Antes de se popularizar como método de rejuvenescimento da pele com a marca Botox, substância altamente tóxica foi alvo de pesquisa na Segunda Guerra para ser convertida em arma letal
Antes de se popularizar como método de rejuvenescimento da pele com a marca Botox, substância altamente tóxica foi alvo de pesquisa na Segunda Guerra para ser convertida em arma letal
CRÉDITO: ADOBE STOCK
Existem muitos tipos de venenos e toxinas no mundo. Algumas são produzidas por animais, como cobras e escorpiões; outras por plantas, como a ricina, e outras por fungos, como a aflatoxina. Há ainda as toxinas sintéticas criadas pelos humanos. Mas, em meio a toda essa diversidade, uma certa toxina produzida por uma pequena bactéria leva, indiscutivelmente, o prêmio de mais potente da natureza.
Sua potência é tanta que apenas 70 nanogramas são suficientes para matar uma pessoa adulta. Para se ter ideia, um nanograma equivale a apenas um bilionésimo de uma grama. Um grão de sal, por exemplo, pesa cerca de 60 mil nanogramas. Então se 70 nanogramas são suficientes para matar uma pessoa, o equivalente a um grão de sal dessa toxina poderia eliminar cerca de 850 indivíduos. E uma única grama dessa toxina purificada poderia matar mais de um milhão de pessoas! Não é por acaso que a maioria dos governos do mundo considera essa toxina um potencial agente de guerra biológica.
Mas, por incrível que pareça, diariamente, milhares de pessoas recebem injeções dessa toxina no corpo, especialmente no rosto. Essa toxina é o princípio ativo do Botox, um tratamento de beleza e antienvelhecimento cobiçado e popular. Seu nome oficial é toxina botulínica, uma neurotoxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum.
A C. botulinum e sua temível toxina são importantes agentes de infecções alimentares. Desde o início do século 18, os médicos já reconheciam uma estranha doença que causava uma paralisia flácida após a ingestão de certos alimentos, especialmente carnes, salsichas, linguiças, e presuntos embutidos. Os pacientes acometidos ficavam moles e não conseguiam mais fazer contração muscular, tinham dificuldade em falar, engolir e sua visão se tornava embaçada, como se estivessem perdendo o controle dos músculos da face.
No início do século 19, o médico e poeta alemão Justinus Kerner (1786-1862) realizou um trabalho pioneiro, onde estudou vários casos de intoxicação alimentar ligados ao consumo de salsichas e carnes embutidas na Alemanha e descreveu os sinais clínicos e sintomas do botulismo e chamou a doença de “Toxina da Salsicha”. Mais tarde, em 1870, o nome da doença foi alterado para botulismo – a palavra vem de botulus, salsicha em latim. Mas foi apenas em 1895 que a C. botulinum foi descoberta pelo microbiologista belga Emile Pierre Marie Van Ermengem (1851-1932). Ele havia sido recém-contratado na Universidade de Ghent, na Bélgica, e era discípulo do famoso microbiologista alemão Robert Koch (1843-1910), com quem havia trabalhado em Berlim. Em 4 de dezembro de 1895, ele foi enviado para Ellezelles, uma cidade de 4 mil habitantes no interior do país, para investigar um surto de botulismo que havia causado a morte de três pessoas e deixado mais dez em estado grave.
O surto afetou os integrantes de uma banda de fanfarra que havia sido contratada para tocar em um funeral. Após a cerimônia, todos se reuniram para jantar um presunto defumado em conserva na taberna local. Depois da refeição, vários músicos passaram mal, apresentando sintomas da paralisia flácida, como a diplopia (visão embaçada ou dupla), disfagia (dificuldade em engolir) e disartria (dificuldades em articular palavras). Durante a necrópsia, Van Ermengem isolou um microrganismo dos tecidos das vítimas que ele chamou de Bacillus botulinus (renomeado como Clostridium botulinum). Ele também conseguiu isolar o mesmo microrganismo do alimento que havia sido consumido. Mas a toxina botulínica, responsável pelos sintomas da doença, só foi purificada muitos anos mais tarde por um cientista americano na Universidade da Califórnia em São Francisco, Hermann Sommer (1899-1950).
Todo esse relato histórico, no entanto, não responde a duas questões: afinal, por que essa toxina é tão potente? E como uma toxina tão perigosa se tornou um tratamento de beleza?
