O DNA é o composto orgânico que contém todas as informações necessárias para o desenvolvimento e a manutenção de um organismo e está presente em cada uma das nossas células.
Não raramente, o DNA sofre mutações e dá origem a variações nas características dos indivíduos. Algumas vezes, essas variações são benéficas ou inofensivas, como a capacidade de digerir lactose na idade adulta, os olhos azuis, as mechas brancas no cabelo (Síndrome de Waardenburg), entre outras características que surgiram na espécie humana a partir de mutações. Mas, muitas vezes, elas podem ser prejudiciais, como é o caso das doenças genéticas, como a Síndrome de Down, o daltonismo e a hemofilia.
Sabendo dessa relação entre nosso DNA e características do nosso organismo, seria possível promovermos alterações nesse material para dar às pessoas superpoderes ou melhoramentos que as tornem super-humanos (ou, ao menos, que as protejam de doenças)?
Desde os estudos da química britânica Rosalind Franklin (1920-1958) sobre a estrutura molecular do DNA, a ciência vem investigando o papel desempenhado por cada gene – cada pedaço do DNA – nas características do nosso organismo e do de outros seres vivos. Desde essa época, cientistas também vêm investigando formas de alterar o DNA das células de diversas espécies de modo a obter plantas mais resistentes a pragas, animais mais resistentes a doenças, entre outros fins.
Nos anos 1970, cientistas inauguraram a engenharia genética, ao desenvolverem a tecnologia do ‘DNA recombinante’, com a qual é possível cortar fragmentos de DNA de uma espécie e transferi-los artificialmente para outra.
O impacto da engenharia genética foi enorme para a agricultura, a pecuária, as indústrias química e farmacêutica e a medicina.
Um importante biofármaco produzido com o uso dessa técnica foi a insulina sintética para pessoas com diabetes. Os geneticistas conseguiram inserir o gene humano de produção de insulina em bactérias e elas começaram a produzir esse hormônio, acabando com a necessidade de se extrair insulina de animais e minimizando tanto a rejeição da substância pelo organismo quanto seus efeitos colaterais.
Esse processo de edição genética (corte e transferência de genes) passou a ser extremamente barato, rápido e preciso após o desenvolvimento do método CRISPR-Cas, que se baseia no sistema de defesa das bactérias.
Quando um vírus infecta uma bactéria, ela acopla o DNA do vírus ao seu próprio DNA, em uma região denominada CRISPR. Em seguida, a bactéria cria uma molécula de RNA, que é uma cópia desse DNA viral.
O RNA liga-se, então, a outra proteína, chamada Cas9, e esse conjunto se torna uma espécie de sentinela. Essa sentinela se move pela bactéria à procura de material genético que seja exatamente igual àquele do vírus que foi copiado. Se o vírus invade novamente a bactéria, a sentinela o encontra e faz um corte preciso no DNA do vírus, destruindo-o e mantendo a bactéria protegida.
A região CRISPR das bactérias já é conhecida há um bom tempo na ciência. Mas, em 2012, a bioquímica e bióloga molecular norte-americana Jennifer Doudna e a microbiologista e imunologista francesa Emmanuelle Charpentier descobriram que esse sistema CRISPR-Cas é programável, ou seja, podemos entregar a ele a ‘foto’ de uma parte exata do DNA para que ela seja cortada. Além disso, esse sistema funciona em qualquer célula viva, logo, podemos programá-lo para cortar genes de plantas, animais e até de humanos.
Doudna e Charpentier também mostraram que, inserindo em uma célula o CRISPR-Cas juntamente com um novo material genético, é possível não só recortar um pedaço de DNA indesejável, como também fornecer imediatamente um pedaço para reparação. Ou seja, podemos literalmente trocar um gene que não nos interessa por outro que queremos.
O uso do método CRISPR-Cas está reduzindo custos na agricultura, na pecuária e até na produção de fármacos e vacinas. Na medicina, são muitos os estudos em andamento que já vêm demonstrando o potencial dessa tecnologia no tratamento do HIV e de outros retrovírus, no tratamento de alguns cânceres e na cura de inúmeras doenças genéticas.
