O que a ciência tem feito para combater a pandemia de COVID-19?

Desde que surgiu em território chinês, em dezembro de 2019, até o final de março de 2020, o novo coronavírus (SARS-CoV-2) já infectou mais de 800 mil pessoas ao redor do mundo, levando à morte mais de 40 mil dos infectados. Assim, é muito importante que a população esteja bem informada sobre o que a ciência tem testado de novo para o controle da infecção.

O primeiro ensaio clínico para a testagem de uma possível vacina contra o SARS-CoV-2 foi iniciado nos Estados Unidos em meados de março. A vacina, chamada mRNA-1273, é assim designada porque consiste em um RNA mensageiro que, uma vez em células humanas, faz com que essas expressem uma proteína viral que deverá desencadear uma resposta imune específica e eficaz. É importante frisar, entretanto, que, mesmo que os resultados de segurança e tolerabilidade sejam promissores, ainda há várias outras etapas de testagem a serem cumpridas. Afinal, toda nova possível vacina, antes de ser lançada no mercado, deve ser testada sob o rigor científico que um ensaio clínico requer.

Além da mRNA-1273, há outra vacina sendo testada pelo Instituto de Biotecnologia de Pequim, na China. Trata-se de uma vacina de vetor viral, ou seja, é composta de um vírus incapaz de causar doença em humanos, o adenovirus, modificado a fim de expressar fragmentos genéticos do SARS-CoV-2. Funciona como o sistema de entrega do material a ser detectado pelo sistema imune humano, desencadeandouma resposta antiviral.

Além desses dois ensaios clínicos, há vários outros grupos de pesquisa tentando desenvolver uma vacina contra o coronavirus. Todos esses estudos, entretanto, estão ainda em fase pré-clínica, fase mais preliminar que os estudos citados. Com toda a certeza, levará tempo para que algum desses estudos resulte no desenvolvimento de uma vacina eficaz e segura.

No que diz respeito às possíveis estratégias terapêuticas que estão sendo testadas ao redor do mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, em 20 de março, um estudo em que serão testados medicamentos, tais como antimaláricos, dois compostos usados para o tratamento do HIV, um antiviral desenvolvido para o tratamento do ebola  e a proteína IFN – beta (importante sinalizador antiviral e imunomodulador produzido por células imunes em resposta a uma infecção). Ao mesmo tempo, na França, o Instituto Nacional de Pesquisa Médica e de Saúde (INSERM-Paris), iniciou um ensaio clínico para estudar os efeitos de alguns dos mesmos medicamentos em diversos países. Entre os medicamentos estudados encontram-se as polêmicas cloroquina e hidroxicloroquina. Produzidos inicialmente para o tratamento da malária e para o tratamento de certas condições inflamatórias, esses fármacos ganharam os holofotes da imprensa mundial após o presidente norte-americano Donald Trump anunciar que os Estados Unidos têm tido ótimos resultados com tais compostos no tratamento do coronavírus. O discurso, nada científico, fez com que a população, em várias partes do mundo, estocasse cloroquina. De pronto, a comunidade científica se posicionou, informando que são necessários mais estudos, com grande rigor científico, para a comprovação da eficácia de tais fármacos no tratamento da COVID-19.

Outros grupos de pesquisa, por sua vez, apostam em estratégias não tão convencionais. É o caso, por exemplo, de grupos da Holanda, Austrália, Grécia e Alemanha que testarão se a vacina BCG (que previne a tuberculose) é capaz de modular a resposta imune, para potencializar inespecificamente a resposta imunológica. Seria uma estratégia de “treinamento” do sistema imune não somente contra o novo coronavírus, mas contra infecções virais de forma geral. Para isso, os pesquisadores envolvidos vacinarão profissionais da área da saúde e também indivíduos idosos.

Apesar das inúmeras pesquisas para o desenvolvimento de vacinas e drogas para a contenção da epidemia, a única certeza da comunidade cientifica, até o momento, é de que não existe a comprovação da eficácia de nenhum dos compostos que estão sendo testados. Portanto, ainda precisamos esperar para que a ciência nos mostre os primeiros resultados, positivos ou não, dos ensaios em curso. Enquanto isso não acontece, cabe à sociedade fazer a sua parte: cumprir o isolamento social, preservar os mais vulneráveis, colocar em prática os gestos-barreiras, buscar informação em fontes confiáveis e, é claro, apoiar a ciência.

Mariela Cabral-Piccin

Centro de Imunologia e Doenças Infecciosas
Universidade Sorbonne, Paris

Como obter dados seguros sobre a evolução da pandemia?

O site nextstrain.org é um exemplo de plataforma que apresenta os dados continuamente atualizados sobre o progresso da pandemia do novo coronavírus. Mas como esses dados podem se transformar em informação? Vamos começar do começo. O SARS-CoV-2 é o vírus que causa a doença COVID-19. Este vírus, como todo organismo, ao duplicar o seu genoma na reprodução, produz uma cópia que, às vezes, não é perfeita. Essa imperfeição é chamada mutação. Um detalhe importante é que o vírus mutante dá origem a descendentes com a mesma mutação, da mesma forma que um sobrenome passa de pais para filhos, de filhos para netos, e assim por diante. Assim, se uma pessoa infectada com um vírus mutante sai de um lugar e vai para outro, a mutação vira uma espécie de passaporte de origem. Por isso, podemos traçar a origem do vírus pelas mutações no seu genoma, comparando os genomas de vírus coletados no mundo inteiro.

