As novas faces da grilagem no Brasil

Departamento de Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Ciências Humanas e Sociais
Universidade Federal do Mato Grosso
(Campus Universitário do Araguaia)
Departamento de Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro

A grilagem de terras – ocupação irregular de terras públicas para apropriação privada – é parte da história nacional e teve um papel fundamental na formação da estrutura fundiária brasileira. Longe de ser um fenômeno ultrapassado, essa apropriação fraudulenta se mantém como uma prática constitutiva do espaço agrário. Além de estar na origem de parte dos problemas sociais do campo, a grilagem se beneficiou de medidas legislativas e regulamentares recentes que lhe deram um novo impulso, questionando o poder do Estado em coibir essa prática.

Para compreender a questão da grilagem, é necessário conhecer as formas históricas de distribuição e aquisição de terras no Brasil. No período colonial, a divisão do território em sesmarias (imensos lotes de terras virgens distribuídos em nome do rei de Portugal para agricultura) criou problemas que estão na origem da questão fundiária atual.

Um primeiro problema deriva da dificuldade em se mapear um território tão extenso: os limites das sesmarias eram imprecisos, o que resultou em apropriações indevidas e conflitos. Além disso, amplas áreas concedidas aos beneficiários não eram utilizadas do ponto de vista produtivo.

Outro problema vem da escassez de população, que limitava a ocupação do território e a disponibilidade de força de trabalho no campo. Estima-se que, até 1700, a população brasileira era de apenas 300 mil habitantes, em boa medida concentrados no litoral nordestino e nas regiões mineradoras, segundo aponta Celso Furtado em seu livro Formação Econômica Brasileira.

Por fim, somam-se a essas questões limitações políticas de domínio territorial, já que muitas regiões, principalmente no interior do país, não eram administradas na prática pela coroa portuguesa ou eram regiões em disputa com outros países. Esses fatores estão na origem de uma dissonância entre a legalidade da propriedade da terra e o seu uso efetivo, com terras ocupadas por grupos ou pessoas que não possuíam o seu direito legal e, por outro lado, grupos e pessoas que, como proprietários, não ocupavam as terras de fato.

A Lei de Terras

Com a independência do país em 1822 e a revogação do regime das sesmarias, instaurou-se um vazio jurídico que reforçou a ocupação espontânea. O território em construção e seus confins alimentavam os mais diversos anseios de apropriação e exploração, tanto para os atores mais vulneráveis do campo (camponeses, indígenas, caboclos, escravos libertos) quanto para os mais providos. Em qualquer desses casos, seja pela concessão do regime de sesmarias, seja pelo simples apossamento, do ponto de vista jurídico, as terras eram de domínio da Coroa Portuguesa, visto que não existia, até então, o regime de propriedade privada da terra.

A Lei de Terras, de 1850, que dispõe sobre as terras devolutas no Império, passa a ser um marco na regulação fundiária nacional ao estipular que o acesso à terra não mais se daria pela mera ocupação, e sim por meio da sua compra. Ao instituir a propriedade privada e o mercado de terras, a Lei de Terras estabeleceu, ao mesmo tempo, a definição de terra pública. Assim, todos os possuidores (sesmeiros e posseiros) tinham um prazo estabelecido para registrarem suas terras, sob pena de estas caírem em comisso, isto é, de voltarem ao domínio público e serem consideradas, portanto, terras devolutas.

Com essa nova configuração, tudo aquilo que não fosse legitimamente de um particular seria consequentemente público pelo critério da exclusão, mesmo as chamadas terras devolutas, sem registro e sem uma destinação pública específica. Ocorre que, ao deixar a cargo dos particulares a regularização e o registro fundiário, com enormes fragilidades institucionais, a Lei de 1850 consolida, na prática, as formas de apropriação fraudulentas, que persistem até os dias atuais.

Ocorre que, ao deixar a cargo dos particulares a regularização e o registro fundiário, com enormes fragilidades institucionais, a Lei de 1850 consolida, na prática, as formas de apropriação fraudulentas, que persistem até os dias atuais

Ela é, ainda, interpretada como um texto conservador, cuja preocupação foi garantir a permanência de oferta de mão de obra barata ao setor agropecuário e consolidar as elites agrárias num momento em que o fim da escravatura estava se desenhando. De fato, ela exclui do mercado fundiário todos aqueles que não possuem recursos para adquirir terra, como os trabalhadores pobres e os escravos libertos, impelidos a oferecer sua força de trabalho nas fazendas para sobreviver.

