Interações moleculares: As forças que mantêm a matéria coesa e suas aplicações tecnológicas

Instituto de Química
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Por que insetos caminham sobre a água? Por que se formam gotas de orvalho? A explicação para esses fenômenos começou ainda na Antiguidade, com a ideia de forças de ‘amor’ e ‘ódio’. Séculos depois, a ciência moderna deu explicações coerentes para as chamadas interações intermoleculares, responsáveis pela coesão da matéria. Hoje, esse conhecimento tem aplicações importantes não só em nosso cotidiano, mas também em áreas como medicina, meio ambiente e indústria.

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Caminhar sobre as águas é um ‘milagre’ digno de registro para humanos, mas para alguns insetos, como os da família dos gerrídeos (ou Gerridae), é só rotina.

O tamanho pequeno desses insetos é parte da receita para essa habilidade, mas há algo mais interessante acontecendo nos bastidores desse feito notável – e tem a ver com as forças de atração entre as moléculas. 

Esse ingrediente secreto é responsável por uma série de outros fenômenos que não têm ligação alguma com insetos. Por exemplo, a formação de gotas de orvalho (figura 1) ou de nuvens; a capacidade do carvão ativo de atuar na filtragem de água; e a do sabonete de tirar a sujeira de nossos corpos depois de um longo dia de trabalho.

Figura 1. Inseto sobre a água (acima) e formação de gotículas de orvalho

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Esses fenômenos são explicados por uma ideia que já rodeava as discussões sobre a natureza da matéria na Grécia antiga, em torno do século 4 a.C.

Esses fenômenos são explicados por uma ideia que já rodeava as discussões sobre a natureza da matéria na Grécia antiga, em torno do século 4 a.C

‘Amor’ e ‘ódio’

Em um dos fragmentos dos textos do filósofo grego Empédocles (495-430 a.C.), são apresentadas as forças do ‘amor’ e ‘ódio’ que unem e afastam os quatro elementos (terra, água, fogo e ar), gerando, assim, essas diferentes formas da matéria – a necessidade dessas forças atrativas e repulsivas entre os constituintes da matéria foi comum ao longo da história.

A coesão observada na água e em outros líquidos sugere a necessidade de forças atrativas. Afinal, por que duas gotas de água se juntam, quando aproximadas? Como o vapor d’água se condensa em superfícies frias? Algo está mantendo suas moléculas unidas. Mas o que seria?

Por outro lado, é muito difícil pressionar uma seringa cheia de líquido, caso a ponta esteja selada. Se as moléculas de água se atraem, por que não ‘colaboram’ quando tentamos deixá-las mais próximas? Essa é uma evidência simples de que deve haver também forças repulsivas.

Leis universais

A ideia de que existem forças atuando entre as coisas se manifestou de forma mais contundente no século 17, com a revolucionária lei da gravitação universal, do físico britânico Isaac Newton (1642-1727).

Essa lei depende da massa dos objetos e da distância em que se encontram um do outro: quanto maiores suas massas e mais próximos estiverem entre si, maior será a força gravitacional entre eles. Essa lei permitiu, por exemplo, antecipar o movimento dos planetas, estrelas e outros corpos celestes.  

Mas a lei da gravitação é sempre atrativa – onde estaria o ‘ódio’ (repulsão) dos gregos para complementar o ‘amor’? Mais: a lei da gravitação explica bem a atração entre corpos com massas macroscópicas (de maçãs e pedras a planetas e estrelas, por exemplo), mas não aquela presente em objetos microscópicos (moléculas, átomos, partículas).

Mas a lei da gravitação é sempre atrativa – onde estaria o ‘ódio’ (repulsão) dos gregos para complementar o ‘amor’?

A resposta a essas perguntas demandaria séculos de avanços da ciência. Na escala atômica, parte dela veio com a lei de Coulomb – referência ao físico francês Charles Coulomb (1736-1806) –, a qual explica as chamadas interações eletrostáticas.

Curiosamente, essa lei apresenta estrutura semelhante à da lei da gravitação de Newton. No caso, a força entre dois corpos eletrizados é diretamente proporcional à carga elétrica de cada um deles e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa. 

Mas, diferentemente da gravidade, essa força pode atrair ou repelir as partículas, caso estas tenham, respectivamente, cargas elétricas diferentes ou iguais.

Forças intermoleculares

Mas o que mantém as moléculas próximas umas das outras, como em um líquido? Já descartamos a gravidade, por ser fraca demais em corpos microscópicos.

Mas o que mantém as moléculas próximas umas das outras, como em um líquido?

Grande parte das moléculas é eletricamente neutra, o que deveria excluir também qualquer papel para a lei de Coulomb. Mas essa neutralidade ocorre por causa do equilíbrio entre as cargas – e não pela ausência delas. 

Moléculas são formadas por átomos, que são constituídos por um núcleo – carregado positivamente (prótons) – e por elétrons (negativos). Em moléculas neutras, o somatório total dessas cargas é zero. Mas as regiões positivas em uma delas pode interagir com as negativas em outra. 