Portanto, sequenciando os genomas de vírus em diferentes lugares do mundo, podemos recuperar a história de transmissão de um lugar para outro, analisando comparativamente as mutações destes locais. Uma filogenia é um traçado que reconstrói essa história de transmissão, da mesma forma que uma árvore genealógica faz para uma família.

A figura a seguir mostra as relações filogenéticas entre os SARS-CoV-2 sequenciados ao longo do espalhamento do vírus pelo planeta. Cada bolinha representa uma sequência de vírus coletada em uma região do planeta, e as linhas verticais entre as bolinhas representam o quão diferentes (por causa das mutações) as sequências são. Esta filogenia, portanto, mostra a história de transmissão do vírus.

Na reconstrução de uma filogenia, os vírus de diferentes países (representados com cores diferentes) são agrupados de acordo com a proximidade de seus genomas. Quanto mais próximos na filogenia, maior a relação de parentesco entre as linhagens de virus. O centro é a origem da epidemia em dezembro de 2019 e é roxo, pois roxo é a cor usada para representar os vírus coletados em território chinês. Da mesma forma, vermelho é a cor usada para os vírus coletados nos Estados Unidos; verde e amarelo, na Europa; laranja claro, na África; e laranja escuro é a cor usada para os vírus coletados no Brasil. Na filogenia, repare nos círculos concêntricos que mostram o momento de cada grupamento (até 25 de março, neste caso).

Na próxima figura temos um mapa das transmissões feito com base na filogenia, usando as mesmas cores da filogenia mostrada na figura anterior. Repare que no site você pode clicar no “play” e seguir o caminho da transmissão e das variações sofridas pelo vírus nesse percurso ao longo do tempo.

Basicamente, se na filogenia temos uma bolinha laranja escuro no meio de bolinhas verdes (seta preta na primeira imagem), isso significa que uma pessoa foi infectada na Europa e trouxe o vírus para o Brasil. Quanto mais bolinhas laranja neste mesmo grupo, mais pessoas foram infectadas por essa pessoa em território brasileiro. Daí, a linha conectando essas duas regiões no mapa. O tamanho dos círculos no mapa-múndi está relacionado ao número de casos positivos em cada local.

 

Claudia Russo

Departamento de Genética
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Por que não usar cloroquina (CLQ) ou hidroxicloroquina (HCLQ) para o tratamento da COVID-19?

A resposta é simples, porque não conhecemos sua eficácia e segurança em pacientes com COVID-19. E daí poderia derivar outra questão: se são medicamentos disponibilizados em farmácias, não deveríamos conhecer sua eficácia e segurança? A resposta é sim, são conhecidas a eficácia e segurança em pacientes com malária, artrite e lúpus – doenças para as quais já existem ensaios clínicos validados com a CLQ e HCLQ. Mas a dúvida persiste: que mal haveria em usá-las?

Para responder a esta pergunta precisamos lembrar algo fundamental sobre os fármacos, isto é, os componentes ativos dos medicamentos. Todos, sem exceção, são substâncias potencialmente danosas a nossa saúde. O que permite usá-las com segurança é o conhecimento sobre seu índice terapêutico (I.T.), que é a comparação entre a dose – ou quantidade – necessária para causar o efeito terapêutico desejado (exemplo: antimalárico) da dose requerida para causar efeitos tóxicos (exemplos: retinopatias, arritmias etc). Portanto, o I.T. estabelecido para uma doença X não necessariamente será o mesmo de uma doença Y. Logo, torna-se obrigatório um novo estudo clínico para estabelecer a eficácia (o quão o fármaco é capaz de curar ou tratar o paciente portador da doença Y) e a segurança (o quão seguro é o meu fármaco, ou seja, que efeitos adversos ou tóxicos ele pode induzir ao paciente na dose e esquema terapêutico que será empregado para ter eficácia no tratamento da doença Y).

Todo ensaio clínico deve ser conduzido com o máximo rigor científico, atendendo a diretrizes internacionais, referendadas pelas agências sanitárias de cada país. Os dados atualmente disponíveis para CLQ e HCLQ são insuficientes e contêm falhas do ponto de vista da metodologia científica. Por isso, estudos clínicos para uso desses medicamentos no tratamento da COVID-19, seja em sistema de monoterapia ou de associação, estão em curso no Brasil. O objetivo é realizar estudos controlados randomizados, que permitam identificar, com confiança estatística, se há ou não há diferença entre a resposta do grupo de pacientes tratados com os fármacos (em diferentes esquemas terapêuticos, isto é, em diferentes doses e administrações diárias) daquele grupo que não recebeu tratamento. Além disso, permitem acompanhar e identificar sinais de toxicidade e efeitos adversos. Apenas após a conclusão destes estudos poderemos afirmar se a CLQ e/ou a HCLQ são capazes de tratar a COVID-19 (ou seja, se são eficazes) e se os efeitos adversos ou tóxicos, eventualmente observados, são aceitáveis ou impeditivos para o uso seguro destes fármacos no tratamento da COVID-19.

 

Lídia Moreira Lima

Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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