Em 2001, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou dados sobre o acesso ao ensino superior no Brasil, mostrando que apenas 2,2% dos jovens pretos e 3,6% dos jovens pardos frequentavam faculdades e universidades. Esses dados confirmavam uma informação que já era conhecida pela sociedade brasileira; principalmente, por aqueles que frequentavam o ambiente universitário: o sistema de ensino superior no país era majoritariamente branco, elitizado, com a maior parte dos seus estudantes vinda de escolas particulares.
Tanto sob o aspecto da justiça e equidade social quanto do ponto de vista do desenvolvimento científico e tecnológico do país, esses dados eram inaceitáveis. Naquele momento, muitos ativistas do movimento negro trouxeram, com ainda mais força, a bandeira da democratização do acesso à educação superior no país, sobretudo às universidades públicas federais, conhecidas pela sua qualidade e seletividade. O movimento negro foi precursor dessa importante demanda e, na sequência, ganhou a adesão de outros grupos sociais engajados na luta pelo direito à educação, entre eles o Movimento dos Sem Universidade (MSU). Como parte dessas lutas, conquistou-se a adoção das cotas em mais de 100 instituições públicas de educação superior entre 2001 e 2012.
As cotas são reservas de um percentual de vagas em um processo seletivo –pode ser no acesso ao ensino superior, em um concurso público etc. — para pessoas pertencentes a grupos historicamente discriminados em uma determinada sociedade.
As cotas são a modalidade mais conhecida das chamadas políticas de ação afirmativa, que vêm sendo adotadas em dezenas de países desde a década de 1950. O primeiro país a adotar ações afirmativas foi a Índia, visando ampliar as oportunidades para os grupos mais discriminados da sociedade indiana, popularmente conhecidos como pertencentes às castas inferiores.
O exemplo internacionalmente mais notório de adoção desse tipo de política são os Estados Unidos (EUA). Com uma história marcada pela escravidão, segregação racial e enormes desigualdades raciais, a população afro-americana mobilizou-se fortemente pelos seus direitos, conquistando a aprovação da Lei dos Direitos Civis em 1964.
Com parte da implementação desses direitos, passaram a ser desenvolvidas políticas de ação afirmativa para a população negra nos EUA a partir de 1965. Em casos de extrema segregação racial, foram adotadas cotas para garantir maior presença numérica de afro-americanos em instituições como universidades e órgãos públicos.
Tanto nos EUA quanto no Brasil, bem como em outros países onde essas políticas foram implantadas, as ações afirmativas sempre foram alvo de polêmicas e controvérsias. Não existe consenso sobre a adoção dessas políticas. Muitos discordam dos critérios para sua implementação. Costumam existir dúvidas sobre se os grupos definidos como beneficiários realmente ‘merecem’ ou ‘necessitam’ dessas ações. Questiona-se se haveria privilégio em beneficiar um grupo e não outro. Também se pergunta se essas políticas não desprezariam o mérito e o esforço de cada um.
A nosso ver, todas essas controvérsias se originam na falta de consenso, nas diferentes sociedades, sobre os critérios de justiça social, sobre quais grupos têm direito à educação e sobre quais são os efeitos da discriminação nas oportunidades dos indivíduos.
A ação afirmativa, cuja principal expressão no país são as cotas, fundamenta-se na compreensão de que pessoas negras sofreram historicamente maior discriminação na sociedade brasileira e, portanto, precisam, devem e merecem ser apoiadas a fim de ampliar suas oportunidades, como no acesso à educação.
O mesmo entendimento foi estendido aos indígenas, às pessoas com deficiência, aos estudantes que vêm de escolas públicas no ensino médio e aos estudantes de famílias mais pobres. Voltamos a destacar que foi o movimento negro que liderou a luta por essas políticas e que apenas posteriormente esses outros critérios foram adotados na implementação das mesmas.
