O Observatório Pierre Auger é o maior complexo de detectores já construído para o estudo dos raios cósmicos ‒ núcleos atômicos que bombardeiam a todo instante a Terra, vindos de todas as direções do universo.
Com 3 mil km2, o observatório cobre uma área equivalente ao dobro daquela da cidade de São Paulo. Seu objetivo principal é possibilitar o estudo dos raios cósmicos de mais altas energias já observados até hoje, para obter informação sobre suas origens, seus processos de aceleração e propagação, suas interações, sua composição e seu espectro energético.
Esses raios cósmicos de altíssima energia ‒ com dimensão trilhões de vezes menor que a de um grão de areia ‒ têm energias acima de 1018 elétrons-volt, o que equivale àquela carregada por uma bola de tênis sacada por um tenista profissional.
O Observatório Auger é operado por uma colaboração internacional de mais de 400 cientistas de 17 países, envolvendo físicos, engenheiros, técnicos e estudantes de pós-graduação.
Dezenas de pesquisadores brasileiros têm participado ativamente de todas as etapas desde sua concepção ‒ na década de 1990 ‒, contribuindo para a construção e o desenvolvimento de detectores e sua posterior operação, bem como para os vários aspectos das análises dos dados. Várias partes dos detectores foram fabricadas por indústrias brasileiras que desenvolveram equipamentos e técnicas especializadas, tendo em vista o propósito a que se destinavam os detectores.
O Auger ‒ como, por vezes, é chamado ‒ está localizado nos pampas argentinos, nas proximidades da cidade de Malargüe, a cerca de 370 km ao sul da cidade de Mendoza e a 1,4 mil m acima do nível do mar.
O desenho do observatório foi completado em 2002, e um conjunto de 32 protótipos dos detectores operou até 2005, quando a construção da versão final do observatório teve início. Mas, já desde 1º de janeiro de 2004, os detectores registravam dados continuamente.
Ao chegar à Terra e adentrar a atmosfera, um raio cósmico altamente energético se choca com um núcleo de uma das moléculas que compõem o ar, gerando fragmentos que são novas partículas, as quais, por sua vez, também podem sofrer novas colisões (interações), criando mais partículas. Como resultado, chegam simultaneamente ao solo bilhões de partículas de menor energia ‒ formando um ‘chuveiro atmosférico’ ‒, as quais podem ser registradas nos detectores.
Para a detecção desses chuveiros, o Observatório Auger explora duas técnicas complementares: detectores de luz Cherenkov e telescópios de fluorescência. Cada um desses 1.660 detectores ‒ espalhados pelos 3 mil km2 e distantes entre si 1,5 km ‒ consiste de um tanque em plástico (polietileno) cheio de água puríssima e contendo três fotomultiplicadoras (detectores de luz), painel solar, baterias para alimentar a eletrônica, uma antena para a transmissão de dados até a central de aquisição e um GPS, para registrar o tempo da chegada das partículas do chuveiro ao detector.
Os fótons (partículas de luz) na água, gerados pelo efeito Cherenkov, são coletados pelas fotomultiplicadoras. O efeito Cherenkov ocorre quando partículas, viajando em um meio material, em velocidades muito próximas à velocidade da luz no vácuo, têm velocidade maior do que a de propagação da luz naquele meio.
Vinte e quatro telescópios de fluorescência estão instalados em quatro prédios localizados em pequenas elevações no perímetro da área e cobrem a atmosfera acima do arranjo de detectores na superfície. Os telescópios medem a luz de fluorescência emitida, em todas as direções, quando moléculas de nitrogênio são excitadas pela passagem das partículas do chuveiro. Cada telescópio coleta a luz que incide sobre um espelho esférico de 11 m2 e é por ele refletida em uma câmara com 440 fotomultiplicadoras.
Os dados coletados pelos detectores utilizando essas duas técnicas permitem estimar o número de partículas do chuveiro e, finalmente, a energia do raio cósmico que deu origem ao chuveiro e a direção da qual ele veio no céu.
Ao longo dos anos, novos detectores foram gradativamente incorporados ao observatório, como novos telescópios com campo de visão mais elevado, arranjos de antenas de rádio e de detectores subterrâneos de múons (partículas ‘irmãs’ dos elétrons, mais pesadas que eles e altamente penetrantes). Esses novos equipamentos possibilitaram obter mais detalhes sobre os chuveiros e as partículas que os iniciaram.
