Ritmos urbanos: como tempo e espaço estruturam a vida nas cidades

Programa de Pós-graduação em Geografia
Departamento de Geografia
Instituto de Geociências
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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O ritmo urbano se constitui a partir das atividades que ocorrem nas cidades e que geram diferentes fluxos, permanências e aglomerações. São muitos os métodos para medir o ritmo urbano: desde observações de campo até abordagens a partir da geoinformação. Tudo isso é importante para compreender a organização interna das cidades e para as tomadas de decisão do planejamento urbano.

CRÉDITO: IMAGEM ABERTURA LUIZ BALTAR

Cidades são espaços extremamente complexos, porque apresentam diferentes arranjos espaciais espalhados por todo o tecido urbano. Se incluirmos o componente temporal na equação, a complexidade é ainda maior. A espacialidade e a temporalidade são dimensões essenciais na análise das cidades, embora a maioria dos estudos se preocupem mais com a espacialidade, muito por causa da complexidade de obtenção de dados temporais que envolvem mais dificuldades em sua representação. 

Mas e o tempo? Cidades têm a mesma temporalidade? Os ritmos das localidades intraurbanas são iguais? Existem espaços que não dormem? Todas as possíveis respostas a esses questionamentos necessitam da análise do que chamamos de ritmo urbano. Conceber, gerir e planejar os espaços urbanos pensando em sua diversidade temporal se torna cada dia mais necessário.

Conceber, gerir e planejar os espaços urbanos pensando em sua diversidade temporal se torna cada dia mais necessário

Dinâmicas urbanas

Analisar o tempo nas cidades ajuda a entender as dinâmicas urbanas e as diferenças espaciais internas. Hoje, muitas secretarias municipais, principalmente de municípios metropolitanos e cidades médias, buscam compreender como os usos e as atividades dos espaços urbanos se modificam ao longo do dia, da semana ou do ano, possibilitando, assim, que áreas mais ou menos ativas possam ser mais bem atendidas quanto à infraestrutura urbana. 

Desde que o geógrafo sueco Torsten Hägerstrand (1916-2004) propôs, em 1970, a ‘geografia do tempo’, os ritmos diários da cidade têm sido estudados a fim de se compreender melhor a vida urbana. Afinal, as relações de tempo e espaço oferecem um quadro de como as cidades funcionam. 

Onde quer que haja uma interação entre um lugar, um tempo e um gasto de energia, há um ritmo, como bem disse o filósofo francês Henri Lefebvre (1901-1991). Então, podemos pensar que o ritmo urbano diz respeito ao tempo que as pessoas utilizam exercendo suas atividades nos espaços. O mais interessante sobre isso é poder analisar como o tempo se materializa no espaço, ou seja, como se transforma em padrões de ritmo das cidades.

Nos estudos de ritmo urbano existem dois conceitos utilizados para entender o ritmo nas cidades: a ‘ritmanálise’, de Henri Lefebvre, e o ‘cronotopo’, do filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). Em ambos, o ritmo não é o objeto de análise, é a própria ferramenta analítica. 

Na abordagem de Lefebvre, o ritmo é como um indicador para medir a diversidade funcional de um lugar e busca entender os variados ritmos oriundos das diferentes velocidades, trajetórias e práticas humanas. 

Já a ideia de cronotopo é o quadro que reúne esses diferentes ritmos e que permite entender os polirritmos de um lugar, ou seja, busca entender a combinação única de vários ritmos. É uma unidade de temporalidade específica associada a um lugar específico. Nesse quadro, a cidade se organiza em tipos específicos de temporalidade.

Tipos de ritmos

Quanto maior a diversidade de atividades que ocorrem na cidade, maior será a variedade de tipos de ritmos. Podem ser ritmos diários – que dizem respeito aos eventos ordinários do cotidiano –, como ocorre em um local em que as pessoas saem de manhã para trabalhar e retornam à noite, o que ocasiona uma intensidade variada, desde o vazio até o adensamento, como no caso da estação de trem da Luz, em São Paulo capital (figura 1).

Quanto maior a diversidade de atividades que ocorrem na cidade, maior será a variedade de tipos de ritmos

Figura 1. Fotos da mesma estação da Luz cheia e vazia em São Paulo (SP)

CRÉDITO: GOOGLE

Existe também o tipo semanal, que ocorre toda semana e altera o ritmo do lugar. É o caso do bairro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro (RJ). Durante a semana, o ritmo é aquele que corresponde à vida cotidiana dos moradores locais, enquanto, nas sextas e nos sábados, principalmente à noite, o ritmo fica mais acelerado devido à sociabilidade. Com o funcionamento de bares, boates, casas de show, barraquinhas nas ruas, entre outros, há uma maior movimentação nas ruas nesses dias todas as semanas (figura 2).

