‘Terras de ninguém’ ameaçam conservação da Amazônia

Jornalista, especial para o ICH

Pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, Paulo Moutinho alerta para aumento de queimadas, desmatamento e grilagem nas ‘florestas públicas não destinadas’, áreas do tamanho da Espanha, de propriedade dos governos federal e estaduais, ainda sem uso definido

CRÉDITO: FOTO: DIVULGAÇÃO IPAM

Existe uma área na Amazônia brasileira do tamanho da Espanha, ou duas vezes o estado de São Paulo, que é uma “terra de ninguém”. São as florestas públicas não destinadas, terras do governo que estão num limbo fundiário. Enquanto a destinação de uso não acontece, ficam à mercê de ações criminosas. “As florestas que ainda aguardam destinação e sofrem com o desmatamento ilegal contêm um volume de carbono equivalente ao que o mundo emite em quase um ano inteiro”, diz o ecólogo Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). “Se perdermos essa floresta para a grilagem, injetaremos uma quantidade enorme de gases do efeito estufa para a atmosfera”.
Em entrevista à CH, o cientista comenta os desafios do ordenamento territorial na Amazônia, conta como a tecnologia tem sido usada no monitoramento da floresta e o impacto do agronegócio e da bioeconomia na região. Explica ainda os obstáculos aos incentivos econômicos de redução de emissões pelos países e as expectativas para a COP30, a “COP da floresta”, que acontecerá no Brasil, em novembro.

CIÊNCIA HOJE: Estudos do IPAM sobre florestas públicas não destinadas na Amazônia indicam um aumento nas queimadas nessas áreas. O que são essas florestas e que alertas vêm com esse desmatamento?

PAULO MOUTINHO: O território da Amazônia brasileira pode ser dividido com base em  “quem é dono do quê”. Boa parte da região está nas mãos de donos privados. São principalmente imóveis rurais médios e grandes. Outra parte, menor, está na mão dos pequenos produtores, a maioria ocupando assentamentos. A maior parte, contudo, é pública. São áreas federais ou estaduais, muitas identificadas e demarcadas como unidades de conservação, reservas extrativistas e terras ocupadas legitimamente por comunidades tradicionais e povos indígenas, mas há uma boa parcela de terra pública que está no limbo fundiário. São cerca de 55 milhões de hectares de terras, cobertas pelo que chamamos de “florestas públicas não destinadas”. É uma área do tamanho da Espanha, ou duas vezes o estado de São Paulo. São florestas classificadas como “não destinadas” pois aguardam os governos federal e dos estados amazônicos destiná-las para usos que estão especificados na Lei de Gestão de Florestas Públicas (2006), a qual diz que essas terras precisam ser destinadas a povos indígenas, comunidades tradicionais, pequenos produtores ou servirem para unidade de conservação, com ou sem uso sustentável dos recursos naturais. Infelizmente, essa destinação vem sendo feita a passos lentos por estados e União. Por isso, muitos chamam essa área de “terra de ninguém”.

CH: Como a falta de destinação dessas florestas pode incentivar práticas como grilagem e desmatamento?

PM: A lentidão abre oportunidade para o desmatamento ilegal e a tomada de terra por grileiros, que usurpam esse patrimônio público para especulação imobiliária. Sabemos que pelo menos 30% do desmatamento anual da Amazônia ocorre nas florestas públicas não destinadas. E acontece por essa ideia de que são terras sem dono. Em muitos casos, os invasores implementam uma atividade econômica, geralmente a pecuária, para dar uma “cara” de legitimidade à posse da terra, para depois tentar vendê-la como se fosse privada. Essa dinâmica tem crescido ao longo dos anos e tornou-se um grande negócio. Para se ter uma ideia, as florestas que ainda aguardam destinação e sofrem com o desmatamento ilegal contêm um volume de carbono equivalente ao que o mundo emite em quase um ano inteiro. Se perdermos essa floresta para a grilagem, injetaremos uma quantidade enorme de gases do efeito estufa na atmosfera, aumentando o problema climático e ainda afetando a distribuição de chuva no país. É algo que pode colocar em xeque também setores como energia e agricultura, pois ambos dependem da chuva produzida, em grande parte, pela Amazônia.

Sabemos que pelo menos 30% do desmatamento anual da Amazônia ocorre nas florestas públicas não destinadas. E acontece por essa ideia de que são terras sem dono

CH: O que tem sido feito pelo ordenamento territorial na Amazônia?

