BRASIL 50 graus
Ondas de calor no contexto das mudanças climáticas

Departamento de Geografia
Universidade de Indiana (EUA)
Instituto de Geociências
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Este ano, todos os recordes de temperatura do planeta foram rompidos: 2023 é o mais quente da história. O Brasil foi assolado, até este momento, por oito ondas de calor. Surge desse cenário dantesco a seguinte pergunta: essas temperaturas intensas têm a ver com o aquecimento global? Depois de se debruçarem sobre a questão, pesquisadores concluíram: sim, há nisso um peso significativo das mudanças climáticas. Portanto, a principal ação é reduzir as emissões de gases de efeito estufa para estabilizar as temperaturas globais.

CRÉDITO: IMAGENS ADOBE STOCK

Ano: 2016. Os registros de temperatura globais haviam marcado surpreendente +0,94 grau celsius (oC) a mais em relação à média histórica do século passado, tendo ultrapassado o aquecimento recorde de +0,04 oC registrado no ano anterior. 

A anomalia foi ainda maior se consideramos só os valores registrados nas porções continentais: +1,43 oC. Em âmbito regional, as anomalias chegaram a +0,75 oC no hemisfério Sul, +1,13 oC no hemisfério Norte e a surpreendentes +2,06 oC no Ártico. 

Esses dados foram mais do que suficientes para credenciar 2016 como o ano mais quente já registrado. Mas a comunidade científica já sabia antecipadamente que aquele ano, na verdade, seria o mais quente até então.

Ano: 2023. Todos os recordes de temperatura do planeta foram rompidos. Janeiro foi identificado como o sétimo mais quente da história. Fevereiro foi anunciado como o quarto mais quente, seguido por março como o segundo mais quente da história. 

Finalmente, chegamos a junho, que, de fato, inaugurou o início de uma série de meses que seriam marcados como aqueles mais quentes já registrados. 

Em resumo: julho, agosto, setembro, outubro, novembro – e, ao que tudo indica, dezembro – terminaram de consolidar este ano como o mais quente da história (figura 1).

Figura 1. Gráfico de anomalias globais de temperatura do ar ilustra o que cientistas vêm alertando a tempos: as mudanças climáticas globais deflagram o aumento da temperatura do ar em escala global

CRÉDITO: PROGRAMA COPERNICUS (2023)/UNIÃO EUROPEIA

Isso, sem contar outra informação digna de nota: os 10 anos mais quentes da história foram registrados entre as décadas de 2010 (mais especificamente, 2014) e 2020. Ou seja, os anos mais recentes têm se apresentado como os mais quentes em escala global. 

Cientistas têm se debruçado incansavelmente para aprofundar o entendimento das causas e dos mecanismos que podem ter produzido esses resultados. As respostas têm sido convergentes e, cada vez mais, inequívocas: apesar de identificada a participação de fenômenos naturais e inerentes ao sistema climático, a constante quebra de recordes de temperatura em escala global seria impossível sem a participação das mudanças climáticas.

Apesar de identificada a participação de fenômenos naturais e inerentes ao sistema climático, a constante quebra de recordes de temperatura em escala global seria impossível sem a influência das mudanças climáticas

Portanto, a combinação entre modos de variabilidade naturais e mudanças climáticas globais está longe de ser equilibrada: considerando principalmente 2016 e este ano, o peso das mudanças climáticas foi significativo, tendo sido determinante para a ocorrência de eventos extremos de tempo atmosférico, como ondas de calor.

El Niño, La Niña e efeito estufa

O que temos em comum entre 2016 e este ano? Resposta: a já identificada (e amplamente investigada) atuação de um modo de variabilidade natural que é um velho conhecido da ciência do clima: o El Niño. 

Wanderson Luiz Silva, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro, descreveu (ver seção ‘Leia+’) as principais características desse modo de variabilidade: o El Niño (e sua oposta, La Niña) são marcados pelo aumento (ou diminuição, no caso da La Niña) da temperatura média da superfície do mar na faixa do oceano Pacífico Equatorial. 

Nessa região, esse aumento (ou diminuição) tem influência direta dos alísios. Formados nas zonas subtropicais, a baixas altitudes, esses ventos úmidos se enfraquecem (ou se fortalecem) de modo não linear, em escala temporal entre dois e sete anos.

Esse modo de variabilidade influencia (ou, tecnicamente, ‘modula’) o tempo e o clima em todo o planeta – inclusive, na América do Sul e, mais destacadamente, no Brasil. Em situação de El Niño, sua atuação se apresenta mais destacada nos meses de primavera e segue verão adiante. 

