Líquidos de spins: o universo de ímãs inusitados

Instituto de Física
Universidade de São Paulo

A versão mais popular sobre a descoberta dos ímãs conta que, na região da Magnésia, na Grécia Antiga, uma pedra atraía a ponta de ferro dos cajados dos pastores. Milhares de anos depois desses relatos, o estudo do magnetismo segue como uma das áreas mais pujantes da física teórica e experimental. No século passado, novos fenômenos foram descobertos. Um deles, um intrigante e ainda desafiador estado em que os materiais magnéticos se comportam como se fossem um líquido.

CRÉDITO ABERTURA: ADOBESTOCK

Em nosso cotidiano, notamos que os objetos que nos cercam aparecem em três diferentes fases (ou estados): gasoso, líquido e sólido. Também aprendemos que as substâncias podem transmutar-se entre essas diferentes fases, a depender das condições externas, determinadas, por exemplo, pela temperatura.

Vamos considerar a água, que é líquida nas condições usuais – ou, como dizemos cientificamente, nas condições ambientes. Se a aquecemos, por exemplo, para preparar um café, observamos que ela evaporará acima de 100 graus celsius, formando o vapor d’água.

Tecnicamente, dizemos que a água sofreu uma transição de fase, passando do estado líquido para o estado gasoso. Por outro lado, ao depositarmos um volume de água em nossos refrigeradores, sabemos que ela se transformará em gelo abaixo de 0 grau celsius, entrando no estado sólido. Dizemos, agora, que a água passou do estado líquido para o estado sólido.

O estudo das diferentes fases da matéria e de suas transições é uma subárea da física, conhecida como física da matéria condensada. Nesse campo, o objetivo central é tentar entender microscopicamente o estado de cada material em certa condição externa. É um programa ambicioso, cujo ponto de partida são os átomos e seus constituintes, elétrons e núcleos.

Em resumo, buscamos entender as propriedades macroscópicas da matéria, a partir desses entes básicos e de suas interações. Para além do avanço e entendimento científico, esse programa tem um viés prático: manipular a matéria para atender às necessidades de nossa sociedade.

Alinhamento generalizado

Desde sua gênese, um dos fenômenos que têm papel de destaque no campo da matéria condensada é o estudo do magnetismo – ou, mais especificamente, dos ímãs. Estes últimos, em sua forma mais popular, os ímãs de geladeira, ilustram aspectos da vida cotidiana, de calendários, compromissos e contatos de restaurantes a fotos de entes queridos e lembranças de lugares marcantes.

O conhecimento de ímãs data desde a Antiguidade, com relatos no Ocidente que datam desde a Grécia Antiga, em que, segundo a versão mais popular da história, pastores da região de Magnésia perceberam que pequenas pedras ficavam presas na ponta de ferro de seus cajados.

Essas pedras – formadas pelo mineral magnetita, constituído por uma molécula com átomos de ferro e oxigênio (Fe3O4) – são um exemplo de ímã natural que mostra o fenômeno do magnetismo do ferro – tecnicamente, denominado ferromagnetismo. Ímãs estão na base de nossa sociedade atual – por exemplo, a tecnologia dos geradores elétricos (dínamos) depende deles.

Ímãs estão na base de nossa sociedade atual – por exemplo, a tecnologia dos geradores elétricos (dínamos) depende deles

Microscopicamente, atribuímos o magnetismo ao spin do elétron, que pode ser comparado a um ímã microscópico intrínseco.

Assim como a massa e a carga elétrica, o spin é uma grandeza fundamental que ajuda a identificar o elétron – bem como outras partículas subatômicas. Esse diminuto ‘imã interior’ permite que o elétron interaja não só com os spins de outras partículas, mas também com campos magnéticos externos – mesmo que o elétron esteja em repouso.

Se essas interações entre os spins dos elétrons ‘conspirarem’, de modo que os spins se alinhem todos em uma mesma direção, os efeitos se somam, dando origem ao ferromagnetismo do ímã, que faz com que ele fique preso a superfícies metálicas.

