Oppenheimer, para sentir e entender

Instituto de Física
Universidade Federal Fluminense

Cinebiografia dirigida por Christopher Nolan e o livro que a inspirou são obras complementares para reflexão sobre um episódio importante da história moderna, fundamental para se compreender o passado e, também, o presente

CRÉDITO: FOTO DIVULGAÇÃO

Sem dúvida a era nuclear é um divisor de águas do século 20. Após o lançamento das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em agosto de 1945, o mundo mudou permanentemente. Os efeitos culturais foram tais que o termo “nuclear” adquiriu uma conotação tão negativa a ponto de mudarem o nome da técnica de imagem conhecida por ressonância magnética nuclear para ressonância magnética, apenas. Radiação é um tema delicado até hoje. E como começou tudo isso?

O início do século 20 foi palco de uma das maiores revoluções da história da ciência, com o nascimento em 1900 da física quântica – a física que descreve o mundo microscópico – a partir do artigo do físico alemão Max Planck (1858-1947), no qual foi proposta a ideia radical de que a energia de um sistema físico pode ser quantizada em pacotinhos de energia e não uma quantidade que varia continuamente. À medida que a física quântica evoluiu, encontrando aplicações em física atômica, matéria condensada e até mesmo na descrição da própria luz, teve início o estudo da física do núcleo do átomo, a física nuclear.

Marcha atômica

Inicialmente movida pela curiosidade dos cientistas, a física parecia se aproximar da alquimia. Em um experimento realizado pelos químicos alemães Otto Hahn (1879-1968) e Fritz Strassmann (1902-1980), o urânio bombardeado por nêutrons se quebra em átomos menores, tendo como produto de seu decaimento o átomo de bário. A partir daí, teve início uma corrida para entender a física dessas reações nucleares e suas potenciais aplicações. Um momento em que curiosidade pura e interesses comerciais e políticos se juntaram em uma mesma marcha. 

De meados dos anos 1930 à década de 1950, ocorreu uma era de ouro da física nuclear, um desses raros momentos da história de importantes descobertas em sequência, com grandes aplicações. Entender esse momento nos permite compreender nossa época. E, certamente, há uma figura fascinante que serve de fio condutor para compreender esses desenvolvimentos: o físico norte-americano Julius Robert Oppenheimer (1904-1967).

Prometeu americano

Oppenheimer – Filme de Christopher Nolan, 2023

Nesta resenha discutimos o recente filme Oppenheimer, de Christopher Nolan, e a obra que o inspirou: o livro homônimo, com a adição do subtítulo O triunfo e a tragédia do Prometeu Americano (em sua tradução para o português), escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin, num trabalho que levou mais de 25 anos. O filme de Nolan é surpreendentemente próximo ao livro mas, ainda assim, é um filme, como o próprio cineasta admitiu: ele não fez um documentário. Mesmo com algumas liberdades artísticas, o filme retrata de forma razoavelmente acurada uma parte importante da vida de Oppenheimer, sua educação, seus interesses científicos, políticos, filosóficos e culturais (sim, ele tinha uma curiosidade enorme por muitos assuntos!), o período em Los Alamos (Novo México, EUA), as relações pessoais com outros físicos, militares, os casos amorosos e o julgamento secreto de Oppenheimer, que culminou com a revogação de sua autorização de segurança, um golpe que foi sentido duramente. Como podemos entender Oppenheimer? E por que ele é uma figura tão relevante para nossa história contemporânea?

Oppenheimer

Kai Bird e Martin J. Sherwin; George Schlesinger (tradutor)
Intrínseca, 2023, 639 p.

Filho de imigrantes judeus alemães que fizeram fortuna nos Estados Unidos, Oppenheimer nasceu em berço de ouro, em um ambiente que valorizava conhecimento e cultura. Sua mãe, Ella Friedman, era pintora e seu pai, Julius Oppenheimer, um importador de tecidos, que imigrou para os Estados Unidos em sua adolescência. Além de Julius, o casal tinha outro filho, oito anos mais novo, Frank, que também se tornou físico e foi sempre muito próximo do irmão mais velho  Na casa dos Oppenheimer havia quadros de Picasso e Van Gogh, o que dá uma ideia do tipo de infância, e vida, que Oppenheimer teve. Dinheiro nunca foi um problema para ele, e isso teve um certo impacto na maneira como se relacionava com os outros.