PM: O governo federal, principalmente através do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que envolve o INCRA, bem como a FUNAI, estão imbuídos em avançar com a destinação das florestas públicas que são de domínio federal. As ações em curso, como o mapeamento amplo dessas áreas e a identificação das comunidades que lá estão, permitirão a posterior destinação de acordo com a lei. Já são quase 15 milhões de hectares de terras públicas federais, muitas cobertas por florestas, que foram selecionadas pela “Câmara de Destinação” do governo federal para estudo de destinação. Já nas florestas públicas não destinadas estaduais, o processo é mais complicado. O estado do Pará é o único na Amazônia que está fazendo esforços para estabelecer sua Câmara de Destinação e vem se mostrando aberto a esse tipo de avanço. Já no estado do Amazonas, que concentra 60% destas florestas, o diálogo ainda tem que avançar. Um grande impedimento é que muitos acham que a Amazônia já está muito preservada. Não entendem que o serviço ambiental e climático de distribuir chuva e guardar carbono só funciona se tivermos grandes contínuos de florestas. Com o desmatamento ilegal avançando, é como se fizéssemos buracos num regador que hoje rega a maior parte do agronegócio brasileiro. Além disso, a proteção florestal é também a proteção de direitos de inúmeras comunidades e povos que estão na região há séculos.

Com o desmatamento ilegal avançando, é como se fizéssemos buracos num regador que hoje rega a maior parte do agronegócio brasileiro. Além disso, a proteção florestal é também a proteção de direitos de inúmeras comunidades e povos que estão na região há séculos

CH: Como a instalação do crime organizado na Amazônia dificulta ainda mais a preservação da floresta?

PM: O crime que afeta a preservação florestal sempre existiu na Amazônia, mas nunca foi tão organizado como agora. E isso torna tudo muito mais complexo e perigoso. A grilagem em terra pública, em especial aquelas não destinadas, tem sido parcialmente financiada pela extração ilegal de ouro, por exemplo. Que, por sua vez, tem financiamento garantido pelo tráfico de drogas e armas na região. É um grupo que se retroalimenta em termos de financiamento. Tiram dinheiro da extração de ouro para grilar a terra, pois derrubar floresta não é barato. Alguns cálculos, incluindo os da Polícia Federal, apontam que para derrubar um hectare (100mx100m) em florestas públicas invadidas gasta-se entre R$ 1500 e R$ 3000 reais. São, portanto, necessários milhões para derrubar mil ou 2 mil hectares. Não é o pequeno produtor que está fazendo isso, mas sim grandes grileiros. A presença do crime organizado ainda aumenta a insegurança e a violência no campo, o que afeta as ações de combate aos ilícitos e de proteção ambiental e florestal. Corremos o risco de que, no futuro próximo, tenhamos na Amazônia regiões onde o Estado brasileiro tenha dificuldades de atuar.

O crime que afeta a preservação florestal sempre existiu na Amazônia, mas nunca foi tão organizado como agora. E isso torna tudo muito mais complexo e perigoso. A grilagem em terra pública, em especial aquelas não destinadas, tem sido parcialmente financiada pela extração ilegal de ouro

CH: Por que mesmo com todo o avanço tecnológico dos meios de fiscalização da floresta ainda é tão difícil prevenir queimadas e desmatamento e punir os culpados?

PM: Sabemos onde está ocorrendo o desmatamento na Amazônia e até temos meios de descobrir onde a derrubada é legal ou ilegal. Mas a dinâmica da ilegalidade é rápida, esperta e, agora, bem-organizada. O Estado brasileiro, independentemente do governo de plantão, deve estar presente na região para garantir a segurança e os direitos dos brasileiros que lá vivem. A Justiça brasileira e os Ministérios Públicos Estaduais e Federal têm sido essenciais para este combate à ilegalidade. Fizemos um trabalho junto ao Ministério Público Federal, com envolvimento da Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que resultou na ideia de aplicar ao desmatamento ilegal o conceito de dano climático. Isto é, incluir no processo indenizatório por um ilícito ambiental o desmatamento ilegal, não somente pela supressão da vegetação nativa, mas também pela emissão de carbono oriunda deste ato. Inúmeras Ações Civis Públicas dos Ministérios Públicos estão em curso pedindo reparação pelo dano climático. Neste caso, o uso da tecnologia para calcular quanto de carbono foi emitido com o desmatamento é fundamental. A tecnologia é uma aliada, mas a rapidez e a complexidade com que a ilegalidade opera, com a conivência do poder local, dificultam a ação da Justiça.