Uma das possibilidades de tratamento de câncer consiste em retirar células imunes do organismo de uma pessoa, mudar alguns códigos genéticos delas com CRISPR-Cas para que se tornem excelentes caçadoras de tumores e devolvê-las ao organismo, não gerando, assim, qualquer rejeição ou efeito colateral. Outras formas de entregar o CRISPR-Cas na região certa do organismo que se deseja modificar também estão sendo estudadas e ainda representam um importante desafio tecnológico.
Mas o que podemos ter certeza é que o CRISPR-Cas nos coloca ainda mais próximos da descoberta de tratamentos e curas de muitas doenças e acelera significativamente as pesquisas na área.
Em 2018, o biofísico chinês He Jiankui chocou o mundo ao anunciar que havia gerado os primeiros bebês geneticamente modificados da história. O cientista fez uma alteração no embrião, mais precisamente no gene CCR5, conhecido por ser a ‘porta de entrada do HIV’, com a expectativa de deixar as bebês gêmeas imunes ao vírus.
Apesar da ‘boa intenção’, o cientista foi execrado pela comunidade científica. Primeiro, porque ainda não conhecemos profundamente nem o genoma humano por completo, nem o método CRISPR, que pode provocar alterações ainda desconhecidas no nosso organismo e efeitos inesperados. Segundo, porque editar embriões (assim como editar DNA de células reprodutoras) faz com que essas alterações sejam herdadas pelas próximas gerações. Isso pode alterar, a longo prazo, toda a composição do DNA da nossa espécie e também levar a consequências enormes e imprevisíveis.
Uma publicação recente na revista Nature Medicine mostrou que esse mesmo gene CCR5 pode estar associado à longevidade. Assim, ao alterá-lo, o cientista pode ter reduzido a expectativa de vida das bebês.
Apesar da polêmica, é certo que a popularização da edição de genomas de bebês é questão de tempo. Atualmente, já ocorre seleção de bebês com base na genética – mesmo com os dilemas éticos envolvidos. Durante a gestação, é possível sequenciar o genoma do bebê e saber se ele terá alguma predisposição genética desfavorável (como a Síndrome de Down). Em muitos países (como os Estados Unidos), a mãe pode optar por interromper a gravidez quando descobre que o bebê terá a Síndrome de Down. Com o avanço da engenharia genética, será possível reverter essa e outras condições genéticas, evitando, assim, o aborto..
O assunto fica mais nebuloso quando atravessamos a intangível fronteira que separa a busca pela saúde e a busca pelo melhoramento.
Se pudermos acabar com doenças que o bebê venha a desenvolver, o que nos impediria de dar a ele mais imunidade? Por que não melhorar também o seu metabolismo, sua visão? E que tal fazermos com que o bebê seja alto, forte e não perca cabelo quando adulto? E se pudermos torná-lo mais inteligente? Se você fosse ter um filho, não gostaria que ele fosse ‘perfeito’ (ou quase)?
Com a engenharia genética, seremos capazes de criar um Hulk? Ou quem sabe criar uma espécie de
super-soldado, como o Capitão América? Em partes, sim. Existem genes associados à resistência física, à performance atlética, à força muscular, e melhoramentos nesses aspectos podem ser possíveis no futuro.
Mas tudo isso levanta uma série de questões ainda sem respostas. Qual o impacto desses melhoramentos genéticos nos esportes competitivos? Qual o impacto no aprofundamento das desigualdades sociais (já que pessoas com condições de pagar por uma terapia gênica poderão ter uma genética bastante melhorada)? Qual o impacto sobre a diversidade da espécie humana? Essa busca por um melhoramento do ser humano reforçará a ideia de que podemos criar uma espécie superior, livre de ‘defeitos’? Em um futuro geneticamente desenhado, você – da forma como você é hoje – existiria?
Ainda há muitas barreiras tecnológicas a serem vencidas até chegarmos ao melhoramento genético da espécie humana. Mas o método CRISPR cria um atalho que nos deixa ainda mais próximos desse dia e torna mais urgente a discussão das questões éticas envolvidas.
Se, no futuro, poderemos ter pessoas com genes que lhe garantam superpoderes, como os X-Men, eu não sei. Mas, se a discussão sobre os aspectos éticos e a regulamentação da edição genética em humanos não avançar e se aprofundar, muitos ‘vilões’ do mundo real poderão acabar utilizando essa ferramenta de formas desastrosas e descontroladas.
Lucas Mascarenhas de Miranda
Físico e divulgador de ciência
Universidade Federal de Juiz de Fora
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