Esse processo consolidou dois perfis que ajudam a compreender a complexidade da posse de terras. O primeiro perfil remete a campesinos que, embora não possuíssem o título da terra, moravam e produziam nos locais já ocupados. São os chamados posseiros. A Lei de Terras garantiu a sua permanência como ocupantes legítimos; porém, novas ocupações não poderiam se dar da mesma forma. Daí em diante, as terras teriam que ser compradas do Estado (figura 1).

Figura 1. Diferenças entre grileiros e posseiros.

ELABORAÇÃO: ZUCHERATO B.

O outro perfil é o de grupos que também ocupavam as terras de maneira irregular, mas falsificavam documentos de concessão das antigas sesmarias ou documentos de transmissão de posse como forma de serem reconhecidos como os verdadeiros donos da terra. Esses são os chamados grileiros. Eles são mais capitalizados, têm acesso aos cartórios e às administrações públicas que registram os títulos de propriedade, além de estarem inseridos em uma ampla rede social mobilizada para a apropriação fraudulenta da terra.

Por tudo isso, é possível concluir que a Lei de Terras de 1850, longe de contribuir para discriminar as terras públicas das privadas, serviu, em grande medida, como mecanismo para incorporação ilegal de terras públicas e consolidação de áreas griladas.

Por tudo isso, é possível concluir que a Lei de Terras de 1850, longe de contribuir para discriminar as terras públicas das privadas, serviu, em grande medida, como mecanismo para incorporação ilegal de terras públicas e consolidação de áreas griladas

Fenômeno típico das fronteiras agrícolas

A partir de então, a grilagem se consolidou como uma prática lucrativa de controle da terra. À medida que a ocupação do território se intensificou, conflitos se multiplicaram entre posseiros, grileiros e proprietários. O progressivo adensamento da estrutura fundiária nas áreas de agricultura consolidada contribui no avanço e na busca por novas terras nas áreas ainda pouco cobiçadas, com baixa ocupação populacional.

É nas áreas de fronteira agrícola, onde o mercado fundiário é ainda balbuciante e a delimitação das propriedades muito imprecisa, que a grilagem se expressa com maior força e continua liderando, como no passado, a apropriação de terras. Nelas, o Estado não consegue conter a grilagem, por não ter um registro cartográfico completo das terras públicas, nem cadastro da delimitação precisa das propriedades privadas.

Além disso, o Estado realiza poucas ações discriminatórias, que são as ações administrativas ou judiciais destinadas a discriminar e arrecadar as terras devolutas e registrar a sua transferência para o patrimônio público. As terras públicas ditas ‘indeterminadas’ são o grande alvo dos grileiros por não ter um destino definido.

É nas áreas de fronteira agrícola, onde o mercado fundiário é ainda balbuciante e a delimitação das propriedades muito imprecisa, que a grilagem se expressa com maior força e continua liderando, como no passado, a apropriação de terras

As fronteiras agrícolas do Cerrado e da Amazônia, por exemplo, são notoriamente marcadas por grilagem e conflitos fundiários, onde é comum ver uma mesma terra sendo reivindicada por duas, três ou quatro pessoas distintas. Não por coincidência, as fronteiras agrícolas das últimas décadas se destacam pelo grande tamanho dos estabelecimentos agrícolas e por concentrar muita terra em poucas mãos (figura 2).

Figura 2. A comparação dos gráficos aponta para uma maior presença de
estabelecimentos agropecuários grandes e muito grandes na região Centro-oeste em
relação à média nacional. A região, justamente, se destaca pelo avanço da fronteira
agrícola desde a década de 1980.

CRÉDITO: CENSO AGROPECUÁRIO 2017 (IBGE) /
ELABORAÇÃO: IZECKSOHN, J. C.

Por essas características e pela incapacidade do poder público em regulá-la, a grilagem tornou-se, também, um dos motores da concentração fundiária no país.

Mecanismos da grilagem

O êxito do processo depende de dois fatores: a) a eficiência na falsificação de documentos e na sua aceitação pelas autoridades que regulam o mercado de terras (cartórios e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA); b) a compra e venda sucessiva dos imóveis, o que torna a grilagem cada vez mais difícil de ser revertida juridicamente (figura 3).

Figura 3. Diagrama dos agentes e formas de aquisição da terra mais comuns
envolvidos nos conflitos de grilagem.

ELABORAÇÃO: ZUCHERATO B.

