto quanto possamos julgar, embora sempre podendo estar errado, nenhuma das diferenças entre as raças do homem apresentam benefícios especiais a ele.” E ainda: “A grande variabilidade de todas as diferenças externas entre as raças do homem indicam que essas não devem ter muita importância; porque, se fossem importantes, elas teriam sido fixadas e preservadas, ou eliminadas.”

Não obstante a cautela de Darwin em ressaltar que características tais como cor da pele, tipo de pelos, distribuição muscular, estrutura óssea, etc. eram devidas a adaptações geográficas ou de hábitos, fica claro nesse e em outros capítulos de a Descendência do Homem que ele aceitava que as populações humanas eram constituídas por raças.

A noção de raças humanas se revelou longeva e até certo ponto refratária aos fatos, pois, mesmo nos dias atuais, em que a genética moderna mostrou que tal conceito é improcedente, a questão racial continua a alimentar o debate entre os próprios cientistas e leigos. O problema maior não é tanto a discussão das raças como uma mera classificação biológica, mas sim aquele decorrente das inferências que são feitas ao associar determinados predicados comportamentais a diferentes grupos e etnias.

A eugenia

Nesse sentido, é preocupante que a moderação de Darwin não tenha transbordado para os dias de hoje, quando renasce o espectro da eugenia, agora endossado por algumas especialidades da ciência moderna. Nesse particular, o binômio raça e eugenia se destaca, como veremos a seguir.

A eugenia é um termo cunhado pelo antropólogo e matemático inglês Francis Galton (1822-1911), um primo distante de Darwin que, em 1883, publicou o livro A Pesquisa sobre a Faculdade Humana. O foco principal da obra era “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente”.

Galton sugere que “seria muito prático produzir uma raça de homens altamente qualificada por meio de casamentos cuidadosamente planejados ao longo de várias gerações consecutivas.” Ocorre que o autor, assim como vários de seus seguidores, baseava o suposto melhoramento humano nas classes sociais e nas raças. Segundo Galton, a sociedade a qual ele próprio pertencia era o padrão a ser atingido. Portanto, subestimou também o meio ambiente como importante fator na chamada seleção social.

Galton foi sucedido pelo estatístico britânico Karl Pearson (1857-1936), um apóstolo fervoroso que ajudou a criar a biometria, um instrumento que introduziu a análise quantitativa ao estudo das raças e que passou a subsidiar então as ideias eugênicas. É revelador o fato de que Galton, Pearson e tantos outros tenham preferido se apoiar mais fortemente na genética do que na educação como estratégia para melhorar a sociedade. Talvez esse viés traísse a crença, consciente ou não, de que a natureza aleatória da genética isentava de responsabilidade as classes dominantes. Para eles, ser portador ou não de deficiências era apenas uma questão de má ou boa sorte.

Embora a eugenia tenha sido batizada por Galton, os princípios dessa doutrina são antigos. Em 380 a.C, o filósofo grego Platão deixou registrado, em seu livro A República, que, na sociedade humana, a reprodução deveria ser regulada pelo Estado e, de quebra, a progênie não deveria saber quem eram seus pais. Depois, entre os séculos 18 e 19, o economista britânico Thomas Malthus (1766-1834), preocupado com o crescimento populacional, também recomendou práticas eugênicas como solução para as crises, que, fatalmente, ocorrerão quando os recursos naturais atingirem seu limite.

Ao longo da história mais recente, a eugenia foi adotada e modificada por vários líderes, que viam no conjunto

dessas ideias uma forma de expressar seus preconceitos, adaptando-os de maneira a justificar ações racistas que hipoteticamente teriam uma base científica. O regime nazista ilustrou de maneira eloquente a malversação do conhecimento. Outros incontáveis episódios de limpeza étnica também resultaram em trágicos genocídios, todos objetivando a “purificação de raças” e sempre em nome do bem social. Mediante o horror causado por esses exemplos, era de se supor que a eugenia tivesse sido banida de uma vez por todas por sociedades democráticas, bem-educadas e moderadas em suas opiniões políticas.

No entanto, a convicção generalizada de que as raças existem e de que estas são passíveis de melhoramento ainda persiste. Isso demonstra que talvez exista um consciente coletivo que se nutre de premissas que, se não falsas, são pelo menos duvidosas. Quais seriam os agentes subjacentes a essa tendência? Imediatamente, vem à mente a simplicidade de pensamento. É mais fácil atribuir ao comportamento individual o componente genético do que tentar compreender a dinâmica social em toda sua complexidade. Essa opção pode ser medida. Um teste realizado com várias turmas de alunos de graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) demonstrou o nítido viés surgido quando se solicitava a eles que decidissem entre fatores genéticos e culturais para explicar certos comportamentos.

