Se você assistiu ao filme Pantera Negra, deve ter se surpreendido com o grande avanço tecnológico de Wakanda, reino governado pelo herói da Marvel. Toda a tecnologia desse reino é baseada no metal fictício vibranium, encontrado apenas por lá e em abundância. Em outro texto desta seção, tratamos da viabilidade de se produzir o uniforme do Pantera com a nossa tecnologia atual. Neste, vamos falar de algo um pouco menos possível de acontecer no mundo real: o superavanço científico e tecnológico de uma sociedade isolada.
O economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) foi um dos primeiros estudiosos a considerar as inovações tecnológicas como um dos motores do capitalismo. Uma das teorias atribuídas ao economista é a do ciclo ‘invenção-inovação-difusão’.
A invenção consiste na concepção de uma ideia, que ainda não passou pelo crivo do mercado, não se tornou um produto comercializado. Quando uma invenção é transformada em uma mercadoria que possa ser explorada economicamente, ela se torna uma inovação. E essa transformação depende de fatores como: facilidade na aquisição da matéria-prima, custo de produção, segurança do produto, confiabilidade do consumidor e possibilidade de produção em larga escala. Em suma, depende da capacidade de tornar essa invenção comercializável. E isso pode nunca acontecer, como é muito frequente. A terceira etapa do ciclo é a difusão, ou ‘imitação tecnológica’, que é o momento em que outras empresas e países começam a produzir imitações de uma inovação com técnicas e processos diferentes.
Embora pareça um procedimento de menor importância, a imitação é, na teoria de Schumpeter, uma etapa tão importante quanto a de se criar uma inovação.
Muitos estudos mostram que a China, segunda maior economia do mundo, viveu um acelerado crescimento baseado na imitação tecnológica. E o Brasil, assim como outras economias emergentes que não conseguem atuar na fronteira do desenvolvimento científico e tecnológico, tem a imitação como atividade crucial para fomentar a produção de tecnologias, aumentar a competitividade das empresas e viabilizar aprendizagem e capacitação de cientistas, engenheiros etc.
A grande importância da imitação reside no fato de que ela não é uma simples cópia idêntica do produto original. Quando uma tecnologia é imitada, ela está sendo levada a um novo contexto. A disponibilidade de matéria-prima local é diferente, a mão de obra é diferente, o investimento é diferente, os custos dos processos são diferentes, as demandas locais da população são diferentes, o letramento tecnológico da população é diferente.
Por isso, não basta apenas copiar. É preciso que a tecnologia seja também adaptada à realidade local. E essas adaptações muitas vezes acabam se tornando também inovações. As chamadas inovações incrementais são pequenas melhorias ou adaptações que não alteram substancialmente a dinâmica do produto no mercado, mas promovem avanços. Por serem mais baratas e não-disruptivas (portanto, de fácil recepção pelo consumidor), elas acontecem com mais frequência. E essas inovações, essenciais para que tecnologias sejam aperfeiçoadas, são muito fomentadas nos processos de imitação.
Por isso, é seguro dizer que o avanço tecnológico se dá por meio da participação de muitos agentes, de diferentes países e empresas. Sem isso, levaria muito mais tempo para que um produto fosse testado em larga escala, para que defeitos e limitações fossem identificados e para que aperfeiçoamentos fossem feitos.
Além disso, não é só a tecnologia que depende dessas interações. O filósofo da ciência austro-britânico Karl Popper (1902-1994) foi claro ao dizer que a reprodutibilidade é um critério importante em experimentos científicos na busca de consensos. Experimentos que são reproduzidos (ou imitados) em diferentes partes do mundo e em diferentes circunstâncias adquirem um status de maior confiabilidade.
O reino de Wakanda é completamente fechado e escondido do resto do mundo, ou seja, praticamente nenhum conhecimento científico ou tecnologia produzidos lá são exportados. Isso significa que suas tecnologias não passam pelo crivo do mercado global. Como afirma o economista norte-americano Nathan Rosenberg (1927-2015), quando se trabalha isoladamente, é muito difícil identificar o potencial mercadológico e econômico de uma tecnologia, ou seja, converter invenções em inovações. O mesmo vale para a ciência que Wakanda produz, que deveria ser bastante limitada, uma vez que ela não passa pelo crivo de outros cientistas, nem é reproduzida em outros lugares e por outras pessoas.
Costuma-se pensar que a cadeia ‘ciência, tecnologia e mercado’ funciona de forma linear e sequencial: pesquisa científica gera tecnologia que, por sua vez, provoca impactos econômicos quando chega ao mercado. Isso pode levar à conclusão errônea de que a ciência trabalha de forma independente da tecnologia e do mercado, já que, na sucessão causal, ela é a primeira. Mas essa interação é muito mais complexa. Muitos são os casos em que a tecnologia se desenvolve primeiro, o que causa um impacto no mercado e só depois é que a ciência investiga explicações para o funcionamento dessa tecnologia.
Fazer ciência e tecnologia são coisas cada vez mais caras e a longo prazo. Por isso, ambas dependem muito das respostas e necessidades do mercado, que, por sua vez, também é muito afetado pelo avanço das outras duas. O desenvolvimento científico-tecnológico não depende só da mente genial e do esforço de cientistas. Depende também de forças e motivações econômicas.
Além disso, ao longo da história, é possível observar que eventualmente nos deparamos com impedimentos inerentes à própria tecnologia ou ciência que obstruem seus avanços. Esses gargalos levam a processos de focalização, ou seja, vários países e empresas passam a dedicar esforços para superar esse obstáculo e permitir que a tecnologia continue avançando. Se a solitária Wakanda enfrentasse qualquer gargalo desses, sua superação seria muito mais demorada.
Portanto, é inimaginável que Wakanda fosse capaz de deter tecnologias muito mais avançadas do que todo o resto do mundo. Isoladamente, ela não teria os impulsos do mercado, o processo da difusão tecnológica, a colaboração de outros países e empresas na superação de gargalos e o crivo de um público consumidor massivo, que são elementos essenciais para o desenvolvimento científico-tecnológico. Feliz ou infelizmente, há uma relação de dependência muito grande entre os países, ao menos quando lidamos com ciência e tecnologia. Por isso, desconsiderando o provável assédio e sucateamento que o reino sofreria das grandes potências (como aconteceu com todos os países do continente africano), a melhor política para Wakanda no quesito científico seria a sua abertura para o mundo.
Lucas Miranda
Editor do blogue Ciência Nerd
Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor),
Universidade Estadual de Campinas
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