Características típicas dessas criaturas da ficção, como a imortalidade e a alimentação baseada em sangue, poderiam ser produzidas pela ação de genes presentes em alguns animais
Características típicas dessas criaturas da ficção, como a imortalidade e a alimentação baseada em sangue, poderiam ser produzidas pela ação de genes presentes em alguns animais
CRÉDTIO: ADOBE STOCK
A ideia da existência de um ser que se alimenta da essência ou energia vital de seres vivos é bastante antiga. Há registros de criaturas parecidas na mitologia e no folclore de muitas sociedades ao longo da história.
Na literatura, um grande marco na concepção moderna de vampiro se deu com Drácula, romance de terror publicado em 1897 pelo escritor irlandês Bram Stoker (1847-1912). De lá para cá, muitas histórias de vampiros surgiram. Algumas eram fortemente inspiradas e baseadas no Conde Drácula, mas tantas outras nos apresentaram versões diferentes de vampiros, com variadas habilidades e fraquezas.
Apesar das múltiplas versões de vampiros na ficção, existem três características que se repetem bastante: a hematofagia (hábito de se alimentar com sangue), a imortalidade e a aversão total à luz.
Essas características vampirescas existem no mundo real? Será que poderíamos criar um vampiro a partir da edição genética de um ser humano? Neste texto, vamos tentar responder essas perguntas, tendo como referência um artigo da bióloga molecular Veronika Laine, do Museu de História Natural da Finlândia.
Você certamente sabe citar o nome de alguns animais hematófagos, ou seja, que se alimentam de sangue, porque temos contato frequente com alguns deles: mosquitos, piolhos, carrapatos, pulgas, sanguessugas, bernes, barbeiros e algumas espécies de morcego.
Alimentar-se de sangue, como fazem esses animais e os vampiros, não é tão simples quanto beber um líquido qualquer, por causa de algumas especificidades desse fluido corporal tão importante.
O nosso sangue possui uma dinâmica incrível. Ele precisa se manter fluido enquanto circula pelos vasos sanguíneos. Se ocorre um coágulo em alguma parte do corpo, ou seja, se partes do sangue se aglutinam formando uma estrutura gelatinosa ou semissólida, o fluxo sanguíneo será prejudicado, podendo causar diversos tipos de trombose, embolia pulmonar, acidente vascular cerebral e infarto.
Por outro lado, quando sofremos uma lesão e um vaso sanguíneo é rompido, o fluxo sanguíneo naquela região não pode continuar funcionando da mesma forma, porque isso causaria uma enorme perda de sangue. Quando isso ocorre, nossas plaquetas são ativadas e se agregam em torno do local lesionado, formando uma estrutura denominada tampão plaquetário. Após um processo bioquímico complexo no sangue, uma enzima é liberada, provocando a coagulação sanguínea na quantidade suficiente para conter o sangramento.
Para que um animal que se alimenta de sangue possa sugá-lo e bebê-lo em seu estado líquido, é necessário injetar substâncias que impeçam que a coagulação ocorra durante a alimentação.
Muitos animais têm genes que produzem enzimas que regulam a coagulação sanguínea, mas, em alguns hematófagos, esses genes se expressam na glândula salivar do animal e são muito mais eficientes em degradar coágulos.
O morcego-vampiro (Desmodus rotundus), por exemplo, tem em sua saliva uma enzima denominada ativador de plasminogênio, considerada a chave para o surgimento da alimentação sanguínea nessa espécie. Nós, humanos, também possuímos genes associados a ativadores de plasminogênio, que nos protegem de ataques cardíacos, por exemplo. Mas eles não são tão eficientes quanto os do morcego. Não à toa, a saliva de morcego é alvo de muitas pesquisas científicas, que buscam a produção de medicamentos para os problemas relativos à coagulação do sangue. Outra substância da saliva do morcego-vampiro é uma glicoproteína chamada draculina (em homenagem ao Conde Drácula), que inibe imediatamente o processo de coagulação sanguínea.
Assim, para que um vampiro seja capaz de se alimentar adequadamente, ele precisaria possuir genes que produzem essas substâncias, preferencialmente em sua saliva.
Estudos recentes mostraram que os morcegos-vampiros perderam muitos genes em seu processo evolutivo e isso explica a sua adaptação à dieta baseada exclusivamente em sangue. Alguns desses genes perdidos eram os responsáveis pela produção de insulina, que não é muito importante para um animal que ingere pouco açúcar. Outros genes perdidos eram responsáveis por produzir receptores de sabor doce e amargo, o que tornou os morcegos menos sensíveis ao gosto terrível que o sangue tem.
Já outros genes perdidos provocaram uma alteração estrutural no estômago desses animais, transformando-os em uma espécie de balão, que se enche de sangue e extrai o máximo possível de água para ser rapidamente eliminada por meio da urina.
