Em setembro de 2018, coleções científicas ímpares da cultura natural e social arderam em chamas insensíveis. Porém, a história dessas coleções, que fizeram a grandeza do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, jamais será apagada. Poderá ser constantemente revivida em documentos imateriais.
O museu é uma das mais antigas instituições de ciências naturais da América. Foi criado em 1818 por D. João VI, dando início a atividades de coleta de plantas, animais e, principalmente, minerais nos arredores da cidade do Rio de Janeiro e nas províncias. Inicialmente, as especialidades da instituição eram mineralogia, botânica, zoologia e etnografia, logo acrescidas de geologia, arqueologia, antropologia, fisiologia e entomologia. O conhecimento dos produtos da natureza estava imbricado à circulação científica internacional e às demandas do movimento socioeconômico universal e nacional.
Desde a sua criação, o Museu Nacional esteve ligado a vários ministérios (da Secretaria dos Negócios do Reino aos ministérios da Instrução Pública Correios e Telégrafos; da Agricultura, Indústria e Comércio; e da Educação e Saúde Pública, entre outros) até que, em 1946, a instituição de tradição científica centenária, com então 128 anos de existência, passou ao âmbito da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil. Permanece ainda hoje ligado à mesma instituição, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O Museu Nacional foi criado no contexto de produção de conhecimentos que visava ao mercado econômico-capitalista da natureza. No decreto de criação, o rei salientava que: “Querendo propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no Reino do Brasil, que encerra em si milhares de objetos dignos de observação e exame, e que podem ser empregados em benefício do comércio, da indústria e das artes que muito desejo favorecer, como grandes mananciais de riqueza; hei por bem que nesta Corte se estabeleça um Museu Real…”. Nessa época, a exposição de um museu de história natural comparava-se a uma vitrine da natureza.
O Brasil era representado pela imagem de opulência das riquezas naturais, a qual foi corroborada pelas coleções e exposições do seu museu de história natural no século 19. As viagens ao interior eram parte do trabalho dos naturalistas e, no Museu Nacional, desde a sua criação, foi mantido o cargo de viajante naturalista, contratado para coletar material botânico, mineral ou zoológico no interior.
Ao mesmo tempo, viajantes estrangeiros contribuíram para a formação de coleções, com duplicatas que deveriam deixar para o Museu. Como exemplos, podem ser citados os objetos enviados pelo naturalista austríaco Johann Natterer (1787-1843) e também as coleções do naturalista alemão Friedrich Sellow (1789-1831), enviadas ainda nos anos 1820 e no início dos 1830 ao Museu.
Data de meados do século 19 o aparecimento dos primeiros exemplares de fósseis no Museu, inclusive de minerais fósseis, que serviam como combustíveis basicamente para a iluminação. Em 1858, foram enviadas as primeiras amostras de petróleo (‘óleo’) encontradas na Bahia.
Em 1860, o escritor francês Jacques Brunet (1780-1867) foi contratado como viajante do Museu e coletou material geológico desde a Província do Pará até Pernambuco. A partir de meados do século 19, os viajantes foram direcionados ao norte do país. Alfredo Soyer de Gand e Carlos Schreiner, como viajantes do Museu Nacional, coligiram material nas províncias do Pará e Amazonas; em 1876, trabalhava no Amazonas o naturalista francês Clement Jobert, que enviou amostras de espécies da flora ao Museu Nacional e ao Museu de História Natural de Paris.
Entre 1876 e 1891, o Museu contratou como viajante um imigrado alemão que vivia no Brasil, o naturalista Fritz Müller (1822-1897), cujos trabalhos tiveram grande repercussão internacional. Foi dos primeiros cientistas a aplicar a teoria da evolução, do naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), que o considerou o “príncipe dos observadores”, por ter sido, à época, o único a evidenciar a teoria da origem das espécies. Ao mesmo tempo em que fazia coleções para o Museu, Müller realizava pesquisas zoológicas e botânicas.
Também os naturalistas alemães Hermann vonIhering (1850-1930) e Emilio Goeldi (1859-1917), ambos com uma representativa bagagem científica, foram contratados viajantes do Museu na década de 1880 para realizar pesquisas de campo. Depois, tornaram-se, respectivamente, diretores dos museus Paulista, criado em 1896, e Goeldi, fundado em 1871.
Em 1859, formou-se a primeira Comissão Científica composta unicamente por brasileiros, destinada a explorar o Ceará. No início dos anos 1860, o botânico Ladislau Netto (1838-1894) acompanhou o astrônomo Emmanuel Liais (1826-1900) à região do rio São Francisco e reuniu importante coleção botânica. Dentre as várias coleções expostas no Museu, destacava-se a de minerais, cujas primeiras amostras chegaram ainda na década de 1820, como as de cobalto e diamantes. Foram enviadas também amostras de metais: de cobre, chumbo e ferro, este último descoberto em Minas Gerais. O carvão foi insistentemente procurado, analisado e finalmente explorado no sul do país.