As interações entre moléculas têm uma dinâmica complexa. Mas os resultados possíveis dessa combinação de forças (atrativas ou repulsivas) podem ser classificados em um número pequeno de categorias. Essas forças resultantes são comumente chamadas forças intermoleculares (figura 2).

Figura 2. Esquema simplificado das interações eletrostáticas presentes entre duas moléculas de água(H20): as regiões exteriores representam os elétrons; os núcleos de hidrogênio estão em branco; os de oxigênio, em vermelho; as setas vermelhas representam as interações repulsivas, ou entre núcleos, ou entre elétrons; as azuis, a atração entre os núcleos e os elétrons. A combinação dessas diferentes interações eletrostáticas é um tipo de interação intermolecular

Crédito: Baseado em https://chemistrytalk.org

Formas de atração

Moléculas têm diferentes formas de forças intermoleculares atrativas, as quais determinam, entre outras coisas, o estado físico de uma substância em um dado ambiente. Essas forças dependem da distribuição de carga. 

A intensidade e a natureza dessas forças costumam ser classificadas em três grandes grupos: i) ligação de hidrogênio; ii) interações de Van der Waals – referência ao neerlandês Johannes van der Waals (1837-1923), prêmio Nobel de Física de 1910; iii) interação íon-dipolo – note que não estamos considerando as interações entre íons, as quais são responsáveis por formar sais inorgânicos iônicos, como o cloreto de sódio (NaCl) – popularmente, sal de cozinha.

A ligação de hidrogênio ocorre entre um átomo de hidrogênio (H) de uma molécula e outro átomo de uma molécula próxima – geralmente, nitrogênio (N), oxigênio (O) ou flúor (F). Essa interação é forte – porém, mais fraca que uma ligação covalente, na qual dois ou mais átomos compartilham elétrons. 

A ligação de hidrogênio (figura 3) é a principal responsável pelo elevado ponto de ebulição da água e pela estrutura do gelo. Por exemplo, a água é líquida à temperatura e pressão ambientes, mas o ácido sulfídrico (H2S), que não forma esse tipo de ligação, é um gás nessas condições.

Figura 3. Ligação de hidrogênio (linha pontilhada) entre moléculas de água

CRÉDITO: CEDIDO PELOS AUTORES

A origem da ligação de hidrogênio não é consenso entre especialistas. Ela tem características de ligações químicas, mas é razoavelmente mais fraca que estas últimas e apresenta importante contribuição eletrostática.

A origem da ligação de hidrogênio não é consenso entre especialistas

Independentemente dessa dúvida, sua importância para entender a estrutura da matéria está fora de questão: ela é responsável por propriedades importantes da água; e mantém a estrutura da molécula de DNA (material genético).

Com e sem polos

Normalmente, não é difícil para um(a) químico(a) descobrir, ainda que de forma aproximada, como os núcleos atômicos estão distribuídos uns em relação aos outros. Para os elétrons, a questão é mais complicada – uma forma de simplificar o problema é imaginar a carga negativa dessas partículas distribuída em torno dos núcleos. 

Dependendo dos núcleos envolvidos e da quantidade de elétrons na molécula, essa distribuição fica diferente. Por exemplo, o flúor tem maior tendência de atrair essas cargas negativas para si – dizemos que átomos assim têm alta eletronegatividade, propriedade que é mais baixa, por exemplo, no magnésio e cálcio.

Uma forma mais simples de descrever a distribuição de carga de uma molécula é com a ideia de dipolo elétrico (ou, simplesmente, dipolo): uma região com grande concentração de elétrons (negativa) e outra com pouca concentração de elétrons (positiva), como mostra a figura 4.

Figura 4. Representação da distribuição de carga na molécula de água (esquerda); a seta representa a mesma molécula na forma de um dipolo; os símbolos δ são as regiões de carga

Crédito: Baseado em https://chemistrytalk.org

Moléculas como as de água ou ácido clorídrico (HCl) apresentam naturalmente um dipolo – por isso, são chamadas polares. Quando isso não ocorre, as moléculas são denominadas apolares – caso do gás metano (CH4).

Van der Waals: três interações

As interações de van der Waals são divididas em três subtipos. O primeiro são as interações do tipo dipolo-dipolo (figura 5).

Figura 5. Representação da interação dipolo-dipolo entre duas moléculas de ácido clorídrico (HCl); as cargas se orientam de modo que a parte positiva de uma molécula fique próxima à negativa da outra

Crédito: Cedido pelos autores

O segundo tipo ocorre quando o dipolo de uma molécula se aproxima de outra molécula, o que modifica a distribuição de carga desta última – podendo, inclusive, criar um dipolo onde antes não havia um.

O terceiro tipo de interação de Van der Waals tem origem nas chamadas forças de dispersão de London – referência ao físico alemão Fritz London (1900-1954). Essas forças surgem da distribuição aleatória das cargas parciais na molécula, gerando dipolos flutuantes, que, por sua vez, podem induzir dipolos em outra molécula, levando, assim, à interação entre elas. 

Esse fenômeno é importante: todas as substâncias apresentam essas forças, independentemente de terem ou não um dipolo permanente.