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É mais fácil atribuir ao comportamento individual o componente genético do que tentar compreender a dinâmica social em toda sua complexidade.

Dentre cerca de 20 tipos diferentes de comportamentos, alguns nocivos ou ameaçadores para a sociedade ou alvo de preconceito (violência, abuso de drogas e alcoolismo, egoísmo, orientação sexual), outros neutros ou benéficos (talento para matemática e artes, solidariedade, desempenho atlético etc.), a maioria dos alunos invariavelmente atribuía os ‘maus’ comportamentos ao fator genético e os ‘bons’ comportamentos ao ambiente cultural. O resultado evidencia a presença de considerável carga de preconceitos, mesmo em uma população mais esclarecida. Os alunos do exemplo acima não estão sozinhos, e nem representam uma corrente de pensamento recente.

 

A sociobiologia

A valorização do componente genético resulta de um intenso bombardeio que teve início com o advento da sociobiologia, popularizada pelo biólogo norte-americano Edward Osborne Wilson (1929-) com seu livro Sociobiologia: a nova síntese, publicado em 1975. A sociobiologia propõe investigar qual a base biológica do comportamento animal, extensivo aos humanos, tendo como suporte experimentos que tentam identificar e quantificar a influência individual dos componentes genéticos e ambientais. O trabalho de Wilson deixou um legado importante, pois em seus estudos com animais, principalmente insetos, o uso de rigorosos controles lhe permitiu tirar conclusões objetivas sobre a herança do comportamento social.

Mas isso se torna bem mais complicado quando se trata de humanos, principalmente devido às restrições impostas pela ética. A necessidade de cautela imposta pelas limitações experimentais não inibiu pesquisadores que, inspirados pela sociobiologia, conduziram experimentos mal elaborados e que, fatalmente, levaram a conclusões equivocadas.

É importante ressaltar aqui que, sem dúvida, existem componentes genéticos influenciando o comportamento humano. No entanto, é importante que a demonstração experimental elimine a possibilidade de que os efeitos observados tenham como origem fatores culturais.

No arsenal da sociobiologia, a arma mais devastadora foi o estudo do quociente de inteligência (QI). O teste de QI foi inventado por volta de 1895 pelo psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911), com a finalidade de medir o aproveitamento curricular de estudantes do ensino fundamental na França. A partir daí, o teste de QI foi adaptado e, em suas várias modalidades, foi adotado por muitos psicólogos e sociobiólogos como uma maneira de prospectar a inteligência individual humana.

Os resultados levaram os pesquisadores a tecer hipóteses abrangentes que culminaram na conclusão de que a capacidade cognitiva era herdada. Talvez o maior expoente dessa corrente do pensamento tenha sido o psicólogo norte-americano Arthur Jensen (1923-2012), cujo trabalho não tardou a ser extrapolado para as raças. Ao comparar os desempenhos de brancos e não brancos, Jensen concluiu que o aprendizado conceitual era mais evidente nos primeiros.

Esse trabalho polêmico foi um divisor de águas. Embora o texto de Jensen, de 1969, tenha deflagrado uma feroz crítica, o debate ainda prossegue nos dias de hoje de maneira apaixonada, atraindo legiões de pesquisadores, desde os sérios até os oportunistas que militam no cenário sociopolítico.

Durante algum tempo, em decorrência da polêmica levantada, a sociobiologia fez com que aqueles que se dedicassem a essa área do conhecimento fossem encarados com suspeita. Mas isso não durou muito tempo. Agora, em razão de uma velha estratégia de marketing que ensina que um produto impopular pode novamente ganhar as graças do público consumidor, bastando para tal glamorizá-lo, mudando seu nome ou sua roupagem, surge uma nova especialidade.

 

A sociogenômica

Do casamento entre a sociologia e a genômica, surge a sociogenômica. A genômica é o estudo dos dados gerados pelas técnicas modernas que viabilizaram o sequenciamento em massa do DNA. Com essa abordagem, é possível hoje produzir, rapidamente e com custo relativamente baixo, genomas humanos completos. Os enormes bancos de dados estão à disposição dos cientistas que desejam examiná-los para entender de que forma os genes contribuem tanto para a saúde como para a doença.

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O mercado faz dos pais presas fáceis, por meio de propaganda na qual deposita sobre os ombros deles a responsabilidade pelo destino de seus filhotes. A sociogenômica é hoje uma reedição genética dos antigos testes vocacionais. Com essas informações, os pais poderiam então fomentar o desenvolvimento dos filhos, direcionando-os para os canais adequados.