Oppenheimer estudou em uma escola chamada Ethical Culture Society (Sociedade de Cultura Ética), que defendia a ideia de compromisso social e humanitarismo. Nessa escola os alunos eram apresentados a questões éticas profundas, como “o que você deve escolher, um emprego como professor ou um emprego que paga melhor em uma fábrica de chicletes?”. Questões sobre guerra e paz, questões raciais e até mesmo sexuais eram discutidas na escola. Para alguém com a mente de Oppenheimer foi um ambiente ideal para uma formação perfeita.

Após a escola, Oppenheimer seguiu para a Universidade Harvard, onde se formou em Química, com grande interesse em disciplinas das humanidades, especialmente literatura inglesa e francesa. Aqui vale a pena notar um aspecto a respeito de Oppenheimer que salta aos olhos quando nos debruçamos sobre sua formação: ele frequentemente se interessava pelo complexo, críptico, até mesmo místico. Em particular isso pode ajudar a entender o porquê de ele ter se interessado por física quântica durante sua formação: nenhuma teoria até o momento (e desde então) é tão surpreendente e poderosa para explicar nosso mundo quanto a física quântica.

Aqui vale a pena notar um aspecto a respeito de Oppenheimer que salta aos olhos quando nos debruçamos sobre sua formação: ele frequentemente se interessava pelo complexo, críptico, até mesmo místico

Maçã envenenada

O interesse de Oppenheimer o levou à Universidade de Cambridge, onde revelou-se um grande fiasco experimental, tendo, de fato, como mostra o filme, injetado veneno em uma maçã dada ao professor com o qual trabalhava, e futuro prêmio Nobel de Física, o britânico Patrick Blackett (1897-1974). Não é claro o que Oppenheimer colocou na maçã, se era algo que causaria algum mal estar ou levaria Blackett à morte. Mas sua família interferiu, e ele não foi expulso da universidade. Seguiu de Cambridge para a Universidade de Göttingen, na Alemanha, onde obteve seu doutorado sob a orientação do grande físico Max Born (1882-1970), em 1927. Mais do que qualquer coisa, esse episódio mostra o estado mental de Oppenheimer nesse período.

Da Alemanha voltou para os Estados Unidos onde ocupou cargos acadêmicos na Universidade de Berkeley e no Caltech. Nesse período teve uma carreira científica muito produtiva, trabalhando em diversas áreas da física, da mecânica quântica e física nuclear até a teoria da relatividade geral, a teoria que trata da gravitação de corpos muito massivos, e realizou um trabalho muito importante sobre a formação de buracos negros. Vale notar que, se hoje buracos negros são parte da realidade experimental e atividade de pesquisa mundo afora, na época isso estava longe de ser verdade e, apesar de toda beleza da teoria da relatividade geral, era difícil competir com a aplicabilidade da mecânica quântica. Era necessário alguém como Oppenheimer, que se interessava pelo complexo e pelo críptico para estudar buracos negros naquela época.

Era necessário alguém como Oppenheimer, que se interessava pelo complexo e pelo críptico para estudar buracos negros naquela época

Nesse momento de sua vida, Oppenheimer começou a se interessar pelo comunismo, participando de encontros com outros acadêmicos e estudantes. Novamente, aqui parece que seu interesse pelo complexo e pelo humanitarismo se aliam e o provocam a tomar uma nova incursão intelectual. Ele nunca se filiou ao Partido Comunista, mas contribuiu para causas como a Guerra Civil Espanhola. Esse interesse intelectual e humano teria consequências importantes em sua vida.

Com o andamento da Segunda Guerra Mundial e a ameaça de que a Alemanha poderia estar desenvolvendo armas nucleares, começou uma corrida armamentista que marcaria – e continua marcando, de certa forma – nossa história. Mas criar uma bomba nuclear não é nada fácil. Esse foi, talvez, o maior esforço científico-tecnológico da história, e era necessário um líder para o projeto. Em 1941 o presidente americano Franklin Roosevelt (1882-1945) aprovou um programa para desenvolver a bomba atômica, e Oppenheimer se envolveu inicialmente na parte teórica, tarefa que tomou seriamente e se dedicou com grande vigor. O amor que Oppenheimer tinha pelos Estados Unidos é fundamental para entender seu empenho. Apesar das origens europeias e de ser a primeira geração de sua família nos Estados Unidos, adorava o país e, em particular, a região de Los Alamos, no Novo México, para onde viajava frequentemente.