Destaca-se também a coleção de plantas de madeiras vindas das províncias, principalmente as de pau-brasil. As plantas tintoriais foram também muito pesquisadas. Da mesma forma, as ceras, as resinas e os vegetais oleaginosos, que poderiam ser transformados em produtos agrícolas e comerciais. O estudo da fauna cresceu mais lentamente, mas as aves do Brasil encantavam a todos, e a coleção ornitológica cresceu muito durante o século 19, assim como o estudo dos peixes brasileiros.
Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional em 1876, definia-o como instituição de forte papel social e cultural, dizendo que as ciências naturais, “com todas as suas úteis aplicações, na indústria e nas artes, revelavam os costumes e caracteres dos povos antigos e modernos, as fases diversas por que passavam todos os povos da terra, a fauna, a flora e a idade geognóstica de todas as zonas do globo…”. Ele já não enfatizava somente o caráter econômico que dera o Rei português à instituição.
Em 1915, o médico Bruno Lobo (1884-1945) substituiu o também médico João Batista de Lacerda (1846-1915) na direção do Museu. Era a época conturbada da Primeira Guerra, mas pesquisas e publicações foram impulsionadas. Para Bruno Lobo, o Museu era um “centro científico que de algum modo reflete a nossa nacionalidade, riqueza do solo, flora e fauna”.
Em 1923, o médico Arthur Neiva (1880-1943) assumiu a direção e iniciou a publicação do Boletim do Museu Nacional, que, com interrupções, dura até hoje. Logo depois, o antropólogo Edgard Roquette Pinto (1884-1954) é nomeado para dirigir o Museu, quando então refez o regulamento da instituição, em 1931, mantendo os cursos públicos iniciados ainda no século 19 e criando o Serviço de Assistência ao Ensino. Vendo o Museu como um lugar de educação científica, Roquette Pinto iniciou a produção de filmes educativos e diapositivos sobre as ciências naturais destinados às escolas por meio de empréstimo ou doação. Preocupado em fazer com que a educação científica alcançasse novas fronteiras e considerando as grandes distâncias internas no país, criou com o engenheiro francês Henrique Morize (1860-1930), a primeira rádio e defendeu a expansão da radiofonia com o mesmo ardor com que iniciou o cinema educativo no Brasil.
Em 1918, por ocasião do centenário do Museu Nacional, Roquette Pinto falou da dupla função do Museu: “Cabe a esta casa conservar, em miniatura suprema, tudo o que o país é capaz de fornecer; cabe-lhe estudar tudo o que puder guardar. Mas, acima disso, um museu, em país de formação étnica não definida, onde as massas populares têm as admiráveis faculdades nativas em grande parte anuladas pela bruta ignorância em que se debatem, deve ser, antes de tudo, casa de ensino, casa de educação”. A prática das ciências naturais seria um instrumento para conhecer o país e desenvolver a nacionalidade: “A nossa principal missão nesta casa, hoje, é tratar de difundir em nosso povo uma parte daquilo que ele precisa para vir a ser o que merece.”
Para Roquette Pinto, a exploração do meio natural não deveria ser feita sem a objetividade de estudos de especialistas brasileiros. Em seu livro Seixos rolados, de 1927, escreveu: “Tão perigoso e tão mau quanto aquele pessimismo interesseiro …, é o ingênuo entusiasmo cor de rosa dos comodistas preguiçosos, que se limitam a repetir a fama de nebulosas riquezas naturais, cuja descrição viram em livros estrangeiros subvencionados (…). É preciso estudar o Brasil, com os seus encantos e as suas tristezas, para amá-lo conscientemente; estudar a terra, as plantas, os animais, a gente do Brasil”. Ele via o Museu Nacional, com sua exposição e seus cursos, como uma instituição cujo papel era o de ensinar ciências naturais para bem aproveitar o que a natureza oferecia.
Na década de 1930, o Museu teria a primeira mulher como diretora: a antropóloga Heloísa Alberto Torres (1895-1977). Ela entrou manifestando grande preocupação com a preservação da natureza e a necessária exploração. Incentivou pesquisas feitas em colaboração com instituições nacionais e estrangeiras, buscando o ir e vir dos naturalistas do Museu, bem como a visita de especialistas estrangeiros.
Nessa época, realizavam-se estudos das especialidades do Museu relacionados a outros campos científicos, como a transmissão de doenças tropicais. É o caso do estudo sobre aves e a ecologia das matas como fundamentação às pesquisas da febre amarela silvestre, realizado em colaboração com a Fundação Rockefeller, ou da análise de ratos como subsídio à pesquisa sobre a peste [bubônica], feita em colaboração com o Serviço Nacional da Peste.