Há uma denominação técnica para o esse alinhamento generalizado: estado ordenado magneticamente ou estado ferromagnético.

Ordem versus desordem

Esse estado ferromagnético pode ser comparado ao estado sólido da matéria ordinária. Assim como no caso da transformação da água em gelo, o surgimento desse fenômeno também ocorre a baixas temperaturas.

No ferromagnetismo, as interações entre spins e a temperatura desempenham papéis opostos: as primeiras tendem a produzir ordem entre os spins, enquanto a segunda induz desordem – neste último caso, cada spin comporta-se de modo indiferente aos demais, o que leva ao desalinhamento deles.

Portanto, quando aumentamos muito a temperatura, destruímos o alinhamento entre os spins, e cada um deles aponta uma direção qualquer do espaço, levando a uma magnetização efetiva nula – ou seja, perde-se o estado ferromagnético.

Quando isso ocorre, dizemos que houve uma transição de fase – no caso, do estado ferromagnético a outro, denominado paramagnético (sem magnetismo), que pode ser comparado a um estado gasoso.

Mas qual seria o equivalente ao estado líquido em um material magnético? Veremos isso mais adiante neste artigo, mas, antes de discuti-lo, precisaremos compreender em mais detalhes a interação microscópica entre os spins.

Frustração magnética

A interação entre os spins da matéria não é uma força fundamental da natureza, mas, sim, o resultado de fenômenos quânticos – especialmente, do chamado princípio de Pauli, referência ao austríaco Wolfgang Pauli (1900-1958), que, por essa contribuição teórica, ganhou o prêmio Nobel de Física de 1945.

Esse princípio diz que dois elétrons não podem ocupar o mesmo lugar no espaço se seus spins apontarem em um mesmo sentido. Isso leva ao que denominamos tecnicamente correlação. O termo está baseado no fato de que o movimento de um elétron passa a depender da posição e do spin dos demais elétrons do átomo.

É justamente essa correlação entre os spins que dá origem ao magnetismo. Geralmente, os fenômenos quânticos tendem a aparecer em temperaturas muito mais baixas do que aquelas com as quais estamos acostumado em nosso cotidiano.

Esse é o caso da transição do estado paramagnético para o estado magnético, o que explica o fato de não termos muitos exemplos cotidianos de materiais magnéticos – por isso, o estudo deles requer laboratórios (científicos e industriais) especializados.

Na década de 1930, o físico francês Louis Néel (1904-2000) percebeu que o conceito de ordem magnética poderia ir além dos ímãs tradicionais (ferromagnetos). Ele notou que seria possível obter um arranjo de spins em que estes não apontassem todos em um mesmo sentido, mas, sim, alternadamente, em sentidos opostos.

Esse arranjo peculiar é conhecido como estado antiferromagnético (figura 1A). É também um estado ordenado – afinal, todos os spins têm uma direção bem definida. Mas esse padrão alternado faz com que a magnetização total seja nula.

Portanto, um material antiferromagneto comporta-se como um paramagneto, ou seja, não é atraído por superfícies metálicas. É preciso experimentos sofisticados para a detecção desse tipo de ordem – daí, esse fenômeno só ter sido descoberto experimentalmente no século passado – mais precisamente, em 1949.

Pelo desenvolvimento da técnica que permitiu essa descoberta, o físico norte-americano Clifford Shull (1915-2001) ganhou metade do prêmio Nobel de 1994.

A existência de estados antiferromagnéticos aumentou a gama de materiais magnéticos e nos permitiu entender de modo mais aprofundado esse novo estado da matéria.

Clifford G. Shull, Prémio Nobel da Física em 1994

A existência de estados antiferromagnéticos aumentou a gama de materiais magnéticos e nos permitiu entender de modo mais aprofundado esse novo estado da matéria

O estado antiferromagnético tem uma peculiaridade: a necessidade de ‘antialinhar’ spins próximos pode levar a um situação denominada frustração. O caso mais simples dela seria o de três spins localizados nos vértices de um triângulo equilátero.

