Não é incomum para quem estuda divulgação científica ouvir toda sorte de afirmações equivocadas sobre a área. Por exemplo: “a divulgação científica no Brasil é jovem”; “não há pesquisa no campo no país”; “para se especializar, só lá fora”. Trata-se de ‘notícias falsas’ – a não ser que comparemos a trajetória brasileira com a de países europeus com mais tradição na área, o que poderia nos levar a relativizar os pelo menos dois séculos da divulgação científica nacional. De todo modo, nenhuma dessas afirmações passaria incólume por uma checagem de fatos.
Há, no entanto, uma discussão antiga voltando à pauta para a qual a técnica de checagem de fatos não é tão útil, pois ela está longe de envolver apenas fatos: jornalismo científico é divulgação científica? Por ser um tema complexo, carregado de nuances, disputas e questões de identidade, é natural que haja uma ampla diversidade de posicionamentos e argumentos em jogo, mobilizados por diferentes atores, ocupando diferentes espaços. No entanto, preocupa na renovação desse debate a tentativa de alguns de pôr fim à discussão com afirmações contundentes e, muitas vezes, equivocadas sobre ambos os campos.
Em geral, essa discussão é iniciada por jornalistas que se dedicam à cobertura de ciência em uma tentativa de diferenciar o seu trabalho jornalístico da prática da divulgação científica, o que é legítimo. Para isso, costumam enumerar os processos e as finalidades da profissão. Por exemplo: o jornalista filtra o que é relevante, consulta diversas fontes de informação e checa a sua veracidade, interpreta e contextualiza os fatos, realiza um trabalho crítico e investigativo, atua como mediador social… Esses são, de fato, alguns dos princípios básicos do jornalismo; o quanto eles estão presentes na prática do jornalismo científico é outra história – à qual voltaremos mais adiante.
O que ocorre é que, muitas vezes, em seu ímpeto de se diferenciar do divulgador, o jornalista descreve a divulgação científica de forma simplista e enviesada. Por exemplo: “é a transmissão de conhecimento científico do cientista para o público não especializado”, “é a tradução da linguagem científica para não especialistas” ou “é a prática em que há emissão da mensagem com vetor único”. Tais afirmações, apresentadas frequentemente como fatos estabelecidos, demonstram um profundo desconhecimento do saber produzido no âmbito da divulgação científica.
A história da divulgação científica acompanha a trajetória da ciência moderna, uma vez que divulgar ciência para a sociedade sempre foi uma parte importante do fazer ciência. No Brasil, essa história começa com ações dispersas no século 18, que se tornam mais sistemáticas no século seguinte, sobretudo a partir da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808. De lá para cá, assim como em vários países, o campo tem passado por sucessivas transformações no que diz respeito aos seus objetivos, praticantes, meios, públicos e modos de abordá-los. Já como campo teórico, a divulgação científica é bem mais jovem, tendo começado a se delinear no pós-guerra e se estabelecido em diversas partes do mundo nas décadas de 1970 e 1980, inclusive no Brasil.
Tanto de uma perspectiva prática quanto teórica, há diversas formas de definir a divulgação científica. Algumas enfocam a natureza da atividade. O médico e ícone da divulgação científica no Brasil José Reis (1907-2002), por exemplo, a descrevia como “a veiculação, em termos simples, da ciência como processo, dos princípios nela estabelecidos, das metodologias que emprega”. Outras destacam o seu propósito, como a apresentada pelo físico Ennio Candotti – um dos fundadores da revista Ciência Hoje – na cerimônia em que recebeu a premiação internacional mais importante da área, o Prêmio Kalinga para a Popularização da Ciência, em 1999: “[a divulgação é] exercício de reflexão sobre os impactos sociais e culturais de nossas descobertas”.