A tecnologia é uma aliada, mas a rapidez e a complexidade com que a ilegalidade opera, com a conivência do poder local, dificultam a ação da Justiça

CH: Qual é o impacto do agronegócio na dinâmica do desmatamento?

PM: Boa parte do agronegócio ainda é muito conservador ou resistente ao entendimento sobre dinâmicas de alterações climáticas que já estão em curso e que são agravadas, principalmente, pelo desmatamento. É preciso entender que, na Amazônia, a mudança climática global afeta grande parte da região através da ocorrência de eventos climáticos extremos, tipo o El Niño, que combinado com desmatamento torna a situação ainda mais difícil. Florestas derrubadas não abastecem a atmosfera com vapor de água, via o que chamamos de evapotranspiração – algo como chover para cima. É essa transpiração das árvores da floresta que forma as nuvens de chuva que vão irrigar o agronegócio da Amazônia e fora dela. Felizmente, há outra parte crescente do agronegócio, tido como mais moderno e informado, que usa evidências científicas para balizar seus negócios. Este agro já entendeu o risco para a própria atividade caso o desmatamento e a questão climática continuem avançando. Um estudo que fizemos em Mato Grosso, por exemplo, mostra que as fazendas de soja que têm mais florestas são até 20% mais produtivas do que as que não as têm. Esse tipo de resultado de pesquisa científica vem sendo absorvido no planejamento de alguns setores produtivos. Mas é bom lembrar que a ilegalidade é um problema também muito sério para o agronegócio que quer fazer certo.

CH: Como a bioeconomia pode ajudar a promover a conservação da Amazônia? E de que forma deve funcionar para que isso aconteça?

PM: A chamada bioeconomia, ou a sociobioeconomia, existe há séculos na região amazônica. Um dos estudos do IPAM tem mostrado a pujança da atividade econômica na região que ocorre, por exemplo, dentro das unidades de conservação de uso sustentável. Isso indica que há uma economia oculta na Amazônia, que não está no IBGE, nem em levantamentos estatísticos, e é bem forte. Contudo, é preciso avançar na conceituação de qual é a tal sociobioeconomia que devemos adotar como país. Caso contrário, criaremos um guarda-chuva conceitual em que tudo cabe embaixo. Um passo fundamental para que a nova economia socioambiental funcione é que não seja, apenas, baseada nos produtos da floresta. É preciso que seu exercício produtivo não demande mais desmatamento ou destrua o modo de produção tradicional, muito baseado na organização social de comunidades e povos tradicionais. O açaí, por exemplo, ganhou tamanha notoriedade mundial que hoje existe o que muitos estudiosos chamam de uma “açaízação” da Amazônia. A expressão máxima disso é o plantio de açaí em monocultura. Ainda, a coleta tradicional do açaí está sofrendo uma mudança para o aumento de produtividade, que gera como efeito colateral a redução da diversidade biológica das florestas que abrigam os açaizais. Não se pode dizer que há bioeconomia só porque é um produto oriundo da floresta.

O açaí, por exemplo, ganhou tamanha notoriedade mundial que hoje existe o que muitos estudiosos chamam de uma “açaízação” da Amazônia. A expressão máxima disso é o plantio de açaí em monocultura

CH: Como o conhecimento dos povos originários da Amazônia pode ser mais bem aproveitado na criação de estratégias de conservação da floresta?

PM: O ponto inicial e fundamental para se aproveitar o conhecimento tradicional de povos da Amazônia é promovermos um amplo e definitivo reconhecimento do potencial e da importância que esse conhecimento tem para o futuro da região, do país e do planeta. Também são necessárias ações de valorização desse saber acumulado durante milênios. Boa parte da diversidade de sementes com potencial de uso como alimento está sendo usada pelos povos indígenas, por exemplo. Outros estudos mostram o saber desses povos em manejar a floresta amazônica e como tornar fértil o seu solo, o que permite maior produtividade. O conhecimento tradicional indígena foi acumulado dentro de um processo que podemos chamar de científico. Boa parte dele está sendo valorizada, por exemplo, no maior esforço científico para entender a Amazônia, o Painel Científico para a Amazônia. Esse painel, do qual tenho o prazer de participar, reúne mais de 300 cientistas, entre eles vários indígenas, extrativistas e membros de comunidades tradicionais amazônicas. Defendemos que o grande “pulo do gato” para a sustentabilidade futura da vida na região está na junção do conhecimento tradicional com a ciência moderna. Essa união pode nos ajudar a achar soluções viáveis e legítimas para a região e para outros biomas.