A toxina botulínica é produzida quando esporos da C. botulinum germinam em algum alimento, e a bactéria se multiplica rapidamente, liberando essa toxina. Esporos são formas dormentes das bactérias, muito resistentes a tratamentos químicos (como lavagens com sabão e conservantes químicos) e físicos (como calor). A toxina botulínica é uma neurotoxina, seu alvo de ação fica localizado na interface do nosso sistema nervoso com o tecido muscular, mais precisamente nos neurônios motores. Esses neurônios motores recebem uma informação do nosso cérebro sobre contração muscular e a transmitem para o músculo por meio de uma sinalização química mediada pela molécula acetilcolina. A toxina botulínica se liga ao neurônio motor, é internalizada por essa célula e, lá dentro, impede a liberação da acetilcolina (o sinal para contração muscular), interrompendo a comunicação e causando uma paralisia flácida.
Uma única grama dessa toxina purificada poderia matar mais de um milhão de pessoas! Não é por acaso que a maioria dos governos do mundo considera essa toxina um potencial agente de guerra biológica
Antes de se popularizar na estética, a toxina botulínica foi alvo de pesquisas por um motivo sombrio. Durante a Segunda Guerra, governos dos dois lados do conflito criaram programas de armas biológicas e comissionaram cientistas para desenvolver maneiras de purificar e dar a essa toxina aplicações bélicas. Essas atividades nunca se concretizaram, mas a pesquisa foi aproveitada por outros cientistas, pois mesmo não desenvolvendo uma arma, foram criados métodos para obter toxina altamente pura e com boas práticas de fabricação.
Assim, o mecanismo de ação da toxina botulínica foi desvendado, mas a sua história como um tipo de terapia médica e tratamento estético começa na década de 1970, com um oftalmologista que procurava um tratamento eficaz para o estrabismo (provocado por um desequilíbrio dos músculos oculares que resulta em um desalinhamento dos olhos, que perdem o paralelismo). Naquela época, o tratamento era cirúrgico, mas a taxa de sucesso era baixa. O médico Alan Scott (1932-2021), da Smith Kettlewell Eye Research Institute da Califórnia, ouviu falar sobre trabalhos com uma toxina que causava relaxamento dos músculos e desnervação muscular (perda do neurônio motor) em animais de laboratório. Ele teve, então, uma epifania, afinal era exatamente o que ele procurava para corrigir o estrabismo: uma substância que faz com que um músculo relaxe o suficiente para corrigir o alinhamento dos olhos sem cirurgia. Ele começou a realizar testes em animais e, em 1980, já havia feito estudos clínicos em humanos e publicava seus resultados positivos na correção do estrabismo e no tratamento de blefaroespasmos (espasmos involuntários da musculatura do olho e das pálpebras). Quem fornecia a toxina purificada era o Ed Schantz (1908-2005), naquela época professor da Universidade de Wisconsin, mas que havia trabalhado para o governo americano durante a Segunda Guerra.
Todos se reuniram para jantar um presunto defumado em conserva na taberna local. Depois da refeição, vários músicos passaram mal, apresentando sintomas da paralisia flácida, como a diplopia (visão embaçada ou dupla), disfagia (dificuldade em engolir) e disartria (dificuldades em articular palavras)
Em 1989, a toxina botulínica recebeu aprovação da agência americana de regulação FDA (Food and Drug Administration) para o tratamento de estrabismo e blefaroespasmos. Em 1991, os direitos de uso foram vendidos para uma companhia privada, que renomeou o produto de Botox. Os oftalmologistas aderiram ao tratamento, mas algo fora do comum acontecia. Os pacientes tratados ficavam com a pele mais lisa, perdiam as rugas da glabela (região entre as sobrancelhas) e os “pés-de-galinha”. Isso despertou um interesse no uso estético de injeções de toxina botulínica, e ensaios clínicos randomizados para estudar a segurança e a eficácia desta abordagem para rugas faciais se multiplicaram. Em 2002, a toxina botulínica foi aprovada para o tratamento de rugas e linhas de expressão. O Botox não suaviza as expressões faciais porque rejuvenesce ou alisa a pele, mas sim porque evita que os músculos que estão por debaixo da pele se contraiam e formem as linhas de expressão.
Apesar de o Botox e produtos equivalentes terem se tornado um sucesso na estética, a atividade da neurotoxina botulínica também pode ser usada para o tratamento de doenças como a distonia cervical (contrações involuntárias e dolorosas da musculatura do pescoço), hiperidrose axilar (suor em excesso nas axilas), enxaqueca crônica, bruxismo e incontinência urinária. Como dizia o famoso médico suíço Paracelso (1493-1541): dosis sola facit venenum (só a dose faz o veneno).
Os oftalmologistas aderiram ao tratamento, mas algo fora do comum acontecia. Os pacientes tratados ficavam com a pele mais lisa, perdiam as rugas da glabela (região entre as sobrancelhas) e os “pés-de-galinha”
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