O imenso microuniverso dos protozoários

Laboratório de Protozoologia
Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)
Laboratório de Protozoologia
Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

“Aquilo que sabemos é pouco; o que não sabemos é imenso”. A frase, atribuída ao cientista francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827), reflete o quanto a ciência ainda desconhece sobre a diversidade das espécies de protozoários, microrganismos onipresentes na natureza que ora podem ser ‘vilões’, causando doenças, ora ‘mocinhos’, ajudando na fabricação de alimentos e combustíveis. A boa notícia é que especialistas já contam com ferramentas de alta tecnologia para enfrentar essa tarefa quase hercúlea.

CRÉDITO: ADOBE STOCK

O macrocosmo e o microcosmo guardam relações interessantes. Por exemplo, conhecemos só 5% da constituição do universo, porção que está na forma da chamada matéria visível, ou seja, aquela que emite luz. O mesmo percentual pode ser aplicado ao que sabemos sobre a diversidade de espécies de microrganismos. 

Os 95% restantes da composição do universo são formados pelas ainda misteriosas matéria escura (cerca de 25%) e energia escura (algo em torno de 70%) – o nome deriva do fato de elas não emitirem ‘luz’ (radiação eletromagnética). 

Algo similar pode ser dito sobre o diminuto universo microbiano: nele, há também uma ‘matéria escura’, a qual se refere ao grande número de espécies de microrganismos cujo material genético (DNA) pode ser detectado por meio de ferramentas moleculares modernas, mas que ainda não foram vistos ao microscópio. 

Desde a infância, aprendemos a organizar conhecimento – por exemplo, ao lidarmos com brinquedos (cor ou função), roupas (locais e momentos de uso), comida (necessidade ou não de refrigeração) etc. 

Algo semelhante se passou com o conhecimento sobre a biodiversidade no planeta. Os taxonomistas – que podem ser comparados a organizadores do conhecimento – sempre classificaram a informação para entender melhor a diversidade dos seres vivos. 

Por muito tempo, os seres vivos foram classificados em cinco grandes ‘categorias’ (tecnicamente, reinos), com base em proposta, de 1969, do ecólogo norte-americano Robert Whittaker (1920-1980): procariotos, protistas, plantas, animais e fungos. 

Mas, nos últimos anos, essa classificação foi modificada e passou a abranger apenas três domínios: eubacteria (bactérias), archaea (arqueias) e eukarya (protistas, animais, plantas e fungos). Essa proposta foi feita em 1990 pelo microbiologista norte-americano Carl Woese (1928-2012). 

Entre os eukarya – organismos que têm membrana que envolve o núcleo das células (carioteca) –, a organização atual apresenta vários supergrupos de organismos, não sendo válida mais a separação em quatro grupos (protistas, animais, plantas e fungos).

Definição

O termo ‘protista’ é usado atualmente só para fins didáticos. Ele se refere a organismos eucariotos unicelulares, ou seja, que têm carioteca e uma única célula. Entre os protistas, há dois grupos: autótrofos, que fazem fotossíntese, e heterótrofos, que não produzem o próprio alimento.

Desde sua descoberta, no século 17, pelo naturalista neerlandês Anton Van Leeuwenhoek (1632-1723) – considerado o ‘pai da microbiologia’ –, os protistas eram seres que não se encaixavam nas ‘caixinhas’ de organização definidas à época. 

Protistas não eram considerados nem plantas – pois se locomoviam, característica considerada exclusiva dos animais até então –, nem animais, pois alguns podiam realizar fotossíntese – algo, até então, exclusivo das plantas.

Protistas não eram considerados nem plantas – pois se locomoviam, característica considerada exclusiva dos animais até então –, nem animais, pois alguns podiam realizar fotossíntese – algo, até então, exclusivo das plantas

Desse modo, tudo que não era planta ou animal era classificado como ‘protista’ – vale lembrar que os fungos foram classificados como ‘plantas’ até meados do século passado.

