O fato de a Terra ser redonda é incontestável: evidências científicas acumuladas ao longo de mais de dois mil anos dão robustez ao formato de nosso planeta. A Terra é, em ótima aproximação, uma esfera. Mas como o americano-canadense Daniel Clark mostra em seu excelente documentário A Terra é plana (Behindthe curve, no original), disponível na provedora global de filmes Netflix, nem todo mundo parece concordar.
Os terraplanistas, como são chamados aqueles que acreditam que a Terra é, na verdade, um disco plano, questionam a forma do nosso planeta. Pode parecer inofensivo; afinal, que mal faz alguém ter suas crenças esquisitas? O problema, porém, é que, no momento em que se lançam dúvidas sobre algo tão fundamental e consolidado como a esfericidade da Terra, passa-se a suspeitar de tudo: se o homem pousou na Lua; se, de fato, ocorreu um atentado terrorista em 11 de setembro de 2001; se vacinas têm eficácia etc. Não é preciso ter muita imaginação para perceber as consequências nefastas que podem decorrer daí.
Clark acompanha alguns personagens do universo terraplanista; em particular, o ex-jogador profissional de videogame e celebridade do movimento Mark Sargent, que mora com a mãe, e a podcaster Patricia Steere. Em vários momentos do documentário, Sargent aparece com uma camisa com os dizeres ‘Eu sou Mark Sargent’, logo acima de um mapa de Terra plana, ilustrando a necessidade dele em ser reconhecido.
Os argumentos de Sargent em favor de uma Terra plana são baseados na experiência pessoal, na linha “Olhe para o horizonte? O que você vê?”. Além disso, ele demonstra uma rejeição seletiva de ciência, alegando que os cientistas estão perdendo a guerra sobre a forma da Terra e que, desesperados, “jogam matemática em cima da gente”. O que importa, para ele, não é o que a ciência diz, mas o que nós experimentamos, o que vemos.
Por um lado, é claro que, em muito boa aproximação, pequenos trechos da Terra podem ser considerados planos: ninguém se preocupa com a curvatura de um campo de futebol. Para fins práticos, do dia a dia, é uma boa hipótese. Mas, quando avançamos um pouco mais e tratamos de situações extremas, não se pode mais usar essa aproximação de Terra plana. Linhas de trem, balística e companhias aéreas sabem, e usam o tempo todo, o fato de a Terra ser redonda e girar ao redor de seu próprio eixo.
O universo terraplanista, oriundo do mundo das ideias conspiratórias, previsivelmente não é livre de controvérsias. Alguns, como Sargent e Steere, defendem que a Terra é um disco com um domo gigante ao seu redor, onde está o firmamento – algo que Sargent explica ser semelhante ao que se vê no filme O show de Truman, com um anel de gelo ao redor, no estilo Game of Thrones. Já outros terraplanistas afirmam que não existe domo algum, e atacam Sargent e Steere de forma virulenta: são agentes do governo, pois, por trás da “farsa” do globo, estão os governos do mundo todo, e a agência espacial norte-americana (Nasa) é simplesmente uma marionete para simular viagens espaciais e convencer a todos de que a Terra não é plana.
Um dos argumentos usados para demonstrar a conexão de Patricia Steere com o governo está no próprio nome dela: Patri…CIA. Sim, as iniciais da famosa central de inteligência norte-americana. E essa não é nem a alegação mais absurda.
Apesar de toda a tensão criada contra a ciência e a que existe entre diferentes correntes terraplanistas, Clark os trata com um respeito exemplar, e esse é outro aspecto extremamente importante do documentário. Não devemos olhar para esse grupo como gente de má-fé, mas como pessoas que têm uma mente inquisidora e que se perderam no meio do caminho. Em um evento de popularização da ciência, o astrofísico norte-americano Lamar Glover disse que “terraplanistas são cientistas em potencial” e que devemos nos aproximar deles, não apenas ignorá-los. Segundo Glover, se um movimento como esse tem crescido é porque “nós, cientistas, falhamos”.
A tese de Glover fica muito evidente ao acompanharmos os experimentos de dois grupos que decidem mostrar de uma vez por todas que a Terra é plana e estacionária. Aqui resisto à tentação de dar um spoiler (revelar parte do filme), mas já adianto que se trata de dois belos experimentos.
O documentário de Clark é uma investigação respeitosa e profunda sobre esse momento paradoxal que vivemos, em que tanta informação está acessível a todos, ao alcance de um clique, mas que carrega junto com ela um potencial devastador de desinformação. Assistir ao documentário é obrigatório para qualquer um que defenda a ciência. E defender a ciência é uma obrigação daqueles que a praticam. O filme mostra que temos que nos esforçar em ajudar as pessoas que estão fora do ambiente científico tradicional a compreender o mundo, e a redescobrir que a Terra é, de fato, uma esfera.
Marco Moriconi
Instituto de Física,
Universidade Federal Fluminense
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