Para este artigo, a personagem escolhida é Maria Roza da Conceição. Conseguimos identificar em seu exercício autobiográfico, construído de maneira mediada, a apresentação, seus bens e beneficiados, por meio de testamento publicado em 1858. O documento produzido por demanda dessa africana de nação Mina está sendo utilizado com referências literárias, o que possibilita desvelar as várias camadas que um texto possui. Neste texto, ficaremos restritos a sua apresentação pessoal e de sua família, por meio de seu testamento de 1858, 30 anos antes da abolição. Os textos reproduzidos são fiéis aos originais e não sofreram correção ortográfica.
Li e reli mais de uma vez todas as tramas que envolviam a história dessa mulher, descrita por seu testamenteiro, que inclui trechos como este: “Certifico que, revendo o [livro] atual do Registro de Testamentos de número duzentos e cinco, nele a folhas duzentos e cinquenta e nove se acha registrado o testamento com que faleceu Maria Roza da Conceição preta forra de Nação Mina, achando‐se doente de causa de moléstia e temendo a morte, partilha infalível da humanidade”.
A descrição padrão feita pelo escrivão que registrava os desejos pós-morte de Maria Roza, em seu testamento, dá lugar a um relato em primeira pessoa, afetivo e cheio de detalhes sobre a intimidade dessa africana:
“Determinei fazer meu testamento para que depois de minha morte se dessem as disposições de última vontade que aqui estabeleço pela maneira seguinte. Sou católica apostólica romana e na fé de Jesus Cristo tenho servido e espero morrer. Sou solteira e neste estado tenho três filhos de nome Maria Roza, casada com Domingos José Pedro, Ignez Joanna Francisca, casada com Francisco Jozé Ferreira, e Paulo Bruno os quais reconheço por meus legítimos filhos como se fossem nascidos de matrimônio, declaro mais que tendo falecido minha filha Maria Cândida da Conceição, casada com Prudêncio Manoel Gomes Ribeiro, ficaram-lhe dois filhos, aliás duas filhas de nomes Amélia e Deolinda, as quais, representando sua falecida mãe, com os outros meus três filhos são meus legítimos e universais herdeiros e como tais os reconheço e instituo.
Nomeio por meus testamenteiros em primeiro lugar a João, digo Julião Jozé Leite, em segundo lugar a Ernesto Frederico da Costa em terceiro lugar a Antônio Ramos aos quais peço e rogo queiram aceitar este encargo e serem benfeitores da minha alma independente de prestação de fiança, pois os hei por abonados em [juízo] e fará dele. Meu enterro fica à disposição de meu primeiro testamenteiro a quem rogo que faça o mais simples possível e sem nenhum aparato e mandará dizer por minha alma duzentas missas de esmola do costume.
Deixo a minha escrava Maria das Dores, Mina, a minha filha Maria Roza da Conceição. Deixo a minha escrava Joanna, Mina, a minha filha Ignez Joanna Francisca. Deixo as minhas netas Amélia, digo as minhas netas Amélia e Deolinda filhas de sua falecida filha Cândida Maria da Conceição, digo filhas de minha falecida filha Cândida Maria da Conceição a minha escrava Maria Antônia, Mina. Declaro que tenho em meu poder a quantia de duzentos e cinquenta mil reis pertencentes a minha filha Maria Roza da Conceição, a qual lhe será entregue por meu testamenteiro. Deixo a meu filho Paulo Bruno meu prédio sito no mangue da Cidade Nova, e [o que] há [neste] Lúcio crioulo filho de Maria do Bonfim, Mina (…) depois de lido este instrumento perante por mim Tabelião assinando a rogo da testadora que não sabe escrever assinei na testemunha Jozé Antonio.”