Nessa situação, não é possível ‘antialinhar’ os três spins. Apenas dois deles podem satisfazer essa condição, com o terceiro ficando ‘insatisfeito’ (‘frustrado’), não importando a direção na qual aponte (figura 1B) – daí, essa incapacidade de satisfazer a todas as demandas locais da interação entre pares de spins ser conhecida como frustração magnética.

Figura 1. Em A, arranjo não frustrado: os spins, ocupando os vértices de quadrados, podem se ‘antialinhar’ com aqueles de sua vizinhança; em B, sistema frustrado: os spins ocupam os vértices de um triângulo equilátero, o que impossibilita o ‘antialinhamento’ com os mais próximos

Crédito: Cedido pelo autor

Estados degenerados

O conflito entre um arranjo antiferromagnético e a distribuição dos spins em um triângulo é o exemplo mais famoso de frustração magnética. Embora pareça algo inconveniente do ponto de vista prático – por gerar incompatibilidade entre o ordenamento dos spins e sua localização espacial –, a frustração tem uma vantagem importante: introduz novos efeitos no fenômeno do magnetismo.

Um desses efeitos é o da degenerescência. Em física, dizemos que dois estados são degenerados quando suas configurações microscópicas são distintas, mas seu resultado físico é o mesmo. Por exemplo, esses estados têm a mesma energia.

Esse é o caso de três spins distribuídos espacialmente de forma a ocupar os vértices de um triângulo: ao fixarmos um par deles em um arranjo antiferromagnético, o terceiro spin será necessariamente paralelo a um dos dois, não importando sua orientação (figura 1B).

Temos, assim, configurações diferentes que levam ao mesmo resultado final: duas ‘ligações’ terão spins antiparalelos (sentidos opostos), e uma ‘ligação’ terá spins paralelos (mesmo sentido).

A existência de estados degenerados deixa marca indeléveis a baixas temperaturas. Por exemplo, se o número de estados degenerados for muito grande, o sistema ficará ‘passeando’ entre eles e evitará chegar a um estado ordenado final, em que os spins ficam congelados em uma determinada direção.

Essa situação, em que os spins não têm ordem, mas não estão completamente livres para se rearranjarem, é conhecido como líquido de spin – por analogia com os líquidos usuais. Portanto, temos aqui a resposta para a pergunta feita mais acima neste artigo: um sistema magnético na presença de frustração magnética comporta-se como um líquido da matéria ordinária.

Vale repetir: de possível empecilho, a frustração magnética passou a ser algo fundamental para explorarmos uma fase inusitada da matéria.

Para entendermos melhor a degenerescência, vamos olhar em mais detalhes os diferentes estados magnéticos da matéria. No caso de um estado ordenado magneticamente – como ocorre no ferromagnetismo –, só há dois estados possíveis: todos os spins apontando ou para ‘cima’, ou para ‘baixo’.

Por sua vez, no estado paramagnético, cada spin é independente dos demais. Isso permite inverter suas direções à vontade, o que leva a uma total liberdade de movimento e grande degenerescência.

Já o líquido de spin representa uma situação intermediária: há alguma liberdade local de movimento para os spins, mas é preciso levar em conta as vizinhanças de um spin para saber como ele pode se mover.

É justamente essa ideia – a de o movimento do spin estar vinculado ao de seus vizinhos em um sistema sem ordem magnética – que dá origem às propriedades inusitadas dos líquidos de spin.

É justamente essa ideia – a de o movimento do spin estar vinculado ao de seus vizinhos em um sistema sem ordem magnética – que dá origem às propriedades inusitadas dos líquidos de spin

Assim como no caso do antiferromagneto, o líquido de spin tem magnetização nula, não se comportando como um ímã usual. Portanto, seu estudo detalhado também requer técnicas experimentais e teóricas sofisticadas.