No Brasil, sua ocorrência típica é marcada pelo aumento das condições chuvosas no Sul – e elevação das temperaturas no Centro-Oeste e parte do Sudeste –, bem como pelo déficit de precipitação no Nordeste e em parte do Norte. 

Ainda que as influências do aumento das emissões de gases de efeito estufa no El Niño (La Niña) estejam por ser mais profundamente conhecidas, estudos recentes apontam que as mudanças climáticas globais, potencialmente, apresentam participação na ocorrência de eventos El Niño (La Niña), tornando ambos mais extremos.

Vale destacar que a ocorrência de eventos El Niño associados aos impactos das emissões de gases de efeito estufa não significa necessariamente que, sob a atuação desse fenômeno, serão mais comuns dias isolados de calor mais intenso ou dias consecutivos com temperaturas extremamente altas na região Centro-Oeste e parte do Sudeste. 

Dias extremamente quentes podem ocorrer também sob atuação de La Niña ou sob condições neutras no oceano Pacífico.

Dias extremamente quentes podem ocorrer também sob atuação de La Niña ou sob condições neutras no oceano Pacífico

Mas os dois anos mais quentes da história (2016 e este ano) desafiam os cientistas e podem sugerir que, à medida que os eventos El Niño (La Niña) se tornam mais extremos em decorrência das mudanças climáticas, seus efeitos, em termos de aumento/déficit de precipitação e dias de temperaturas mais elevadas, também podem ser intensificados.

Influência das mudanças climáticas?

Questão importante diz respeito à escala de processos associada ao tempo atmosférico e ao clima. Tempo e clima são conceitos relacionados, mas distintos. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) define o tempo atmosférico como o estado da atmosfera em determinado momento, caracterizado pelos elementos meteorológicos, incluindo temperatura, precipitação, pressão atmosférica, vento e umidade.

Já o clima refere-se às condições meteorológicas consistidas em valores médios para certo local em longo período. A OMM define um período de 30 anos para determinar as condições médias do clima de dado lugar. 

Essa diferenciação é fundamental quando buscamos compreender fenômenos complexos do sistema climático. No caso aqui discutido, nem sempre um mês registrado como mais quente vai ser o mesmo mês em que também se registra um dia anomalamente quente ou dias consecutivos extremamente quentes – que é o caso das ondas de calor.

Mas 2016 e este ano foram marcados por eventos extremos de tempo atmosférico (notadamente, ondas de calor), num cenário em que dias extremamente quentes consecutivos acabaram ajudando a ‘puxar’ as médias de temperatura mensais para cima, contribuindo para a quebra de recordes de alguns dos meses. 

Esse foi o caso da onda de calor no Ártico em 2016. Essa região apresentou, em termos médios para o ano, anomalias da ordem de +2 oC, como citamos acima. Ainda que, de forma não linear, os impactos de episódios El Niño no Ártico sugiram a redução do gelo marinho, o mês de novembro de 2016 apresentou uma onda de calor que registrou valores de anomalia diários da ordem de +15 oC em relação à média histórica para o mês. 

Após intensa investigação, pesquisadores atestaram que esses valores anômalos foram efetivamente atribuídos às mudanças climáticas globais.

O mesmo se pode dizer sobre este ano quanto às ondas de calor que assolaram parte significativa do território brasileiro. O Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) define onda de calor como o período de dois a três dias consecutivos com temperaturas, pelo menos, 5 oC acima da média do mês, em determinado local.

Este ano, até novembro, foram registradas oito ondas de calor – cinco delas a partir do mês de agosto, quando o El Niño já estava instalado. A onda de calor ocorrida em setembro registrou pico de 43,5 oC de temperatura no município de São Romão (MG). Este novembro, no Brasil, registrou valores absolutamente sem precedentes: o município de Araçuaí (MG) apresentou, no evento de onda de calor, um pico de temperatura de 44,8 oC.

Este ano, até novembro, foram registradas oito ondas de calor – cinco delas a partir do mês de agosto, quando o El Niño já estava instalado

Novamente, após intensa investigação, pesquisadores atestaram a influência das mudanças climáticas na ocorrência das ondas de calor do mês de setembro. Esses dados convergem com estudos feitos pelo INMET sobre o aumento das temperaturas médias no país.