Do ponto de vista dos critérios para definição dos beneficiários das políticas de ação afirmativa, a maior crítica é à utilização do critério racial, beneficiando os estudantes negros (que se autodeclaram pretos e pardos nas pesquisas sobre classificação racial). Muitas pessoas, principalmente as brancas, consideram que o Brasil é um país miscigenado, em que essas fronteiras raciais não podem ser estabelecidas. Portanto, não se poderia definir quem é negro.
Outros afirmam que o grande problema do país é a desigualdade social e a pobreza, e que, se as cotas adotassem apenas o critério de renda, os negros também seriam beneficiados. Há ainda os que afirmam que a adoção das cotas raciais parte de um pressuposto de que os negros não teriam capacidade, o que levaria, inclusive, a uma baixa autoestima dos mesmos e ao aumento do sentimento de inferioridade.
Buscando responder, ao menos em parte, essas questões, consideramos importante trazer evidências de pesquisas, como a do sociólogo argentino Carlos Hasenbalg, de 1988, que apontam que, mesmo quando há crescimento econômico e redução das desigualdades sociais, a população negra ainda fica em desvantagem.
Outros fatores, como a discriminação racial e o preconceito, incidem na situação da população negra, reduzindo suas oportunidades. Por essa razão, é importante a adoção das políticas de ação afirmativa direcionadas à população negra.
Também afirmamos e enfatizamos que já se sabe há décadas, sobretudo a partir dos estudos no campo da genética, que as diferenças raciais são exclusivamente ligadas à aparência e superficiais, e não correspondem a nenhuma diferença em termos de capacidade ou inteligência. Entretanto, sabemos também que, em função do preconceito, discriminação e desigualdades raciais na sociedade brasileira, a população negra tem suas oportunidades limitadas. Por isso, a ação afirmativa é importante, ao menos de forma temporária.
Em 2012, após uma tramitação de uma década no Congresso Nacional, foi aprovada a Lei 12.711, que determina a reserva de 50% das vagas nas instituições de ensino federais e nos colégios federais para alunos de escola pública, de menor renda, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, distribuídas de forma combinada.
Após seis anos de implementação dessas cotas, podemos afirmar que a ‘cara’ das universidades públicas brasileiras mudou: está mais negra, mais indígena, mais popular, mais diversificada. Os estudantes que entram por meio das cotas têm, em geral, desempenho semelhante ao dos não cotistas, com pequenas variações que não impedem seu sucesso acadêmico. Abaixo aponta-se as mudanças ocorridas ao longo de mais de uma década em termos de matrículas.
Os problemas relacionados à desigualdade educacional e ao acesso à universidade estão resolvidos? Não!!!
Um dos problemas enfrentados pelos estudantes cotistas é se manterem financeiramente, assim como sua permanência na universidade. Embora os recursos federais para a assistência estudantil tenham crescido entre 2008 e 2014, passando de R$ 101 milhões para R$ 742 milhões nesse período, eles são insuficientes para garantir auxílio financeiro e outros benefícios para todos os que os necessitam.
Outra dificuldade enfrentada é a baixa qualidade da educação básica, fazendo com que muitos estudantes não consigam aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e muitas vezes nem tentem participar das provas, seja por uma autosseleção, ou mesmo por terem abandonado a escola e não terem concluído o ensino médio. Esta ainda é uma realidade observada no país.
Como se pode observar, este debate é amplo e virtualmente impossível de concluir. Lembramos, por fim, que é importante acompanhar os efeitos e resultados dessas políticas, e esperamos que um dia as mesmas não sejam mais necessárias, uma vez que, nesse cenário, todos teriam as mesmas oportunidades de escolha.
Diante dos desafios aqui apresentados, é muito importante que a sociedade brasileira continue debatendo as políticas de ação afirmativa, e que os resultados das medidas que vêm sendo implementadas possam ser conhecidos e compreendidos pelo conjunto da população e, principalmente, por aqueles que podem vir a ser beneficiados com tais medidas.
Rosana Heringer
Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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