Figura 2. Diferença do ritmo urbano no bairro da Lapa, Rio de Janeiro (RJ), durante a semana e o fim de semana

CRÉDITO: FOTO ADOBE STOCK; FOTO ARQUIVO FUNDIÇÃO PROGRESSO / DIVULGAÇÃO

Diferentemente disso são os padrões rítmicos dos eventos extraordinários – aqueles que ocorrem de forma anual ou sazonal e que alteram totalmente os tempos dos lugares. Como  exemplo temos o Carnaval, festivais e eventos que ocorrem todos os anos em diferentes cidades brasileiras e que movimentam as ruas das cidades mais do que a forma habitual (figura 3).

Figura 3. À esquerda, carnaval de Salvador (BA), em fevereiro; à direita, o Festival Folclórico de Parintins (AM), em julho – eventos que se repetem todos os anos

CRÉDITO: FOTO (ESQUERDA) DIVULGAÇÃO/PREFEITURA DE SALVADOR; FOTO (DIREITA) FOTOS CLARA ANGELEAS/MINC/ WIKIMEDIA COMMONS

Movimentos nas metrópoles

Sabe-se que o ritmo urbano de uma grande cidade é bem diferente daquele de uma pequena. Os dados mostram que, nas metrópoles, há uma complexidade maior, visto que internamente o ritmo se apresenta em graus diferentes, dependendo do lugar na cidade e das atividades que ali se desenvolvem.

Sabe-se que o ritmo urbano de uma grande cidade é bem diferente daquele de uma pequena. Os dados mostram que, nas metrópoles, há uma complexidade maior, visto que internamente o ritmo se apresenta em graus diferentes, dependendo do lugar na cidade e das atividades que ali se desenvolvem

No caso do Rio de Janeiro, uma das maiores metrópoles do Brasil, ficam evidentes essas diferenças internas. O bairro de Santa Cruz, localizado na zona oeste, começa suas atividades cedo, a partir das 4h, momento em que as pessoas saem de suas casas para se deslocar ao trabalho. As atividades no bairro terminam por volta das 19h. Santa Cruz é um dos lugares na cidade que ‘acorda’ e ‘dorme’ cedo, uma vez que, durante a semana, a maioria das pessoas não permanecem ali, funcionando como uma espécie de bairro dormitório. Nos finais de semana, a experiência urbana é outra, os moradores permanecem e exercem diferentes atividades no bairro. 

Já, em Copacabana, localizada na zona sul da cidade, o ritmo é diferente. O bairro inicia sua atividade a partir das 8h, e dura até de madrugada. Por ser um lugar turístico e ter uma variedade de usos – comércio, serviço, lazer e consumo –, o padrão de funcionamento do bairro segue uma lógica oposta daquela que ocorre em Santa Cruz. 

O ritmo urbano evidencia como a organização interna das metrópoles são complexas. Cidades como São Paulo, Nova York e Tóquio apresentam essa mesma complexidade do ritmo. Há casos, em algumas dessas cidades, em que bairros vizinhos apresentam ritmos completamente diferentes devido às atividades e aos usos que neles ocorrem. Isso mostra como a experiência urbana nas metrópoles é diferente das demais cidades.

Podemos notar que, nas metrópoles, há outra configuração das centralidades, o que foge um pouco da compreensão da geografia urbana clássica. Pode-se dizer que nas metrópoles  há diversas centralidades que se distribuem em grau e variedade expressivos. 

A medida do ritmo urbano

Nos primeiros estudos, os pesquisadores faziam observações in loco nos espaços das cidades para medir o ritmo urbano. Eles observavam a quantidade de pessoas, seus fluxos e as atividades que exerciam em diferentes horários e dias. Com o passar do tempo, alguns instrumentos, como câmeras fotográficas e câmeras de vídeo, começaram a ser inseridas nos trabalhos de campo para que outros tipos de registros fossem feitos. Esses métodos restringiam a pesquisa a um ou dois lugares, devido ao tempo que o pesquisador levava para fazer as observações. 

Com o desenvolvimento da tecnologia, outros instrumentos acabaram sendo inseridos para observar o ritmo urbano, com o objetivo de ter mais abrangência na escala de observação e na quantidade de informação a ser registrada. Atualmente, é possível usar as câmeras das cidades, o gnss dos celulares, ip dos celulares, bilhetagem, entre outros aparatos tecnológicos cada vez mais usados para melhorar o monitoramento e a eficácia na gestão. A isso damos o nome de ‘cidades inteligentes’ (smart cities). Logo, vemos como esses instrumentos que estão no dia a dia das pessoas podem ser usados para conhecer melhor a cidade. 

