O titã dos clichês

É uma pena que, mesmo dispondo de toda a liberdade para escrever sobre ficção científica, autores contemporâneos não consigam se desprender dos estereótipos já amplamente explorados pelos clássicos do passado. Ao invés de dar vazão plena à imaginação e sondar as angústias do consciente coletivo, escritores e produtores insistem em trilhar os caminhos mais fáceis da bizarrice e do sensacionalismo. Esse é o caso de O Titã (The Titan, 2018), filme dirigido por Lennart Ruff, disponível na plataforma Netflix.

A história do filme, criada por Arash Amel, é até relevante, mas poderia ser mais bem desenvolvida para reforçar mensagens ecológicas que ajudem os humanos a preservar a Terra de maneira mais consciente. A ação se passa em 2048, mas nada mudou substancialmente em nosso mundo. Em um churrasco, por exemplo, homens conversam com homens, e mulheres com mulheres. E a relação dos humanos com o planeta segue insustentável, por razões que já conhecemos bem: crise de energia, poluição etc.

Para driblar o esgotamento dos recursos da Terra, a solução proposta por uma equipe de cientistas é a colonização da maior lua de Saturno – Titã –, porque as condições atmosféricas de lá seriam marginalmente adequadas. (E o primeiro questionamento é: por que Titã e não Marte, que pelo menos está mais próximo?)

Para ir tão longe, o projeto da colônia envolve treinamento e modificação fisiológica de alguns membros das Forças Armadas (homens e mulheres), de tal modo que eles possam se adaptar ao novo mundo. Os cientistas chamam isso de evolução forçada, que, cá entre nós, não tem nada a ver com a evolução nossa de cada dia.

O filme toma liberdades imensas com relação à ciência, e tanto o autor como o roteirista lançam mão dos recursos costumeiros para engabelar os não iniciados. Há citações profusas de termos técnicos e de drogas, mas sem muitas explicações unificadoras. Sem falar de toda a parafernália, seringas assustadoras, cirurgias e treinamento duríssimo, que consiste principalmente em submergir os candidatos em piscinas e ver quanto tempo eles aguentam sem respirar.

O protagonista, Rick (Sam Worthington), se destaca batendo o recorde de 43 minutos submerso, nadando velozmente como um peixe e também por não sentir frio. Naturalmente, os efeitos colaterais começam a surgir. Vômitos sanguinolentos, perda de pelos e de pele e mudanças radicais de comportamento, que incluem violência descontrolada e alienação. E a complacente esposa de Rick vai aguentando tudo isso com um estoicismo irritante.

Em razão desses efeitos, muitos candidatos morrem em meio à preparação, o que deveria servir de advertência ao cientista que coordena o projeto, o Dr. Colingwood (desempenhado pelo veterano Tom Wilkinson). Mas ele não esmorece frente ao fracasso e segue em frente, obsessiva e inescrupulosamente, passando ao largo de todos os preceitos éticos imagináveis e praticando suas maldades como um tirano insensível que tem poder de vida e morte sobre tudo e todos. Atenção, leitores! Cientistas não são assim. Acreditem!

Os poucos candidatos que sobrevivem acabam se transformando em seres reptilianos que têm também características de peixes e plantas. Porém, como são violentos, cometem alguns deslizes (uma mutante mata seu parceiro inexplicavelmente) que não fazem parte da narrativa central, mas servem para aumentar a sensação de déjà vu. Assim, temos cenas de caçadas entre os soldados que patrulham o local e as cobaias humanas. Clichê puro!

Claro que o Dr. Colingwood quer preservar Rick a todo custo e, em nome disso, comete toda a sorte de desatinos. Ao final, Rick, que está muito ferido, aparece sendo transportado em um avião, cercado de familiares e amigos. Por um breve momento, somos levados a crer que Rick voltará à vida de antes, talvez mantido em sua casa mergulhado na piscina como um pet aberrante.

Mas, na cena seguinte, vemos um foguete partir, e as sequências finais mostram que Rick já é residente de Titã, tendo se adaptado muito bem àquele estranho ambiente. O que restou de Rick exibe uma expressão de contentamento, e ele voa como um super-herói. Está feliz e realizado. Só que dificilmente povoará aquela lua, pois está só. A menos, é claro, que o Dr. Colingwood tenha munido Rick de dotes especiais que permitam sua reprodução assexuada.

As cenas finais mostram a sua família na Terra olhando para o alto com uma expressão patética de orgulho e nostalgia. Ridículo! Aliás, para chegar a Titã, Rick consumiria pelo menos dois anos e meio, e o diretor não se preocupou em envelhecer o filho do protagonista satisfatoriamente.
A história e o filme primam pela incoerência e pela falta de originalidade. O Titã não acrescenta nada ao que já foi discutido em Dr. Frankenstein (de Mary Shelley) e Ilha do Dr. Moreau (H.G.Wells).

Fica sem resposta também a pergunta sobre quem aprovou o projeto do Dr. Colingwood. Até um estudante de iniciação científica teria vetado essa proposta absurda. Mesmo supondo que seria realisticamente viável praticar a chamada ‘evolução forçada’, seja lá o que isso for, por que não adaptar o humano às condições vigentes do planeta Terra? Seria uma abordagem mais barata, viável e até mais democrática. O único temor que o filme inspira é a possibilidade de que seja produzida uma sequência, isto é, a vida de Rick em Titã. Façamos votos que não. Que tudo que aconteça em Titã fique em Titã.

Franklin Rumjanek

Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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