Há ainda definições que englobam outras dimensões da divulgação científica. O físico Ildeu de Castro Moreira, vencedor do Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica em 2013, sustenta que “divulgar ciência no Brasil é prestar contas à sociedade do imposto que ela paga”. Com o intuito de abarcar diferentes concepções em uma definição unificadora de divulgação científica, pesquisadores do campo propuseram em artigo publicado em 2003 no periódico Public Understanding of Science a seguinte formulação: “A divulgação científica é definida como o uso de habilidades, mídias, atividades e diálogo adequados para produzir uma ou mais das seguintes respostas pessoais à ciência: conscientização, prazer, interesse, formação de opinião e compreensão”. Apesar de sua abrangência, essa definição está longe de ser definitiva.
Para além de definições, a literatura acadêmica da divulgação científica examina as diversas transformações ocorridas ao longo da sua história, apontando tendências e paradigmas da área, em diferentes períodos e conjunturas. Se ela registra um passado em que prevalecia uma concepção iluminista de divulgação científica, cuja missão seria transmitir conhecimentos estabelecidos da ciência, em via única, dos sábios para uma sociedade de “analfabetos científicos” – visão que ficou conhecida como “modelo de déficit” –, a literatura evidencia hoje um discurso que converge para uma divulgação científica dialógica, inclusiva e democrática. Nesse sentido, destaca ações que buscam a participação dos cidadãos nos debates e embates da ciência e na produção do conhecimento científico, a inclusão de grupos sociais que estão à margem desses processos e discussões e a redistribuição mais igualitária de capital científico e cultural.
Mas, fazendo uma incursão mais profunda na literatura da área, participando de eventos do campo ou simplesmente examinando criticamente a sua prática, é possível levantar vários questionamentos sobre essa concepção de divulgação científica dialógica, inclusiva e democrática. Até que ponto ela se reflete em iniciativas concretas? Uma observação atenta das ações de divulgação científica promovidas no contexto da pandemia de covid-19 já seria o suficiente para se colocar em xeque essa visão.
Muitas carregam um discurso autoritário, de uma ciência neutra, que tem sempre razão e por isso deve ser seguida acriticamente. Frequentemente, desrespeitam os anseios dos cidadãos e desconsideram os contextos em que vivem. Em momentos de crise como este, em que os laços entre ciência, política e sociedade são colocados à prova, torna-se nítido que essa concepção dialógica, inclusiva e democrática de divulgação científica ainda coabita com a do malfadado modelo de déficit.
Com o jornalismo científico, não acontece de forma diferente. Quem estuda, debate ou observa atentamente a sua prática no Brasil depara-se com um quadro muito diferente do pintado nos manuais de jornalismo. Impactado por sucessivas crises socioeconômicas que vêm atingindo os meios de comunicação, fazendo com que seus profissionais tenham poucas oportunidades de capacitação e trabalhem em condições longe das ideais, o jornalismo científico brasileiro é raramente crítico, investigativo e dialógico. Um conjunto de pesquisas sobre o tema revela uma prática que tende a enaltecer a ciência e suas conquistas, a apresentar questões complexas de forma polarizada, a dar voz a uma comunidade científica essencialmente masculina e branca e a escutar pouco os leitores e cidadãos.
Tanto no caso da divulgação científica quanto do jornalismo científico, existe um descompasso entre a teoria e a prática.
Mas não é só nesse descompasso que o jornalismo e a divulgação de ciência se encontram. A história, a pesquisa e a formação nos dois campos estão intimamente ligadas. Por exemplo, antes de os “jornalistas especializados em ciência” se estabelecerem no Brasil – a Associação Brasileira de Jornalismo Científico é de 1977 –, quem preencheu com mais frequência as páginas dos jornais com notícias de ciência foram pesquisadores comprometidos com a consolidação da ciência brasileira e que assumiram para si a tarefa de divulgá-la para a sociedade.
José Reis foi um deles. Ele trabalhou durante décadas na Folha de S. Paulo, chegando inclusive a dirigir o jornal, no qual lançou, em 1948, a seção ‘No mundo da ciência’. O divulgador escreveu na seção até sua morte, em 2002, quando ela passou a ser assinada pelo jornalista Marcelo Leite, uma das maiores referências do jornalismo científico do país.