Existem muitos mecanismos jurídicos de execução da grilagem. A origem do termo é ligada ao uso de grilos trancados em uma caixa com documentos forjados, a fim de envelhecer artificialmente o documento para parecer mais legítimo. Hoje, porém, os protocolos de falsificação de documentos se sofisticaram, inclusive com o uso de técnicas digitais, e são facilitados pela própria legislação agrária e ambiental.

Os cartórios são a espinha dorsal do sistema, já que aceitam abrir matrículas com uma documentação incompleta ou suspeita. Uma vez que o proprietário tem o ônus de provar o desmembramento do imóvel particular a partir do patrimônio público, esse momento da alienação para um agente privado é o que se escolhe com maior frequência para forjar documentos, abrindo-se uma matrícula sem indicar a origem do imóvel.

A partir disso, se constrói uma cadeia dominial sucessória, através da qual é reconstituída toda a genealogia das sucessivas compras, vendas e transmissões de um bem desde a sua forjada saída do patrimônio público. Usa-se, por exemplo, uma declaração de um pretenso proprietário, ou falsificam-se documentos de partilha e desmembramento na ocasião de inventários (herança, dissolução de empresa, separação etc.).

Outra modalidade são as ações judiciais que procuram reconhecer terras devolutas como sendo privadas para driblar a proibição constitucional de usucapião de terras públicas. Laranjas são instalados nessas terras e simulam uma ocupação mansa e pacífica, desbravando e cultivando grandes parcelas. Uma vez ‘usucapiada’ a terra, os títulos forjados são agregados para compor uma superfície contínua de grande tamanho, em nome do grileiro.

A mesma operação pode ser realizada com declarações de posse que, mediante ação de um cartório conivente, podem ser transcritas como sendo registros de propriedade. Existe ainda, a técnica de retificação de área no registro de propriedade, na qual solicita-se que os limites de uma propriedade sejam modificados em cartório. Nesse caso, a matrícula existe, mas o pretenso proprietário alega um erro na área registrada e solicita a ampliação dos seus contornos.

Essa técnica foi muito usada no cerrado nordestino para ‘puxar’ matrículas sobre terras ocupadas por comunidades tradicionais. Em todos esses casos, as áreas griladas costumam ser extensas, constituídas por milhares de hectares, que o grileiro pode entregar diretamente a um grande produtor ou lotear para venda.

De uma ilegalidade à outra

Desde o início do século 21, o surgimento de novos dispositivos legais propiciou outras modalidades de grilagem. Assim, os programas de regularização fundiária, como o ‘Terra Legal’ (2009), inicialmente pensados para dar segurança jurídica aos pequenos produtores posseiros na Amazônia pela distribuição de títulos de propriedade, foram flexibilizados, ampliaram a superfície das terras suscetíveis de serem regularizadas e tiveram a sua abrangência territorial aumentada para além dos territórios iniciais, que eram focados nos municípios mais conflituosos e sujeitos a desmatamento ilegal na Amazônia.

Estudos apontam que esses programas estão sendo desvirtuados e propiciaram a grilagem de imensas áreas na Amazônia ao simplificar demais os protocolos de regularização fundiária e ao aceitar uma documentação comprobatória de fácil falsificação. A partir dessa experiência, cientistas e movimentos sociais tentam alertar a sociedade sobre o risco representado por recentes iniciativas legislativas, como a famosa MP da Grilagem, que ampliaria e flexibilizaria mais ainda as regras para a regularização fundiária.

Os dados sobre conflitos por terra mostram que houve um forte aumento das ocorrências e das superfícies envolvidas ao longo da última década (figura 4). Tais dados indicam uma recrudescência de tentativas de apropriação de terras em locais ocupados por terceiros, o que leva a conflitos.

Figura 4. Os dados sobre conflitos por terra indicam uma recrudescência de tentativas
de apropriação de terras em locais ocupados por terceiros ao longo da última década

FONTE: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2022 / ELABORAÇÃO: IZECKSOHN, J. C.

Paralelamente, as medidas de regularização ambiental implementadas pelo Código Florestal de 2012 instauraram o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que vem sendo usado como um cadastro fundiário informal nas operações de grilagem, para comprovar a ocupação e propriedade de terra.  Ferramentas como o CAR, que funcionam por meio de autodeclaração, acabam sendo utilizadas para a regularização de terras indevidamente ocupadas e ajudam a validar o processo de grilagem, já que, na maioria das vezes, as informações sobre tamanho, localização e ocupação não são verificadas presencialmente por autoridades públicas após o cadastramento.