Um grupo de pesquisadores da Eslováquia utilizou os dados dos telefones móveis para entender os ritmos de Bratislava, a capital do país. Para medir a quantidade de pessoas e identificar os fluxos e trajetos delas, foi desenvolvido um programa que permitia quantificar, a cada hora, o número total de celulares que eram capturados por área de cobertura das antenas telefônicas distribuídas pela cidade. Assim, foi possível mapear e entender os lugares e os horários de maior e menor fluxo e definir um perfil de tempo em cada situação (figura 4).

Figura 4. Padrões rítmicos da cidade de Bratislava, Eslováquia

CRÉDITO: ŠVEDA (2020)

Outra fonte de dados bem interessante que vem sendo usada são os próprios gnss dos celulares, que fornecem a localização das pessoas. No Brasil, esse tipo de dado não pode ser usado por uma questão ética, mas uma alternativa são as áreas movimentadas do Google Maps – dados de grande movimentação de pessoas em determinadas partes da cidade obtidos através do sinal dos celulares. 

Assim, quando é identificada uma movimentação acima do padrão, um ícone aparece no mapa, e, ao se clicar nele, é possível ver o índice de movimentação naquele momento, assim como os gráficos da variação da movimentação de pessoas por dia da semana, em diferentes horários. Essa é uma fonte de dados focada em pequenas áreas de interesse representativas de espaços públicos e comerciais, que possibilita estudar o ritmo urbano nas cidades brasileiras e em qualquer parte do mundo, já que o Google Maps é uma base geoinformacional global (figura 5).

Figura 5. Áreas movimentadas obtidas pelo GoogleMaps

CRÉDITO: GOOGLE MAPS

Para além do uso da tecnologia, esses novos métodos têm em comum o uso do deslocamento de pessoas como fonte de informação. Elas são como sensores, pois estão produzindo e fornecendo informação o tempo todo. Nesses casos, a informação é geolocalizada, ou seja, tem uma posição no espaço e no tempo. A isso, a ciência chama de produção voluntária de informações geoespaciais ou VGI (Volunteered Geographic Information). Se antes só era possível medir o ritmo de um logradouro, agora, com a grande produção de geoinformação, é possível medir o ritmo de uma cidade inteira.

Para além do uso da tecnologia, esses novos métodos têm em comum o uso do deslocamento de pessoas como fonte de informação. Elas são como sensores, pois estão produzindo e fornecendo informação o tempo todo

Do passado ao futuro

Dados de aglomeração nas ruas, produzidos pelos autores e detalhados ao longo do dia e da semana, têm grande potencial para análises focadas em padrões espaço-temporais, que se transformam em informações importantes para compreender o sentido da vida urbana e da organização interna das cidades. Além disso, são informações que podem ser utilizadas pela gestão urbana e até contribuir para a formulação de políticas públicas com foco no planejamento urbano e ordenamento territorial de uma cidade.

São informações que podem ser utilizadas pela gestão urbana e até contribuir para a formulação de políticas públicas com foco no planejamento urbano e ordenamento territorial de uma cidade

Além disso, observa-se que os métodos variaram muito ao longo do tempo e, nos dias atuais, com o suporte tecnológico, há muitas maneiras de entender e medir o ritmo urbano. Há também o papel importante da cartografia para o tema, pois contribui para que a espacialização do ritmo seja registrada visualmente. 

Com as cidades inteligentes em voga, acredita-se que, em pouco tempo, vão aparecer  novos métodos com maior rapidez e maior capacidade de armazenar informação nos estudos sobre ritmo urbano. Seja qual for, a mensagem principal que deve ficar é que as cidades estão em constante movimento e que precisamos encontrar formas de mensurar e caracterizá-las em grandes escalas.

BAKHTIN, M. M. (2002): Forms of Time and of the chronotope in the novel: Notes toward a historical poetics. In: Richardson, B. [ed.]: Narrative Dynamics: Essays on Time, Plot, Closure, and Frames (pp. 15-24). Columbus, Ohio State University Press.

HÄGERSTRAND, T. (1970): What about people in regional science?. Papers of the Regional Science Association. 24 (1): 6–21.

LEFEBVRE, H. (2004): Rhythm analysis: Space, time and everyday life. London, Continuum. [Publicado originalmente como Éléments de rythmanalyse: Introduction à la connaissance des rythmes, Paris: Éditions Syllepse, 1992]

ŠVEDA, Martin et al. Mobile phone data in studying urban rhythms: Towards an analytical framework. Moravian Geographical Reports, v. 28, n. 4, p. 248-258, 2020.

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