Em termos de pesquisa, o jornalismo científico é uma das linhas mais relevantes no campo, respondendo por parte importante da produção acadêmica em divulgação científica no país. Para se ter uma ideia, um levantamento realizado em 2016 de artigos na área assinados por brasileiros identificou um total de 509 itens, dos quais 154 tinham o jornalismo científico como foco de pesquisa. Aqui, vale destacar a tese do jornalista Wilson da Costa Bueno, ‘Jornalismo científico no Brasil: os compromissos de uma prática dependente’, defendida em 1984 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e considerada um marco inaugural da literatura da divulgação científica no Brasil.
No que tange à formação em divulgação científica – que, embora escassa e concentrada na região Sudeste, existe e encontra-se em expansão –, é raro não haver disciplinas relacionadas ao jornalismo científico nos cursos de pós-graduação na área. O tópico está na grade curricular tanto da especialização em divulgação e popularização da ciência quanto do mestrado acadêmico em divulgação da ciência, tecnologia e saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), bem como do mestrado em divulgação científica e cultural do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas – que também oferece a especialização em jornalismo científico – e do Amerek, curso de especialização em comunicação pública da ciência da Universidade Federal de Minas Gerais.
Considerando ainda os propósitos mais amplos dos dois campos, por exemplo, a busca pela construção de uma cultura científica pungente, pela formação de cidadãos críticos e bem informados e pela manutenção e o fortalecimento da democracia, também é possível encontrar pontos de forte convergência entre eles. Mas isso não quer dizer que uma coisa seja a mesma que a outra, nem na teoria nem na prática.
O jornalismo é uma profissão consolidada, com técnicas, finalidades e éticas próprias. Existe uma formação específica na área, que, no Brasil, já foi requisito para o exercício profissional. O produto jornalístico é construído em um contexto específico, por meio de um processo também específico, que deve envolver a apuração de dados e fatos e a escuta de diversas vozes. O jornalismo é também um empreendimento comercial e, como tal, responde a interesses do mercado midiático. Sendo antes de tudo jornalismo, o jornalismo científico está inserido nessa lógica. O jornalista de ciência, por sua vez, opera dentro dela, construindo nela sua identidade profissional.
Já a divulgação científica é uma área mais ampla, multidisciplinar e polifônica, que envolve atores com formações, conhecimentos e competências diversas. Seus meios, ferramentas e intenções podem variar muito de acordo com as instituições e os atores envolvidos e com o momento histórico. O próprio nome do campo é objeto de disputa, com termos alternativos como ‘comunicação pública da ciência’ e ‘popularização da ciência’, que podem diferir ou não de significado.
Se, por um lado, isso impõe dificuldades para a sua profissionalização, por outro, abre espaço para a criatividade, estimulando o surgimento de novas formas de diálogo entre ciência e sociedade. Geralmente, quem divulga ciência já atuou ou atua em outros campos, muitas vezes de pesquisa, embora não raramente venha do jornalismo. Não há, portanto, parâmetros claros para se definir um divulgador – para além do fato de fazer divulgação –, de modo que identificar-se como tal depende mais de como o próprio profissional ou pesquisador se enxerga nesse meio.
Voltando finalmente à questão de partida – jornalismo científico é divulgação científica? –, a conclusão possível é que não existe uma resposta única, verdadeira e definitiva. O que há são diversas convergências e divergências entre os dois campos – tendo sido apontadas aqui apenas algumas delas –, de modo que a resposta dependerá de uma série de fatores por trás da forma de cada um vê-las e enfatizá-las do seu lugar de fala.
Ainda assim, é possível promover um debate qualificado sobre o tema. Mas, para isso, é importante que se recorra à produção científica existente. Num meio em que se valorizam tanto as evidências, não se deve ignorá-las. Também é importante que se exercite um olhar mais crítico sobre as práticas nos dois campos. Porém, o mais importante é que o objetivo seja de fato uma discussão frutífera, e não uma disputa de espaço e poder. O momento exige, mais que nunca, aliança.
Carla Almeida
Núcleo de Estudos da Divulgação Científica,
Museu da Vida,
Fundação Oswaldo Cruz
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