Os bancos de dados também chamaram a atenção dos sociólogos, que enxergaram nesse repositório uma rica fonte de informações que, finalmente, lhes daria mais credibilidade ao investigar os detalhes da herança do comportamento humano. Sim, quando se achava que a paz havia voltado, o lado sombrio da sociobiologia volta a agitar a comunidade. Em seu livro ainda não traduzido para o português Social por Natureza: A Promessa e o Perigo da “Sociogenômica” (tradução livre), a socióloga Catherine Bliss discute essa nova investida e as consequências sociais dos avanços da biotecnologia.

Bliss apresenta um texto muito bem escrito e elegante, que pode ser resumido em uma frase: a mídia e o mercado são responsáveis pela “genetificação” do comportamento social e, para tal, contam com o beneplácito geral, resultante do já mencionado desejo coletivo de acreditar em raças e na herança do comportamento. A autora mostra que há cada vez mais artigos científicos publicados sobre esse tema, sendo que a maioria usa a simples correlação entre a ocorrência de certas sequências de DNA no pool dos bancos de dados e algum comportamento específico.

Embora as correlações sejam sacramentadas pela estatística, nunca há uma demonstração clara de que os genes são de fato responsáveis pela característica selecionada. Sem muito discernimento, a mídia sensacionalista propaga essas conclusões como se fossem verdadeiras, e o resultado é que todos, incluindo as crianças, estão convencidos de que são os genes que regem nossas vidas.

Aliando-se à mídia, dezenas de empresas oferecem ao público a oportunidade de testar seu DNA, a fim de descobrir se são portadores de talentos específicos, se são inteligentes, líderes, bons dançarinos ou atletas, se têm a tendência de

assumir riscos, se lidam bem com o estresse, se encontrarão facilmente o amor e assim por diante.

O mercado faz dos pais presas fáceis, por meio de propaganda na qual deposita sobre os ombros deles a responsabilidade pelo destino de seus filhotes. A sociogenômica é hoje uma reedição genética dos antigos testes vocacionais. Com essas informações, os pais poderiam então fomentar o desenvolvimento dos filhos, direcionando-os para os canais adequados.

O leitor mais atento poderá descobrir nas entrelinhas que a sociogenômica tem o potencial de ressuscitar o velho fantasma da eugenia e, oportunamente, tentar novamente validar seus enunciados. Note-se que a biotecnologia atual já viabiliza manipulações com embriões, humanos ou não. É relativamente fácil hoje em dia editar os genomas no sentido de corrigir defeitos genéticos. Mas as mesmas técnicas poderiam também ser usadas para produzir embriões sob encomenda.

 

Um pouco de sobriedade

Nada como um tratamento numérico para desfazer mitos. Existe em genética um parâmetro denominado herdabilidade, que mede o efeito de fatores genéticos e não genéticos sobre determinada característica. A herdabilidade é o resultado de uma razão e, assim, é expressa por valores que vão de zero a um.

Vários comportamentos já foram medidos empregando essa abordagem numérica, seguindo protocolos rígidos (descritos em vários trabalhos publicados entre 1990 e 2007). Por exemplo, sabe-se que a altura de um indivíduo apresenta o valor de 0,88, o que mostra que o componente genético é relativamente alto. As impressões digitais têm 0,97, sendo, assim, altamente herdáveis.

Por outro lado, a medida do QI tem apenas 0,69. E mais: se os elementos que compõem o teste de QI forem considerados individualmente, como por exemplo, a velocidade de processamento espacial, a velocidade de aquisição de informação e a de processamento da informação, tem-se, em média, 0,37 – valores bem mais baixos, portanto.

A conclusão aqui é a seguinte: pode haver contribuição do fator genético para a inteligência, mas a plasticidade ambiental é alta. Cabe ainda outro alerta. O cálculo da herdabilidade subentende que o teste de QI realmente mede inteligência, o que está longe de ser estabelecido. E mais, já que o valor de herdabilidade do QI é relativamente baixo, é plausível admitir que os estudos de QI e raças estejam abarrotados de erros, vieses e ambiguidades.

Para bater mais um prego no caixão da herança do QI, um estudo acaba de ser publicado na prestigiosa revista Proceedings of the National Academy of Sciences por Bernt Bratsberg e Ole Rogeberg. O trabalho mostra que o chamado efeito Flynn é causado pelo ambiente. O efeito Flynn refere-se ao crescimento do QI populacional ao longo do século 20, seguido de sua posterior queda observada mais recentemente.

Os autores usaram dados de arquivos recentes da Noruega e notaram que, durante três décadas, as mudanças no QI foram rápidas e ocorreram igualmente dentro das famílias e entre elas. Tais resultados indicam que as tendências não se devem a mudanças na composição das famílias e que existe apenas uma discreta contribuição dos genes.

Desse modo, podemos depreender que, até segunda ordem, a herança do comportamento ainda carece de fatos e representa apenas um conjunto de preconceitos que devem ser desconsiderados.

Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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