O Brasil tem ampla tradição em pesquisa de raios cósmicos, iniciada ainda na década de 1930 com o físico ítalo-russo Gleb Wataghin (1899-1986), em São Paulo, e com Bernhard Gross (1905-2002), no Rio de Janeiro. Um dos pioneiros mais famosos foi o físico brasileiro César Lattes (1924-2005), um dos descobridores, em 1947, dos píons, partículas elementares que servem como ‘cola’ dos prótons e nêutrons, mantendo o núcleo atômico coeso. Os píons foram justamente descobertos em experimentos envolvendo raios cósmicos.
Ao longo dos anos, pesquisadores brasileiros estiveram sempre envolvidos em diversas colaborações científicas internacionais dedicadas ao estudo dessas partículas mais energéticas do universo. A participação de físicos brasileiros no Observatório Pierre Auger, na Argentina remonta à década de 1990, quando o projeto estava sendo concebido.
Desde o início, a participação de cientistas brasileiros nas pesquisas desenvolvidas no Observatório Pierre Auger tem sido apoiada pelas agências de fomento, como Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
Os pesquisadores brasileiros no Observatório Pierre Auger estão ligados à Universidade de São Paulo (Instituto de Física em São Paulo, Instituto de Física em São Carlos e Escola de Engenharia em Lorena), Universidade Estadual de Campinas (SP), Universidade Federal do ABC (SP), Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Observatório do Valongo (RJ), Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (RJ), Universidade Estadual de Feira de Santana (BA) e Universidade Federal do Paraná (setor Palotina).
Os dados obtidos pelo Observatório Auger concordam com a previsão de um modelo teórico (tecnicamente, denominado GZK), segundo o qual há uma supressão do fluxo de raios cósmicos com energias acima de 5 ´ 1019 eV ‒ este valor de energia é conhecido como limite (ou corte) GZK. Esses raios cósmicos, ao longo de sua trajetória rumo à Terra, se chocariam continuamente com fótons que preenchem todo o universo, perdendo boa parte de sua energia e gerando outras partículas nas colisões.
Porém, ao se cruzar essa informação da supressão observada do fluxo com a estimativa das massas desses raios cósmicos conforme obtida das análises dos dados, parece que a explicação pode não ser tão simples quanto sugere a teoria. As análises dos dados do Auger revelam que os raios cósmicos são mais pesados quanto maiores forem as suas energias, passando de leves, como prótons e núcleos de hélio, para mais pesados, como nitrogênio e carbono.
Essa observação abre a possibilidade para uma explicação alternativa da supressão do fluxo, indicando um possível limite para a energia que os raios cósmicos possam atingir. Pesquisas mais aprofundadas com detectores aprimorados se fazem necessárias para certificar a explicação da supressão.
As análises também mostram que os raios cósmicos não chegam em igual número de todas as direções no céu. Para aqueles com energias acima de 8 ´ 1018 eV, há uma direção preferencial, da qual chegam em maior número. Essa direção não aponta para o centro de nossa galáxia ‒ como seria de se esperar, pois há ali um buraco negro, fonte intensa de radiação e onde há maior densidade de objetos astrofísicos candidatos a fontes de raios cósmicos ‒, mas para 125° dele, indicando que a origem dos raios cósmicos mais energéticos é extragaláctica.
As análises das direções dos raios cósmicos detectados possibilitaram mostrar correlações com as direções tanto de galáxias-berçário (ou galáxias starburst) quanto de galáxias com núcleo ativo. Ou seja, esses dois corpos celestes podem ser possíveis fontes dos raios cósmicos de altíssimas energias.
Finalmente, foi possível extrair dos dados informações importantes sobre interações entre hádrons (partículas formadas por quarks, como prótons, píons, káons) a altíssimas energias, acima das conseguidas em aceleradores. Por exemplo, píons (partículas responsáveis pela coesão do núcleo atômico) são formados em abundância nos chuveiros atmosféricos.
Dados do Observatório Auger possibilitaram os avanços citados acima sobre nosso conhecimento dos fenômenos altamente energéticos ligados aos processos mais violentos que ocorrem no universo.
Porém, as fontes astrofísicas dessas partículas de energias extremas ainda não foram identificadas. Para enfrentar esse desafio, o Auger está iniciando uma nova fase, conhecida coloquialmente como ‘AugerPrime’, com novos detectores (cintiladores) adicionados àqueles já existentes (tanques e telescópios).
Essa atualização possibilitará medidas mais completas das partículas e maior conhecimento sobre a composição química dos raios cósmicos e de processos que ocorrem nas fontes astrofísicas nas quais eles se originaram.
Mais uma vez, com o AugerPrime, será possível estudar interações entre partículas em energias que não são alcançáveis nos grandes aceleradores de partículas já construídos.
Carola Dobrigkeit
Instituto de Física Gleb Wataghin,
Universidade Estadual de Campinas (SP)
Ronald Cintra Shellard
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ)
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