Além disso, as forças de dispersão são responsáveis pela estrutura de várias substâncias. Na grafite, por exemplos, elas atuam de modo a manter ‘coladas’ as folhas ‘empilhadas’ de carbono que formam esse material (figura 6).

Figura 6. Visão frontal das folhas empilhadas de carbono da grafite (esquerda); visão superior dessas folhas, formadas por anéis de átomos de carbono

Crédito: Cedido pelos autores

Finalmente, as interações do tipo íon-dipolo são as responsáveis pela dissolução de sais em água. Por exemplo, se uma pequena quantidade de NaCl for diluída nesse líquido, serão formados íons positivos (Na+) e negativos (Cl). 

Ambos os íons vão interagir com a água – cuja molécula é polar –, com base no fenômeno denominado solvatação, o qual evita uma nova formação de NaCl.

Insetos e gotas

A essa altura, podemos voltar aos insetos que caminham sobre a água e às gotas que se formam na chuva ou no orvalho. Por que esses fenômenos acontecem? A propriedade por trás disso: a tensão superficial, relacionada com a resistência da superfície de um líquido em ser estendida. 

As moléculas no interior de um líquido experimentam interações atrativas, como as forças de van der Waals e as ligações de hidrogênio. Mas aquelas na superfície têm menos ‘vizinhos’, o que significa menos interações. 

Isso significa que cada molécula que se desloca para a superfície vai diminuir suas interações atrativas. O resultado é que é preciso certo esforço de uma molécula para chegar à superfície – principalmente, se as forças atrativas forem grandes no líquido em questão. 

Na água, as interações intermoleculares são fortes e atrativas. Portanto, a superfície é resistente e consegue suportar pequenos insetos e objetos sem se romper – é possível, com algum cuidado, fazer uma lâmina de barbear, por exemplo, flutuar sobre a superfície da água. 

Quanto aos insetos, muitos têm pernas com grande área superficial e dotadas de substâncias que interagem fracamente com a água, aumentando ainda mais a resistência da superfície em cobri-las. 

E as gotas? A tensão superficial também é responsável pelo formato esférico delas, porque este tem menor razão entre área e volume. Nesse formato, as moléculas de água interagem mais entre si, tornando essa configuração bem estável – em tempo: tudo isso depende das interações entre as moléculas do líquido.

Na prática

A compreensão científica dos fenômenos leva a aplicações tecnológicas – por vezes, revolucionárias. Não tem sido diferente no caso das interações intermoleculares.

Por exemplo, a formação de aglomerados moleculares chamados micelas (figura 7) permite remover substâncias apolares (óleos, gorduras etc.) da água. A gordura, por exemplo, interage com a parte apolar da micela e, assim, é carregada para fora da água – é isso que ocorre toda vez que lavamos algo com um sabonete ou detergente.

Figura 7. Exemplos de estruturas de micela

CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

Mais exemplos cotidianos: i) colas, cujas moléculas interagem fortemente com as superfícies que estão sendo unidas; ii) a interação fraca (forças de dispersão) entre as camadas da grafite é o que nos permite escrever sobre superfícies – ao fazer isso, estamos rompendo as interações intermoleculares entre as folhas, que acabam depositadas sobre o papel.

Lipossomas têm atualmente aplicações importantes na medicina. Eles ‘carregam’ drogas para combater o câncer. Estas últimas ficam na região interna do lipossoma e são liberadas quando regiões específicas dessa estrutura são destruídas ou solubilizadas.

Os MOFs – sólidos com porosidade elevada formados por metais e substâncias orgânicas – estão ajudando a melhorar o meio ambiente. Interações intermoleculares presentes nas ‘paredes’ desses materiais possibilitam a absorção de CO2, o principal gás responsável pelo aquecimento global.

História em curso

Vimos alguns benefícios das interações moleculares. Mas há situações em que elas nos atrapalham. Por exemplo, no escoamento do petróleo, essas interações podem causar a formação e deposição de substâncias indesejáveis, como as parafinas.

Vimos alguns benefícios das interações moleculares. Mas há situações em que elas nos atrapalham

Esse processo leva ao entupimento dos dutos. Para minimizá-lo e garantir um fluxo de óleo mais eficiente, a indústria de petróleo usa substâncias que inibem a formação dessas parafinas. O desenvolvimento desses inibidores depende de uma compreensão detalhada das interações entre as moléculas envolvidas.

A importância das interações intermoleculares não se esgota nesses exemplos. Uma série de diferentes tecnologias podem surgir se aprendermos um pouco mais sobre essas interações e suas manifestações. 

É fascinante perceber como uma questão levantada há mais de 2 mil anos ainda pode trazer tantos frutos. Nossa história com as ‘forças de amor e ódio’ dos gregos ainda parece longe de terminar.

ROCHA, W. R. Interações Intermoleculares. Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola, n. 4, pp.31-36, 2001.  

ATKINS, P., JONES, L., LAVERMAN, L. Princípios da Química: Questionando a Vida Moderna e o Meio Ambiente. 7ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2018.

ISRAELACHVILI, J. N. Intermolecular and Surface Forces. 3rd ed. Burlington (MA): Academic Press, 2011.

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