Figura 2. Estudo do INMET aponta quebra de recordes de temperatura por meses seguidos; ocorrência do El Niño e impactos das emissões de gases de efeito estufa são contundentes na geração desses eventos

CRÉDITO: INMET (2023)

É preciso mais

O aumento de episódios extremos representa uma ameaça concreta às formas de organização social contemporâneas e à própria vida social. As recentes ondas de calor acabaram por colocar na ordem do dia a necessidade de se estabelecerem estratégias e planos de contingência – principalmente, nos espaços urbanos, para atuação em curto prazo.

O aumento de episódios extremos representa uma ameaça concreta às formas de organização social contemporâneas e à própria vida social

Projetos de médio prazo associados à mitigação do calor também entraram no radar das administrações públicas municipais e estaduais. Por exemplo, incremento nos planos de arborização urbana, construção de espaços públicos verdes nas grandes cidades, instalação de chafarizes e melhoria na logística e nas operações dos transportes coletivos. 

Em escala internacional, debates mais amplos sobre a importância do combate ao desmatamento, da manutenção da floresta em pé e da necessidade de colaboração entre diferentes agentes da sociedade civil (incluindo a indústria do petróleo) estiverem presentes na pauta da mais recente Conferência das Partes, a COP 28, em Dubai. 

Mas, sabemos, é preciso mais.

Contexto de esperança

Os cenários sobre as emissões de gases de efeito estufa se apresentam, no geral, como pouco animadores. Novamente, a COP aconteceu, repleta de pressão e mobilização de variados grupos sociais – sobretudo, daqueles mais impactados neste momento e dos que podem ser impactados no futuro. 

Apesar do cenário desanimador, a sensação de que ainda há luz no fim do túnel segue presente. Esse contexto de esperança acontece menos por uma questão utópica e anticatastrofista do que por conta das possibilidades concretas que temos, como sociedade, de combater as mudanças climáticas e, em longo prazo, reverter o cenário catastrófico que se impõe. 

Na pandemia da covid-19, o mundo assistiu a uma redução de quase 7% nas emissões de gás carbônico (CO2) – principal ‘vilão’ do aquecimento global – e de 35% de óxidos de nitrogênio (NOx) – o que ocorreu majoritariamente em 2020. 

Esse cenário foi suficiente para a identificação de melhoria da qualidade do ar em vários locais do planeta, apesar de não ter sido suficiente para contribuir de modo significativo para a estabilização das médias de temperatura globais. 

A redução sustentada das emissões de gases de efeito estufa por décadas é imprescindível para que se possa vislumbrar a estabilização das temperaturas globais. A manutenção das metas de emissões com limite de até 1,5 oC até 2035 indicam que a mobilização de ativistas e grupos sociais surtiu efeito, abrindo horizontes mais promissores para a próxima COP.

A redução sustentada das emissões de gases de efeito estufa por décadas é imprescindível para que se possa vislumbrar a estabilização das temperaturas globais

ARMOND, NUBIA BERAY. Geografia do Clima em Tempos de Emergência(s) Climática(s): um ensaio pelo materialismo. In: SANT’ANNA NETO, J. L. (org). Clima, Sociedade e Território. Jundiaí: Paco Editorial, 2021.

SILVA, WANDERSON LUIZ. O fenômeno El Niño está se intensificando com as mudanças climáticas? Ciência Hoje, n. 402, setembro, 2023.

MARTINS, ELISA. Justiça socioambiental para enfrentar a crise climática (entrevista com Maureen Santos). Ciência Hoje, n. 404, novembro, 2023.

DAHER, VALQUÍRIA. As mudanças climáticas já afetam nossas vidas (entrevista com Argemiro Teixeira). Ciência Hoje, n. 387, maio, 2022.

IPCC. Climate Change 2023 – Synthesis Report. Disponível em https://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/downloads/report/IPCC_AR6_SYR_FullVolume.pdf

Seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Outros conteúdos desta edição

614_256 att-85187
725_480 att-85165
725_480 att-85004
614_256 att-85256
725_480 att-85016
725_480 att-84980
614_256 att-85204
725_480 att-84987
725_480 att-85119
725_480 att-84919
725_480 att-84907
725_480 att-85058
725_480 att-85037
725_480 att-84894
614_256 att-85227

Outros conteúdos nesta categoria

725_480 att-81551
725_480 att-79624
725_480 att-79058
725_480 att-79037
725_480 att-79219
725_480 att-86776
725_480 att-86725
725_480 att-86535
725_480 att-86460
725_480 att-86055
725_480 att-85946
725_480 att-86145
725_480 att-86160
725_480 att-85705
725_480 att-85728