As cartas diferem tanto das autobiografias e dos textos memorialísticos – ambos, em geral, temperados pelo tempo – quanto dos artigos científicos – nos quais o cientista, em seu ofício regular, distingue-se pela linguagem objetiva, impessoal e ‘fria’, ditada pelas regras da comunicação de resultados de pesquisa e dos periódicos.
Por meio da leitura da correspondência de cientistas cassados pela ditadura, podemos observá-los em seus esforços cotidianos de registrar e compartilhar uma escrita informal e ‘quente’ sobre os sentimentos provocados pelo arbítrio que os retirou de suas instituições, seus laboratórios, seus lares e do convívio com colegas, alunos, familiares e amigos.
A escrita da carta e seu envio pelo correio, bem como o aguardo e a leitura da resposta, são uma experiência regida por outras regras, mais subjetivas, e por um tempo lento que, por vezes, poderia ser interrompido pelos órgãos policiais que as interceptavam. Por exemplo, uma das correspondentes de Moussatché escreveu para ele: “Não me façam comentários políticos em cartas enviadas pelo correio comum”.
Com medo da repressão, muitos cientistas, no Brasil e no exterior, chegavam a omitir o endereço do remetente no envelope ou a enviar a correspondência a endereços diferentes daquele em que o destinatário residia. Muitos optavam por meio considerado mais seguro: o envio por portadores.
Esse temor transparece, por exemplo, em carta de 20 de junho de 1972, da botânica Léia Scheinvar, exilada na Cidade do México, para Moussatché: “As torturas no Brasil andam de mal a pior […] Por isso, não há que pensar em regressar”.
Nesse mesmo tom, Leite Lopes, de Estrasburgo, em carta de 22 de outubro de 1972 para Moussatché, ressaltava que não iria ao Rio de Janeiro “[…] mesmo de férias, enquanto durar o regime do arbitrário, do visto de saída a ser pedido ao Ministro da Justiça, o regime no qual não se sabe o que pode acontecer a um cidadão em seus direitos fundamentais”.
O tempo das cartas era o de elaboração de ideias, de atribuição de sentido aos acontecimentos, de narrar experiências pessoais e profissionais no Brasil e no exílio. A amizade, a solidariedade e a condição de ‘estrangeiros’, dentro e fora do Brasil, reuniram aqueles que partiram e os que, igualmente atingidos pelo obscurantismo, permaneceram no país, na forma de um bate-papo em papel que pretendia, de algum modo, manter o convívio sob novas formas.
Era uma conversa coletiva: as notícias recebidas por uns eram comentadas, copiadas e partilhadas, e muitas cartas – por vezes, assinadas por casais – eram dirigidas a mais de um destinatário, ou seja, a outros casais e famílias.
A correspondência entre cientistas – em particular, nos primeiros anos após a cassação e ida ao exílio – sugere uma espécie de repertório comum: a procura de novos lugares para fazer ciência; a saída do Brasil e a chegada no exterior, bem como as primeiras impressões sobre o novo país; as notícias do Brasil e a avaliação da conjuntura brasileira e internacional; comentários sobre seus ‘carrascos’ e colegas que silenciaram diante das perseguições; as tentativas de ajudar alunos e amigos cientistas na busca de posições no Brasil e exterior.
É nessas cartas que os sentimentos de perda e solidão são mais salientes.
Claudio Oliveira Muniz
Boa reportagem .