CH: Você trabalhou muito no conceito da redução compensada do desmatamento, que levou à criação do REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação). Qual é a contribuição atual dos incentivos econômicos para redução do desmatamento?

PM: Será difícil reagirmos à emergência climática se a solução não for de larga escala e implementada rapidamente. Mecanismos de pagamento por serviços ambientais, entre eles o REDD+, pode ser um dos caminhos, mas não o único. Quando lançamos em 2003, juntamente com parceiros, o conceito de “redução compensada do desmatamento tropical”, que posteriormente deu origem ao REDD+ que conhecemos hoje, a ideia era compensar países que fizessem esforços para redução de emissões por desmatamento. Mais tarde, o REDD+ foi reconhecido pela UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) como medida importante de mitigação. Caminhamos, contudo, ainda tentando achar a maneira mais adequada de operacionalizar este mecanismo. O mais promissor é o que chamamos de REDD+ Jurisdicional, que é implementado através de um programa de política pública e operado por um estado ou uma nação. Isso não quer dizer que tudo são flores. Ainda há problemas sérios de implementação e assistimos, também, a uma proliferação de projetos de carbono, não jurisdicionais. Vários destes projetos são importantes como parte de uma abordagem jurisdicional e devem ser apoiados, mas há uma crescente preocupação quanto à sua efetividade. Não bastasse, nos últimos anos vivemos tantas complicações globais, entre guerras, novas eleições e posicionamentos políticos retrógrados, que acabam gerando insegurança em quem quer investir dinheiro em melhores práticas que beneficiam o meio ambiente. Países recentemente relutaram em botar na mesa as suas NDCs (sigla para “Contribuição Nacionalmente Determinada”, que indica o plano de ação climática de cada país). Há ainda uma crescente contradição quanto às opções do futuro. No nosso quintal, tem sido a opção de muitos, em plena crise climática, a defesa da extração de petróleo na Foz do Amazonas. Precisamos lembrar que petróleo é carbono fóssil, está enterrado nas profundezas da terra. Ele não interage com a biosfera. Falar em reduzir emissões de carbono de desmatamento e continuar a incentivar a exploração e a queima de petróleo não faz o mínimo sentido. Temos boas iniciativas e alternativas para energias renováveis, mas a vontade política nacional e global parece estar se esgotando.

CH: Como chegamos à COP30 (a Conferência das Partes, organizada pela ONU e que este ano acontece no Brasil) e qual é a importância da cúpula no reforço do alerta de emergência?

PM: É essencial continuar a buscar espaços de inclusão da sociedade global. Se as representações dessas pessoas tiverem um espaço legítimo para escutar e para falar, aí teremos avanços. Confesso que isso ainda é complicado dentro das COPs. Existe um argumento de que “as pessoas não vão entender”, “que o assunto é complexo”. Isso não é verdade. Os indígenas, quilombolas etc. entendem muito bem a mudança do clima, porque vivem isso na pele. Ouvi-los é a chance de que a COP na Amazônia seja transformadora. O segundo ponto é que tenhamos a ampliação do consenso de que a proteção e a recuperação florestal são chave para a mitigação do problema climático global. É, sim, uma COP da floresta, apesar de muitos negociadores acharem que não. A Amazônia, não somente a brasileira, abriga mais de 100 bilhões de toneladas de carbono. Isso equivale a uma década de emissões globais de gases de efeito estufa. As emissões com queima e derrubada de florestas não são desprezíveis. E é onde podemos atuar rapidamente, porque a mudança de matriz energética do planeta não acontecerá numa escala de anos. Mas podemos parar a emissão de gases de efeito estufa oriundos de desmatamento tropical. Isso nos dará mais tempo para um salto definitivo na consolidação de uma matriz energética renovável.

Outros conteúdos desta edição

725_480 att-92971
725_480 att-93212
725_480 att-93041

Outros conteúdos nesta categoria