Os protistas heterótrofos são chamados ‘protozoa’ (ou protozoários) – proto (primeiro) e zoa (animálculos, ou seja, animais microscópicos). Em tempo: a fronteira entre autotrofia e heterotrofia é tênue, havendo grupos atuais autótrofos que tiveram origem em ancestrais heterótrofos; portanto, sendo considerados protozoários. 

Aeequi, trataremos de parcela dessa biodiversidade: os protozoários, ou seja, microrganismos eucariotos unicelulares heterótrofos, cujo tamanho pode variar de centésimos de milímetro até a casa de 1 milímetro. 

Iremos discorrer também sobre: i) a diversidade estimada para esse grupo; ii) seus ecossistemas e suas funções neles; iii) as ferramentas usadas para detectá-los e conhecê-los; iv) as aplicações desses microrganismos.

Diversidade

A diversidade estimada de protistas oscila entre 200 mil e 250 mil espécies, com boa parte delas representada por protozoários de vida livre (água doce, oceanos e solo) e por aqueles denominados simbiontes. Estes últimos podem ser parasitos (dependem metabolicamente de um hospedeiro, ao qual podem causar danos), comensais (interagem com outros organismos, sem lhes causar danos consideráveis), mutualistas (interagem com outros organismos, havendo benefício mútuo), foréticos (são transportados por outros organismos) ou epibiontes (vivem sobre outros organismos).

A diversidade estimada de protistas oscila entre 200 mil e 250 mil espécies, com boa parte delas representada por protozoários de vida livre (água doce, oceanos e solo) e por aqueles denominados simbiontes

Figura 1. Protozoários de vida livre (A, E, G, H) e simbiontes (B, C, D, F). Em A, ameba nua, encontrada em líquens; em B, G. lamblia (intestino humano); em C, T. equinum (cavalos); em D, E. caudatum (‘estômago’ de ovelhas); em E, A. vernalis (córregos); em F, T. heterodentata (peixes e anfíbios); em G, colônia de ciliados (seta) em molusco; em H, E. plicatilis, em concha de molusco

Crédito: Arquivo pessoal dos autores

Desde que foram descobertos, as estimativas sobre a diversidade dos protozoários variou consideravelmente, pois dependiam das ferramentas disponíveis para investigar as semelhanças e diferenças dos organismos. 

O progresso tecnológico e ferramental tem mostrado a infinidade de funções dos protozoários na natureza, bem como suas relações evolutivas com os seres vivos. Mas ainda há muito a saber sobre a diversidade desse grupo tão misterioso – e dotado de infinitas formas de grande beleza.

Para a ciência, os protozoários seguem sendo um microcosmo oculto.

Ferramentas

Jogar luz sobre a ‘escuridão’ que esconde a diversidade dos protozoários é uma das prioridades atuais para boa parte dos biólogos, que empregam ferramentas cada vez mais modernas para desvendar essa ‘matéria escura’ do universo microbiano.

Por décadas, lançar o olhar sobre a forma, o tamanho, as cores e o local onde os protozoários eram encontrados foi o principal modo de caracterizá-los e definir suas espécies. Isso só foi possível com a invenção do microscópio óptico, no século 16, que revelou a existência de um mundo microscópico até então inimaginável. 

De lá para cá, instrumentos e técnicas evoluíram, permitindo, por exemplo, observar as características internas e externas dos protozoários em alta resolução e em três dimensões; mapear substâncias dentro da célula, fazendo com que elas brilhassem no escuro; ou mesmo reconstruir um organismo inteiro, a partir de pequenos pedaços de fotos microscópicas. 

Com o lançamento, em 1859, do livro A origem das espécies, do naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), o mundo se inclinou em direção a um novo modo de enxergar a natureza. 