Todas essas adaptações seriam importantes para que um vampiro pudesse existir no mundo real se alimentando exclusivamente de sangue.
Quando dizemos que um vampiro é imortal, nos referimos a uma impossibilidade de morte natural, morte por velhice. Afinal, o caçador de vampiros Abraham Van Helsing, maior inimigo do Conde Drácula, já provou em várias histórias que vampiros podem, sim, ser mortos de algumas maneiras específicas.
Desse modo, um vampiro no mundo real deveria ser imune ao envelhecimento, ou seja, à deterioração funcional dos nossos mecanismos fisiológicos provocada pela passagem do tempo. Mas isso seria possível?
O nosso envelhecimento tem relação direta com o processo de senescência celular (envelhecimento das células). E muitas pesquisas têm investigado maneiras de retardar ou até reverter esse processo. No texto de dezembro de 2021 publicado nesta seção, tratei mais demoradamente sobre esse assunto.
Embora o envelhecimento seja influenciado tanto por fatores genéticos quanto ambientais, o papel da genética na expectativa de vida aumenta fortemente conforme a idade avança. Assim, pesquisas científicas tentam identificar genes comuns a pessoas longevas, que podem estar contribuindo para aumentar seu tempo de vida.
Um gene que parece estar associado à saúde do cérebro no envelhecimento e à longevidade é o FOXO3. Conforme elucida a bioquímica Maria Fernanda Forni em sua tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo, o papel dos genes da família FOXO nas nossas células-tronco (que têm o potencial de se diferenciar em células de todos os órgãos e tecidos do corpo) ainda não é bem conhecido, mas uma possibilidade é a de que eles possam contribuir para a preservação e o reparo de tecidos durante o envelhecimento, por meio da manutenção de populações de células-tronco adultas.
Estudos com hidras (pequenos animais de água doce com formato cilíndrico e tentáculos) mostram que o FOXO tem papel central na renovação de suas células e a superexpressão desse gene (isto é, o aumento de sua atividade) leva a uma maior proliferação de células-tronco. As hidras são famosas pela capacidade de transformar suas células e tecidos em novas estruturas, de modo a renovar constantemente seu corpo, o que as torna potencialmente imortais.
Portanto, essa família de genes e a maneira como ela se expressa no organismo também é um elemento-chave para a existência de um vampiro.
Os vampiros são criaturas noturnas, completamente avessas à luz solar. Mesmo a mais rápida exposição ao Sol já é capaz de fazer a pele de um vampiro queimar. Exposições maiores são mortais, podendo incendiar por completo um vampiro.
Embora não sejam conhecidos casos tão extremos no mundo real, podemos fazer alguns paralelos. A luz solar é composta por uma série de radiações, algumas das quais somos capazes de enxergar (como as cores do arco-íris), e outras não. A radiação ultravioleta (UV) é uma das luzes que não enxergamos. Ela tem alta quantidade de energia, o que a torna mais perigosa do que as demais.
A exposição prolongada a altas doses dessa radiação, de fato, provoca queimaduras na nossa pele e danos no nosso DNA, podendo levar à formação de tumores. Mas é claro que os vampiros diferem de nós, humanos, por serem excessivamente sensíveis aos raios UV.
Algumas pessoas possuem a chamada ‘alergia ao Sol’. Isso acontece quando nosso próprio organismo reconhece a nossa pele (alterada pelo Sol) como um corpo estranho e ativa defesas imunológicas contra ela, provocando inflamações, coceiras, bolhas e manchas. Mas, ainda assim, isso não é nada que um anti-histamínico e um protetor solar não resolvam.
Existe outra doença que também provoca sensibilidade à luz solar e é ainda mais grave e rara, denominada ‘xeroderma pigmentoso’ (ou XP). A doença é causada por mutações nos genes que reparam danos no DNA. Assim, a cada dose recebida de radiação ultravioleta, os portadores de XP acumulam anormalidades em seu DNA, que podem levar à morte de células ou ao desenvolvimento de câncer de pele.
Por mais que essa doença seja grave e incurável, ela ainda não é tão drástica quanto a condição que acomete os vampiros, que certamente é um caso ainda mais extremo de hipersensibilidade ao Sol.
Com essa breve análise das três principais características dos vampiros, podemos dizer que, embora humanoides, essas criaturas possuiriam diferenças genéticas substanciais em relação à espécie humana.
Com o domínio da engenharia genética e o conhecimento muito mais detalhado do genoma humano, torna-se cada vez mais possível editar genes para introduzir características desejáveis em novos bebês.
Mas evidentemente esse é um processo de altíssima complexidade e que envolve questões éticas muito profundas. Mais importante do que termos tecnologia capaz de criar vampiros é sabermos dizer se o uso dessa tecnologia fará tão bem assim à humanidade.
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