Salada mal temperada entre realidade e ficção

Uma dobra no tempo tropeça em conceitos científicos, reforça estereótipos, mas marca um ponto ao escolher menina como protagonista.

 

Tudo no mundo que nos cerca, em nossas experiências cotidianas, tem três dimensões: altura, largura e profundidade. Mas há muito tempo a física estuda as dimensões extras. Superprodução da Disney baseada em um clássico da literatura de fantasia dos Estados Unidos, de Madeleine L’Engle, o filme Uma dobra no tempo (A wrinkle in the time, 2018) tenta fazer uma conexão com a ciência ao explorar a existência dessas outras dimensões, por meio das quais seria possível se deslocar de um ponto a outro do universo instantaneamente, sem necessidade de viajar. Esse é um dos pontos em que o filme – com um elenco estelar que reúne Oprah Winfrey, Reese Witherspoon, Mindy Kaling e Chris Pine –faz uma salada entre realidade e ficção, tropeçando em conceitos científicos da mesma forma que derrapou nas bilheterias.

Antes de apertar o play e assistir à saga dos irmãos Meg (Storm Reid) e Charles (Deric McCabe) em busca do pai, um cientista que desapareceu misteriosamente em meio a um projeto do governo, que tal visitar a história da ciência para entender mais sobre dimensões extras?

Crédito: divulgação

Há cerca de 2.300 anos, o matemático grego Euclides formalizou o estudo da geometria, definindo conceitos matemáticos até hoje usados e conhecidos como “geometria euclidiana”, aquela ensinada na escola. Alguns dos postulados fundamentais da mesma são que a menor distância entre dois pontos é sempre uma linha reta e que o espaço tem três dimensões: altura, largura e profundidade.

Mas, desde o final do século 19, matemáticos e físicos começaram a explorar as possibilidades dos espaços multidimensionais. No filme, isso surge na imagem de um hipercubo, ou um cubo de quatro dimensões, o tesseract (ou tesserato, na tradução para o português). Os personagens, inclusive, usam o verbo “tesserar” no sentido de viajar entre as dimensões desse hipercubo.

O uso de dimensões extras na física não é novo. Albert Einstein propôs que o espaço, redefinido na Teoria da Relatividade como espaço-tempo, tinha quatro dimensões. As três tradicionais de Euclides mais uma quarta, que é o tempo. Assim sendo, as quatro dimensões que caracterizariam de forma única a posição de um corpo seriam: uma altura, uma largura e uma profundidade em relação a um ponto de referência, num certo instante de tempo.

Mais tarde, outros modelos surgiram, como o do físico Theodor Kaluza, que propôs a existência de uma quinta dimensão. Posteriormente, surgiu a Teoria das Cordas, um modelo físico-matemático que explica a estrutura das partículas elementares e, portanto, do universo todo, a partir de cordas que são estruturas unidimensionais muito pequenas. Ela prevê um grande número de dimensões extras, seis ou sete, que estariam compactadas ou enroladas sobre si mesmas. De acordo com esta teoria, as propriedades das partículas elementares, como quarks, elétrons e neutrinos, seriam definidas pela frequência de vibração das cordas que as compõem.

 

Salto entre dimensões

Mas se as dimensões extras já foram reconhecidas pela ciência, qual o tropeço de Uma dobra do tempo? O filme adota uma abordagem diferente: ao falar de dimensões extras, cita uma frequência ajustável que possibilitaria ao viajante saltar entre as dimensões. O verbo “tesserar” tem o sentido de fazer esse salto. Deve-se notar, porém, que tal efeito físico é completamente fictício, nada indica que dimensões extras possam ser “sintonizadas” de alguma maneira. Ao contrário, a Teoria das Cordas indica que tais dimensões, simplesmente, não existem em termos práticos. O tal tesserato é apenas um hipercubo, um cubo de quatro dimensões, um conceito puramente geométrico que nada tem a ver com viagens a outros planetas ou galáxias. É claro que uma obra de ficção não precisa ser fiel à realidade, mas o filme promove uma confusão entre conceitos reais e fictícios.

E a mistura não para aí: no início do filme, um personagem invoca o conceito de entrelaçamento quântico para explicar que dois eventos em locais distintos do universo podem estar conectados. Esse é um conceito real da mecânica quântica e diz que duas partículas elementares podem estar conectadas de tal forma que, mesmo separadas no espaço, as propriedades de uma refletem-se na outra. Mas daí a invocar esse conceito para explicar viagens instantâneas não faz sentido, até porque tal viagem violaria um princípio fundamental da Teoria da Relatividade que diz que nenhuma informação viaja com velocidade superior à da luz. Até agora, nada indica que tal princípio possa ser violado, nem mesmo pelo entrelaçamento quântico. Em outras palavras, viagens instantâneas continuam a ser mera ficção, sem nenhuma base científica.

Divulgação/ Divulgação

O filme também tem afirmações similares, sem nenhum sentido físico, como “a escuridão se desloca mais rápido que a luz”. A velocidade da luz no vácuo continua a ser o limite superior para o transporte de qualquer informação (ou de viajantes) através do universo, seja um feixe de raios laser de um lado a outro de um laboratório, sejaem uma jornada interplanetária.

Vale a pena notar também que Uma dobra do tempo adota a mesma solução de tantos outros filmes e séries de ficção científica quando levam seres humanos a outros planetas: misteriosamente, esses outros lugares têm atmosfera igual à da Terra, com as mesmas composição de gases, faixa de temperatura e pressão atmosférica. É evidente que, em uma situação real, planetas em torno de outras estrelas terão condições físicas totalmente distintas. Basta ver que, em nosso próprio sistema solar, nenhum outro astro, sejam os planetas ou seus satélites, tem condições atmosféricas que permitam a sobrevivência de um ser humano sem um pesado traje que o isole completamente do ambiente externo.

O filme falha ainda ao reproduzir estereótipos de tantos outros filmes de ficção científica, mostrando a figura do cientista que trabalha no porão de casa e consegue algo extraordinário. Essa é uma visão antiga e há muito ultrapassada, ainda mais tratando-se de física experimental, onde os resultados importantes são sempre conseguidos por grandes equipes, trabalhando em laboratórios complexos e custosos. A ideia do cientista trabalhando sozinho em casa remete, por exemplo, às antigas histórias de Flash Gordon, onde um pesquisador constrói no seu quintal um foguete capaz de levá-lo a outro planeta.

O filme, da diretora Ava DuVernay (de Selma) é todo sem sentido para um cientista? Não! Um ponto bem interessante é colocar como protagonista uma garota que se interessa por ciências físicas, cujos pais são cientistas. O número de meninas interessadas nessa área é muito menor que o de meninos; portanto, é sempre positivo e animador ver uma história centrada em uma protagonista que gosta de física e se interessa por ciência.

Roberto D. Dias da Costa

Departamento de Astronomia,
Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas,
Universidade de São Paulo

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