À luz da evolução, as características de cada espécie estavam relacionadas ao parentesco entre elas. Assim, para saber se uma espécie era ‘irmã’ ou ‘prima’ de outra, bastava usar uma ou mais características morfológicas (forma, tamanho etc.) e verificar seu grau de semelhança ou diferença. As espécies mais similares ficavam mais próximas entre si, e aquelas com maior número de diferenças eram consideradas mais distantes. Isso tudo era representado por um desenho análogo a uma árvore, onde o tronco era o ancestral (os ‘pais’), e os ramos e as folhas eram as espécies descendentes (os ‘filhos’, ‘primos’ e ‘netos’). 

A partir dessas estruturas – tecnicamente, denominadas árvores filogenéticas –, foi possível conhecer a história de uma espécie. Com os anos, as filogenias começaram a receber informações sobre formato, cor, comportamento, hábitat e relacionamentos com outros organismos. Posteriormente, somaram-se informações sobre o DNA. 

O surgimento da biologia molecular – área impulsionada pelo descobrimento do DNA – mudou mais uma vez o olhar dos pesquisadores em relação à natureza. Para os protozoários, essa mudança foi drástica: a informação sobre o material genético permitiu verificar a indescritível diversidade desse grupo – e até onde esse conhecimento pôde nos levar (figura 2).

Figura 2. Diversidade estimada de eucariotos: em A, com base em ferramentas tradicionais para descrição das espécies; em B, em dados genômicos de bancos de dados públicos

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL DOS AUTORES

O surgimento da biologia molecular – área impulsionada pelo descobrimento do DNA – mudou mais uma vez o olhar dos pesquisadores em relação à natureza

Todo esse desenvolvimento se deu porque, hoje, podemos detectar inúmeras espécies não cultiváveis em laboratório – agora, perceptíveis a nossos sentidos expandidos pela biologia moderna, por meio da detecção de DNA em diversos ecossistemas (água doce, marinho, terrestre e hospedeiros). Como desdobramento, esses dados ampliaram ainda a sensibilidade e rapidez no diagnóstico de doenças causadas por protozoários. 

Com o avanço nas ciências da computação e suas aplicações na biologia (bioinformática), descobertas na área de protozoologia estão ainda mais velozes e precisas. O que antes só poderia ser encontrado em museus, hoje está disponibilizado em bancos de dados on-line e pode ser acessado por qualquer um, em qualquer lugar – de casa, você pode, por exemplo, consultar o acervo do Museu Natural de Londres.

Locais

Protozoários podem ser encontrados em todos os ambientes já explorados, incluindo águas ácidas, cavernas, geleiras, mar profundo, bem como dentro ou sobre animais e plantas.

Protozoários podem ser encontrados em todos os ambientes já explorados, incluindo águas ácidas, cavernas, geleiras, mar profundo, bem como dentro ou sobre animais e plantas

Esses microrganismos estão presentes, por exemplo, em uma simples gota d’água, entre grãos de areia, em nosso corpo (saliva, sangue, trato intestinal etc.) e em inúmeras associações com outros organismos. 

Vimos que a diversidade de protozoários é subestimada nos locais que conhecemos. Imaginemos, então, qual seria essa estimativa, caso incluíssemos lugares inóspitos e ainda inexplorados. 

Se tivéssemos a tarefa de realizar uma lista de espécies de protozoários em uma ilha tropical, por exemplo, poderíamos encontrá-los no plâncton, no sedimento marinho, no solo, nos rios, nos lagos, nas poças, em tanques de bromélias. E também associados a líquens, musgos, invertebrados, vertebrados e plantas (na seiva destas últimas). Tudo isso em só um ambiente.

Os protozoários são muitas vezes considerados ‘vilões’, quando na condição de parasitos, pois causam doenças (muitas delas, graves) em humanos, como malária, doença de Chagas, doença do sono, leishmaniose, toxoplasmose, amebíase, giardíase, tricomoníase, babesiose etc. E também podem provocar doenças em animais não humanos, como animais de produção e silvestres – por exemplo, as doenças nagana, neosporose, eimeriose, isosporíase, malária aviária, theileriose etc.