Por outro lado, os estudos ictiológicos mantinham ainda a relação das ciências naturais com a economia e, nesse sentido, uma grande pesquisa sobre peixes do Brasil de interesse comercial foi feita em colaboração com a Divisão de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura, a Divisão de Proteção de Peixes e Animais Silvestres (SP) e a Universidade Stanford, na Califórnia (EUA).
Em 1946, o Brasil saía da ditadura do Estado Novo e o mundo deixava para trás as atrocidades da Segunda Guerra. A destruição e o aniquilamento haviam atingido tanto as culturas quanto o meio natural dos mais diversos países, desde a Europa até os confins da África, onde as disputas imperialistas haviam deixado a pobreza desnuda.
Heloísa Alberto Torres levantou, então, o problema da devastação das florestas, dizendo que o desmatamento deixaria um terrível legado às gerações futuras, ameaçando a Terra de tornar-se um imenso deserto. Ela sugeria a observação científica das populações do interior, pois constituíam “o meio mais acertado de inspiração para estimular o progresso do nosso vasto sertão, impedindo, ao mesmo tempo, que se descaracterizassem as populações do Brasil”. Em sua visão, “cumpre aos administradores e às classes cultas do país (…) estudar os meios que possibilitem a utilização econômica da natureza sem risco de destruição dos bens que encerra ou de prejuízo ao seu equilíbrio biológico”.
Quando o Museu Nacional passou, com Torres, à administração da Faculdade de Filosofia, a prática das ciências naturais havia evoluído da temática prioritariamente econômica para questões de saúde pública e ecologia. Eram inovadores os estudos do ambiente, como o Projeto Arraial do Cabo, que buscava estudar o impacto da instalação da indústria Alcalis na região. Os pesquisadores envolvidos consideravam que Arraial do Cabo (RJ) era uma região de cultura social secularmente tradicional que tinha se desenvolvido praticamente isolada até das vilas mais próximas, e baseava-se unicamente em uma economia de pesca, de técnicas rudimentares. Mostravam a necessidade de conhecer as peculiaridades locais e de evitar destruir a cultura ou o meio em que viviam. Não se colocaram contrários à instalação da indústria, mas conseguiram que esta criasse salvaguardas e convivesse com as populações locais.
Outro projeto que Heloísa Torres tratou de levar adiante no Museu era parte do programa de Assistência Técnica da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e previa amplo levantamento ecológico no país. Para esse projeto, foi chamado o professor Stanley Cain, da Faculdade de Recursos Naturais, da Universidade de Michigan (EUA), que estabeleceu colaboração científica com o Museu Nacional. Cain era um pesquisador reconhecido no campo da pesquisa ecológica, sendo membro dos comitês de Relações Humanas e da Preservação e Recursos Naturais do Conselho de Pesquisas dos Estados Unidos.
Heloísa Alberto Torres deixou a direção do Museu em 1955.
Durante a década de 1960, muito tempo foi despendido para a implantação da Reforma Universitária. A comissão da reforma, organizada ainda em 1962, teve um representante do Museu Nacional, o antropólogo Luiz de Castro Faria (1913-2004), que assumiu a direção da instituição em 1964. Nessa época, o país vivia os tempos difíceis do início da ditadura militar, que retardou a conclusão dos trabalhos da comissão, sendo o Museu Nacional enquadrado na nova estrutura somente em 1967, no último ano da direção de Castro Faria.
A proposta de ingresso do Museu Nacional em seu novo modelo foi idealizada por Castro Faria, e incluía, além das seções tradicionais de zoologia, botânica, geologia e antropologia, as de biologia aplicada, ecologia e conservação da natureza e genética. As cinco primeiras se dedicariam à pesquisa e ao ensino da pós-graduação, as duas últimas seriam institutos especializados, cujas atividades se restringiriam unicamente à pesquisa. O Museu era considerado “um centro de pesquisa em que se aplicam os conhecimentos básicos daquelas ciências, ao reconhecimento pragmático e objetivo dos componentes geobiológicos do país e de várias regiões do mundo”.
É preciso reconhecer que, dando maior destaque à pesquisa ou equivalendo-a às demais funções de um museu de história natural, o estudo do meio ambiente, dos seres humanos que nele viviam e dos recursos que a natureza oferecia, em nenhum momento foram negligenciados no Museu Nacional. Ou seja, sendo administrativamente autônomo ou subordinado à universidade, o Museu Nacional nunca se afastou da sua prerrogativa maior que é o conhecimento da diversidade do meio físico brasileiro e das sociedades que nele habitam. E nenhum fogo extinguirá o seu legado.
Heloisa M. BertolDomingues
Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast)
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