Criar uma bomba nuclear não é nada fácil. Esse foi, talvez, o maior esforço científi co-tecnológico da história e era necessário um líder para o projeto

Em 1942 o exército americano estabeleceu o Manhattan District Project, que ficou conhecido como Projeto Manhattan, para cuidar de sua parte no desenvolvimento da bomba atômica. O brigadeiro-general Leslie Groves (1896-1970) foi nomeado diretor e escolheu Oppenheimer para dirigir o projeto. Esse foi o golpe genial de Groves que tomou a decisão mesmo ciente de que Oppenheimer não apresentava grandes habilidades experimentais e teve fortes ligações com movimentos de esquerda no passado. Além disso, havia uma questão de hierarquia: Oppenheimer “daria ordens” para cientistas de altíssimo nível, muitos ganhadores do prêmio Nobel. Com perspectiva histórica, vemos que a escolha de Groves foi perfeita.

Esse “arco” da história de Oppenheimer é complexo e inclui um grande número de personagens. Surpreende como Nolan consegue contar a dinâmica desse período de forma tão clara. A escolha de um elenco estelar com rostos muito marcantes torna compreensível uma história que poderia ficar muito confusa.

Nada de gênio solitário

Um aspecto da ciência que Nolan consegue levar à tela com grande sucesso é a dinâmica do trabalho conjunto. Biografias científicas no cinema frequentemente mostram a imagem do gênio solitário, contra tudo e contra todos, que luta para ter suas ideias aceitas. Aqui vemos algo muito mais próximo do trabalho real em ciência, uma atividade coletiva, envolvendo talentos diferentes, ideias teóricas e experimentais, o desafio de tornar um projeto ambicioso em realidade. Ponto para Nolan.

Uma historinha de Oppenheimer que é contada de forma diferente, porém – e pode dar uma impressão errada sobre o cientista – é quando, no primeiro teste da bomba atômica, ele murmura a frase do texto hindu Bhagavad Gita, “Eu me tornei a morte, a destruidora de mundos”. Isso reforça o mito de Oppenheimer como “o pai da bomba atômica”, alcunha clássica que o persegue. Oppenheimer disse essa frase em uma entrevista, tempos depois, mas é importante entender seu significado, o qual ele certamente conhecia profundamente, tendo lido o original em sânscrito. O Bhagavad Gita apresenta um diálogo entre um príncipe, Arjuna, e Krishna, um avatar de Vishnu. Arjuna está atormentado por ter que entrar em uma batalha contra amigos e parentes. O que fazer? Renunciar à guerra? Krishna o aconselha a seguir seu destino de guerreiro. Entendemos, aqui, o drama de Oppenheimer: ele se viu sem alternativa em um momento histórico no qual havia uma ameaça real de os nazistas desenvolverem a bomba atômica. Além disso, a frase deve ser interpretada no contexto do hinduísmo, com a compreensão da ciclicidade do tempo. Krishna está dizendo para Arjuna “faça sua parte, deixe o tempo comigo”. Oppenheimer tomou para si essa parte dificílima de encabeçar um projeto desse porte e as consequências. Mesmo assim, Oppenheimer continua sendo conhecido como o “pai da bomba”. O filme deve deixar claro que o período é muito mais complexo. Talvez o mais correto seja dizer que ninguém é o “pai da bomba”, mas que a bomba é filha de um momento histórico.

Após a guerra, os ventos políticos começaram a mudar nos Estados Unidos, e alguém que ocupou posições importantes, como Oppenheimer, criou grandes admiradores mas, também, grandes inimigos, em particular o empresário e filantropo Lewis Strauss (1896-1974), que foi parte da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos. Contar a história dessas audiências de segurança de forma clara é mais um desafio cinematográfico. Se o livro se dá ao luxo de poder descrever esse episódio em detalhes, o filme tem um tempo limitado e uma quantidade de informação que pode, facilmente, ficar embolada. A solução de Nolan é dividir os pontos de vista, de forma visual, literalmente: a cores vemos o ponto de vista de Oppenheimer, em preto e branco o de Lewis Strauss.

Livro e filme se complementam para uma experiência intelectual valiosa. Se pelo livro entendemos os detalhes do que se passou, pelo filme podemos sentir o que se passou. As cenas dos testes atômicos são visualmente espetaculares. E mostram um episódio de grande importância da história moderna, que nos ajuda a compreender, não apenas o passado, mas o nosso presente. Se à época surgiu a ameaça de uma guerra nuclear – ainda presente, diga-se de passagem – hoje temos questões de suma importância, como a crise climática e o surgimento de novas tecnologias, como inteligência artificial, que ainda não sabemos em que direção nos levarão. O filme de Nolan deve servir não como ponto final em nossa educação sobre ciência, política, ética, mas como o início de uma investigação fundamental para cada um de nós hoje em dia.

Livro e filme se complementam para uma experiência intelectual valiosa

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