Além disso, por conta do acesso desigual a tecnologias como o georreferenciamento, grupos socialmente vulneráveis não conseguem cadastrar seus territórios e são excluídos. Dessa forma, assim como a grilagem ocorria historicamente pelo avanço das cercas sobre terras alheias ou públicas, atualmente isso pode ser replicado de forma digital, ao se registrar uma área em terras públicas.

Assim como a grilagem ocorria historicamente pelo avanço das cercas sobre terras alheias ou públicas, atualmente isso pode ser replicado de forma digital, ao se registrar uma área em terras públicas

Além de usurpar uma terra pública, os registros digitais conflitam muitas vezes com outros ocupantes dessas áreas que ainda não têm os seus direitos reconhecidos. As organizações de defesa das populações indígenas e tradicionais se mobilizam para denunciar essas práticas e alertam o poder público sobre a urgência de fazer o CAR de todas as terras de uso ou propriedade coletivos.

No entanto, após a publicação do novo Código Florestal, o módulo de declaração CAR específico para Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) sofreu atrasos e sucessivas reformulações (por exemplo: no sistema nacional, o SICAR, o módulo PCT foi reformulado em 2018; no estado de Tocantins, esse módulo foi implementado apenas em 2020). Além da lentidão institucional, o módulo dos PCT é ainda pouco conhecido, tornando essas populações extremamente vulneráveis à ação de grileiros.

Os estudos realizados sobre os usos do CAR e dos mecanismos simplificados de regularização fundiária apontam a existência de esquemas organizados de grilagem e denunciam, ainda, uma relação causal entre desmatamento ilegal e grilagem. Essa configuração é agravada pelo aumento, nos últimos anos, de declarações de CAR e operações de grilagem em áreas protegidas como as Terras Indígenas (TI) demarcadas, o que seria legalmente impossível já que são terras públicas destinadas.

Um estudo do Instituto Socioambiental na Amazônia avaliou em 11,6 milhões o número de hectares registrados no CAR em nome de terceiros e sobrepostos a Unidades de Conservação federais na Amazônia em 2020. Se acrescentar a isso as Unidades de Conservação estaduais, TI e as florestas públicas não destinadas, as sobreposições de CAR de terceiros sobre áreas protegidas na Amazônia Legal chegam a 29 milhões de hectares, dentre as quais 3,5 milhões em Terras Indígenas. O mesmo estudo mostra que o desmatamento disparou no interior dos novos registros do CAR entre 2018 e 2020, estabelecendo uma relação clara entre grilagem e desmatamento.

História sem fim?

A renovação das modalidades de apropriação ilegal, associada a um discurso de tolerância por parte das autoridades públicas, levou a uma recrudescência do número de casos de grilagem e a uma explosão das superfícies cobiçadas. Estamos diante de uma situação na qual o Estado sustenta novos instrumentos de regularização fundiária e ambiental que acabam amparando a dinâmica em curso sem, por outro lado, se dar os meios de um maior controle da situação.

Estamos diante de uma situação na qual o Estado sustenta novos instrumentos de regularização fundiária e ambiental que acabam amparando a dinâmica em curso sem, por outro lado, se dar os meios de um maior controle da situação.

As perspectivas de controle estão basicamente na discriminação das terras públicas e na consolidação dos cadastros atualmente vigentes no campo. Ao se dotar de uma base de dados estabilizada, confiável e autenticada, o Estado teria como proibir a inscrição de novas terras privadas fora dos perímetros fundiários consolidados. Enquanto o cadastro fundiário, criado em 2022, e o CAR (2012) sofrem de morosidade na sua finalização, a porteira ficará aberta para que a boiada passe.  Às custas da conservação do meio ambiente e da justiça social.

  • FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. (1959).
  • Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), 1999. O livro branco da grilagem de terras no Brasil. Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário.
  • Kato K., Korting M., Menezes T., 2022. A solução é a regularização fundiária? Privatização da terra, digitalização de registros e o papel do estado. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heirich Böl. Disponível em <https://br.boell.org/pt-br/2022/10/14/solucao-e-regularizacao-fundiaria>
  • Oviedo A., Augusto C., Lima W.A., 2021. Conexões entre o CAR, desmatamento e o roubo de terras em áreas protegidas e florestas públicas. Instituto Socioambiental. Disponível em <https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/prov0227_0.pdf>
  • Torres M., Doblas J., Alarcon D.F., 2017. “Dono pe quem desmata” Conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo: Urutu-branco; Altamira: Instituto Agronômico da Amazônia. Disponível em <http://pdrsxingu.org.br/site/publicacoes>
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