Mas são considerados os ‘mocinhos’, quando controlam, ao se alimentarem, as populações de bactérias responsáveis por diversas funções no ecossistema. Por exemplo, podem ‘desintoxicar’ mananciais de água e estações de tratamento do esgoto, remineralizando (‘limpando’) a matéria orgânica e metais pesados – os protozoários são considerados bons indicadores da qualidade da água, dada sua elevada sensibilidade às alterações ambientais. 

No rúmen (estômago) de mamíferos ruminantes (bois, cabras, ovelhas etc.), protozoários ciliados – dotados de estruturas que lembram ‘cílios’ – degradam a matéria vegetal ingerida por esses animais, criando um ambiente rico em proteínas, vitaminas e energia – por sinal, esse sistema é usado como modelo para reatores que fazem a conversão de biomassa (como bagaço de cana) em biocombustíveis, como o bioetanol (álcool). 

Protozoários flagelados – que têm flagelo, uma espécie de ‘cauda’ – auxiliam na digestão de celulose presente na madeira ingerida pelos cupins. 

A esta altura, vale fazer um convite. Caso você tenha se interessado pelo tema, pode visitar o projeto de extensão ‘Desvendando o microcosmo’, desenvolvido por nosso grupo. Basta entrar no Instagram e buscar por @microcosmos_ufjf. 

A iniciativa – que traz imagens, vídeos e resultados de nossas pesquisas – é voltada para um público diversificado, de interessados no tema a estudantes e professores, inclusive de graduação e pós-graduação. E o espaço é interativo.

Aplicações

Recentemente, protozoários passaram a ser usados para a complementação alimentar. Esse é o caso da espécie Euglena gracilis, que tem uma organela celular responsável por produzir um carboidrato explorado comercialmente como suplemento alimentar. 

Recentemente, protozoários passaram a ser usados para a complementação alimentar

Espécies de ciliados do gênero Stentor têm sido empregadas para estudos sobre a regeneração e adiamento do envelhecimento, pois são dotados de fantástica capacidade regenerativa. 

A lista de aplicações é longa. E espera-se que, nos próximos anos, seus itens aumentem significativamente. Uma das mais recentes aliadas nesse sentido é a inteligência artificial, ferramenta que nos promete a oportunidade de explorar a ‘matéria escura’ das comunidades microbianas. E, partir desse novo conhecimento, desenvolver melhores ações para políticas globais voltadas para a saúde pública e o meio ambiente. 

Mas isso deve ser feito com alguma urgência: parcela importante das espécies de protozoários pode já estar sob risco de extinção, mesmo antes de ser conhecida pela ciência.

Frente a esse cenário de incerteza, vale lembrar frase atribuída ao cientista francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827): “Aquilo que sabemos é pouco; o que não sabemos é imenso”. 

Isso nos dá ideia da tarefa quase hercúlea que a ciência deve ainda enfrentar para ampliar seu entendimento para além dos cerca de 2 milhões de espécies de seres vivos descritos até hoje. Estima-se que esse número possa chegar à casa dos bilhões, quando for incluída a diversidade microbiana.

É uma corrida contra o tempo, pois a taxa de extinção atual, para os seres vivos, pode ser até mil vezes maior que à época em que ações humanas no planeta não eram tão intensas.

DIAS, R. J. P.; D´AGOSTO, M.; CASTRO, I. S.; SILVA-NETO, I. Microscópicos e Vorazes. Ciência Hoje v. 39, n.230, pp. 56-58, 2006.

HALFELD, V.; DIAS, R. J. P. A regra da Ilha. Ciência Hoje v. 56, n. 336, pp. 52-54, 2016.

ARCHIBALD, J. M; SIMPSON, A. G. B.; SLAMOVITS, C. (eds.). Handbook of the Protists. Boston: Springer, 2017.

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