Leis fundamentais

Em física, grandezas importantes não são independentes, pois estão relacionadas entre si localmente, no tempo e espaço, por meio de leis fundamentais. Por exemplo, a segunda lei da mecânica – idealizada pelo físico e matemático britânico Isaac Newton (1642-1727) – relaciona a aceleração (a) de um corpo com a força (F) que atua sobre ele, segundo a fórmula F = m.a – onde ‘m’ é a massa do corpo.

O mesmo vale para as equações do eletromagnetismo, propostas pelo físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), que impõem vínculos locais entre o campo elétrico e magnético: quando variando no tempo, o primeiro gera o segundo (e vice-versa).

Nos líquidos de spin, também temos vínculos que ditam os movimentos permitidos para os spins. Interpretamos esses vínculos como leis efetivas (ou, dito tecnicamente, emergentes), porque elas só são válidas para esse novo estado da matéria.

Enquanto os spins estão sujeitos individualmente às leis da física, seu movimento coletivo em um líquido de spin poderia ser descrito por novas leis. Por exemplo, uma teoria eletromagnética em que as equações comportam fenômenos ainda hipotéticos: i) um monopolo magnético, que pode ser comparado a um ímã com um só polo (norte ou sul); ii) por fótons que se moveriam com velocidade de poucos metros por segundo – e não com a velocidade usual dessas partículas de luz no vácuo (300 mil km/s); iii) por férmions de Majorana – referência ao físico teórico italiano Ettore Majorana (1906-1938) –, partículas que são suas próprias antipartículas.

É possível pensar que diferentes líquidos de spin poderiam apresentar distintas descrições efetivas, a depender das peculiaridades de suas interações microscópicas. Portanto, seria como se materiais diferentes gerassem ‘universos’ únicos, nos quais pudéssemos explorar novas leis da física.

É possível pensar que diferentes líquidos de spin poderiam apresentar distintas descrições efetivas, a depender das peculiaridades de suas interações microscópicas

Isso tem permitido contrastar ideias teóricas avançadas e inovadoras com resultados experimentais precisos.

Desafiador e atraente

Grande parte do esforço atual no estudo de magnetismo frustrado está baseado tanto no entendimento microscópico dos vínculos impostos por diferentes tipos de líquidos de spin quanto no desenvolvimento de métodos precisos para sua visualização em laboratório.

Grande parte do esforço atual no estudo de magnetismo frustrado está baseado tanto no entendimento microscópico dos vínculos impostos por diferentes tipos de líquidos de spin quanto no desenvolvimento de métodos precisos para sua visualização em laboratórios

O principal desafio da área está atrelado precisamente ao aspecto mais atrativo dos líquidos de spin. Esses ímãs inusitados aparecem por conta de uma grande degenerescência de estados, os que os torna suscetíveis a perturbações que eliminem essa propriedade, como imperfeições nos materiais ou alterações nas interações microscópicas.
Esse aspecto do sistema faz seu estudo mais desafiador e atraente, e os avanços nessa área combinam aspectos-chave da pesquisa em física na atualidade: produção de materiais de altíssima qualidade, uso de técnicas (sondas) experimentais precisas e avançadas, bem como estudos teóricos sofisticados que incorporem ideias da física para além da área da matéria condensada.
Vemos, assim, que, milhares de anos após a descoberta da magnetita, os estudos dos ímãs continuam vigorosos e promissores, para aprendermos e investigarmos diferentes fases da matéria.

MORAIS, T. I. Desvendando os segredos do mundo da matéria condensada. Joinville (SC): Clube de Autores, 2023.

PIVETTA, M. Exótica fase da matéria pode ser útil para desenvolver computadores quânticos. Pesquisa Fapesp, n. 322, 2022. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/exotica-fase-da-materia-pode-ser-util-para-desenvolver-computadores-quanticos/

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