Considerado o criador da literatura de viagem, explorador britânico registrava em seus diários suas observações da natureza, influenciando pesquisadores, mas era um criminoso típico dos tempos de colonialismo europeu
Considerado o criador da literatura de viagem, explorador britânico registrava em seus diários suas observações da natureza, influenciando pesquisadores, mas era um criminoso típico dos tempos de colonialismo europeu
William Dampier, segurando uma cópia de A New Voyage Round the World. (Por Thomas Murray, cerca de 1698. National Portrait Gallery, Londres). À esquerda, peixes, morcegos e pássaros por Dampier, A Voyage to New Holland (1703–09). Lloyd 1965:95.
CRÉDITO: IMAGENS RESEARCHGATE.NET
Charles Darwin (1809-1882), em sua famosa viagem pela América do Sul a bordo do navio The Beagle, na qual visitou as Ilhas Galápagos e que o levou a aprimorar sua Teoria da Evolução, levava, na bagagem, dois livros escritos mais de 150 anos antes. Não apenas carregava os livros, mas dizia ser discípulo do autor das obras, que considerava uma mina de informações. Os livros se chamavam “A new Voyage round the world” (1697) e “Voyages and Descriptions” (1699) e traziam detalhes minuciosos sobre plantas, animais, costumes dos povos locais e muitas outras informações. Mas o escritor desses livros não foi um cientista, ou um naturalista. Por incrível que pareça, ele foi um pirata bárbaro e cruel!
O naturalista/cientista/pirata chamava-se William Dampier (1651-1715) e, antes de se tornar um corsário, teve uma boa educação básica no condado de Somerset, na Inglaterra, onde nasceu. Foi um aluno dedicado, estudou latim e aritmética, mas sua infância não foi fácil. Antes de concluir seus estudos, com 7 anos de idade, perdeu seu pai, um fazendeiro. Aos 14, viu a mãe falecer durante uma epidemia de peste bubônica. Assim, tornou-se órfão e muito pobre. Existem poucos relatos históricos desse período de sua vida, mas Dampier se virou como pôde, trabalhando em um estaleiro e, aos 18 anos, como aprendiz de um comandante de navio. Esse foi o primeiro encontro de Dampier com o mar e a navegação, e eles nunca mais se separaram.
Passado de atrocidades
Antes de completar 22 anos, ele cruzou o Cabo da Boa Esperança e viajou para as Índias Orientais (a Indonésia nos dias atuais), aprendeu a navegar e a entender os padrões de vento e clima. Passou pelas Américas e retornou para Inglaterra, completando uma volta ao mundo. Em 1674, ele se estabeleceu na América Central, onde trabalhou por dois anos como madeireiro. Quando um furacão destruiu sua madeireira e levou todas as suas ferramentas, Dampier se viu na miséria novamente. Foi nesse momento que ele se aliou a bucaneiros da região e passou a atacar assentamentos espanhóis ao longo dos litorais da América Central.
O papel de Dampier nesses ataques nunca ficou muito claro. Ele mesmo relatou ter presenciado e participado de atrocidades. Então não se enganem! Ele foi um pirata, um fora da lei cruel e um explorador que causou sofrimento a muitos inocentes. A pergunta que nos resta é: por que um pirata se tornou reverenciado nos círculos acadêmicos na Europa e teve seus livros citados inúmeras vezes por cientistas famosos, a ponto de ter um fã como Charles Darwin?
Ele foi um pirata, um fora da lei cruel e um explorador que causou sofrimento a muitos inocentes
Para começar, Dampier tinha um espírito aventureiro e curioso. Suas visitas a novas terras se transformavam em expedições. Além de anotar detalhes de tudo que observava, coletava e analisava amostras de plantas e animais. Também documentava a vida marinha que observava do convés do seu navio. Além disso, mantinha registros cuidadosos de ventos e correntes, latitude e longitude. Tudo muito bem anotado e selado em tubos de bambu vedados com cera.
Sucesso, fama e fortuna
Seus diários tornaram-se livros, e seus livros foram uma sensação na Europa, verdadeiros best-sellers. Dampier foi até convidado para palestrar na Sociedade Real de Londres (The Royal Society), a mais prestigiosa instituição científica daqueles tempos. Com a fama, finalmente conseguiu o que sempre desejou, comandar seu próprio navio e, para melhorar, com um salário concedido pela Marinha Inglesa.
Dampier deixou de ser um pirata criminoso e ganhou o status de naturalista e explorador. Cientistas buscavam sua ajuda, queriam seu conhecimento e suas anotações. Tamanha era sua popularidade que, em 1699, a coroa inglesa pediu que ele explorasse a Austrália em busca de produtos naturais que pudessem ser comercializados. Foi durante essa viagem que Dampier teve até uma breve passagem pelo litoral da Bahia, no Brasil. Infelizmente, o que parecia um sonho para Dampier se desfez rapidamente quando a tripulação começou a se voltar contra seu comandante.
Dampier deixou de ser um simples pirata criminoso e ganhou o status de naturalista e explorador. Cientistas buscavam sua ajuda, queriam seu conhecimento e suas anotações
Os marinheiros da armada britânica não enxergavam naquele ex-pirata uma figura digna de comandar o navio, batizado de Roebuck. Dampier tinha também um temperamento explosivo e arrogante. Para piorar, seu imediato e segundo em comando, um sujeito chamado George Fisher, não estava disposto a permitir que seu superior completasse sua missão. As brigas começaram logo após a primeira parada para reabastecer mantimentos, nas Ilhas Canárias, e acabaram em violência física entre os dois. Na parada seguinte, no Brasil, Dampier colocou Fisher na cadeia, com ordens para que fosse enviado de volta à Inglaterra.
Inventor das ‘subespécies’
Um fato curioso é que, enquanto estava no Brasil, Dampier observou que havia bandos de pássaros com características muito similares entre si, mas habitando diferentes locais. Em sua opinião, esses bandos de pássaros eram fenotipicamente diferentes, mas não o suficiente para que fossem classificados como novas espécies. Ele então criou o termo subespécie para descrever esse fenômeno, um termo que anos mais tarde seria usado por ninguém menos do que Charles Darwin em seu famoso livro “A origem das espécies”.
A viagem do Roebuck para a Austrália foi um fracasso. Conflitos com as populações aborígenes deixaram a tripulação em frangalhos, e o navio não era dos melhores. O casco da embarcação não suportou a viagem de volta, e o pirata/cientista perdeu todas as suas amostras. Foi resgatado, mas chegou em Londres de mãos abanando. Para piorar ainda mais sua situação, seu antigo imediato, George Fisher, já estava há alguns meses em Londres destruindo sua reputação. Dampier foi levado à corte marcial e perdeu todo seu dinheiro.
Dampier foi um explorador e pioneiro, creditado por muitos como o criador do gênero de literatura de viagem e influenciou várias gerações de cientistas e escritores. Ele também foi um pirata criminoso, e seus escritos fazem parte de uma era na qual o colonialismo e seu poder destrutivo causaram a aniquilação de civilizações inteiras. Sua abordagem abriu caminho para a biopirataria e o saque de recursos naturais que aconteceram nos três séculos seguintes.
Seus escritos fazem parte de uma era na qual o colonialismo e seu poder destrutivo causaram a aniquilação de civilizações inteiras. Sua abordagem abriu caminho para a biopirataria e o saque de recursos naturais
Depois da malfadada viagem do Roebuck, Dampier voltou, por mais alguns anos, à pirataria e faleceu em 1715, pobre e esquecido pela sociedade.
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