Suspense de ficção científica

Produzido por Spike Lee, o filme A gente se vê ontem aborda o tema viagem no tempo mais atento a questões filosóficas do que à física

A sinopse não promete muito (aliás, como quase todas as sinopses): “Dois jovens-prodígios tentam dominar a arte da viagem no tempo, mas um tiroteio trágico acaba os colocando em uma série de situações perigosas no passado”, ou seja, um “suspense de ficção científica”. Na ficha técnica aparece, no entanto, o nome de Spike Lee como produtor e, assim, a expectativa aumenta. O acontecimento central é o tal tiroteio trágico, que aparece em várias versões, modificando-se com sucessivas viagens ao passado, deixando em aberto diferentes versões do presente. Com isso em mente, seguem distintas variantes de comentários sobre o filme.

A mochila do tempo

O filme começa com o registro gravado da 103ª tentativa de viajar ao dia anterior. A data é 4 de julho de 2019, e os melhores amigos Claudete J. Walker, a C.J., (interpretada por Eden Duncan-Smith) e Sebastian Thomas (DantéCrichlow) acionam suas mochilas,que entre outras coisas, teria um fluxo de prótons com velocidade próxima à da luz, que de alguma forma lhes permitiria atravessar um buraco de minhoca rumo ao passado recente. Na contagem regressiva, a garota começa a descrever o conceito de tempo, sendo interrompida por Sebastian. É a deixa no roteiro para anunciar que não importa dizer como a viagem no tempo seria possível fisicamente, pois o deslocamento temporal é para ser um portal da ficção e outras questões. A primeira viagem bem-sucedida seria a 104ª tentativa, mas, por enquanto, interessantes são as mochilas. O casal de adolescentes quer viajar no tempo para se destacar na feira de ciências e, quem sabe, assim ganhar bolsas de estudo para a faculdade.


Antes da primeira viagem, [os protagonistas] não prestaram muita atenção ao seu professor de ciências, que não se espanta com a viagem em si, mas se os jovens sonhadores estariam preparados para as questões filosóficas e éticas dos deslocamentos temporais.

A física e a ficção

Deixando de lado o mecanismo mágico das mochilas do tempo, viajamos todos no tempo, no mesmo ritmo e sempre em direção ao futuro. Isso é diferente da possibilidade de alguém ir mais rápido que os outros em direção ao porvir, coisa que a relatividade restrita prevê.O problema é voltar ao presente. E aí é um terreno de especulação, envolvendo as distorções do espaço-tempo (teoria da relatividade geral), com túneis chamados de buracos de minhoca (mencionado por C.J.), que, no entanto, não são pontos de ônibus fixos e não estariam à disposição por tempo ilimitado: a previsão é que se fecham imediatamente após abrirem.No caso de C.J e Sebastian ficariamabertos por 10 minutos.

A teoria da relatividade geral é de 1915, a restrita é de 1905, mas, voltando mais 10 anos, para 1895, temos o grande marco das viagens no tempo com o romance A máquina do tempo, de H.G. Wells. Segundo a ficção de Wells, sua máquina permite viajar numa ‘quarta dimensão’. Ainda não era o espaço-tempo relativístico, mas o conceito de quarta dimensão povoa o imaginário desde, pelo menos, 1880, com o lançamento do livro O que é a quarta dimensão?, de Charles Howard Hinton, matemático e autor de ficção científica. O protagonista do romance de Wells vai a um futuro distante, e volta ao passado, isto é, o presente de origem da viagem. No caso do filme de 2019, os adolescentes do Brooklin viajam ao passado várias vezes. Antes da primeira viagem, não prestaram muita atenção ao seu professor de ciências, que não se espanta com a viagem em si, mas se os jovens sonhadores estariam preparados para as questões filosóficas e éticas dos deslocamentos temporais. Quem faz o questionamento tem larga experiência, pois o ator que interpreta o professor Lockart é Michael J. Fox, que, na pele de outro personagem, viajou ao passado e futuro três vezes, voltando sempre ao tempo de origem das aventuras (De volta para o futuro– partes I, II e III).

O som do trovão

O casal amante de ciências no filme, talvez não tivesse interesse por literatura, pois aparentemente não leuO som do trovão, conto de Ray Bradbury, publicado em 1952. Essa história começa em 2055, quando viagens no tempo já seriam comerciais: turismo pelo tempo em vez de pelo espaço. Resumindo, um safari volta há 65 milhões de anos para abater um dinossauro, que morreria de qualquer modo alguns instantes depois da caçada. O cuidado é para que a viagem no tempo não provocasse mudanças que trouxessem inconsistências ao presente, mas um dos caçadores tem uma crise de ansiedade e mata uma borboleta sem querer e, na volta, os viajantes retornam a um presente modificado. C.J. reescreve levemente o dia 28 de julho de 2019 em um arroubo juvenil e, voltando ao dia seguinte, tudo parece normal. No entanto, a pequena treta no passado reconstruído leva o seu irmão mais velho a estar no local e hora errados no feriado de 4 de julho e acaba sendo assassinado. C.J. e Sebastian voltam ao passado mais duas vezes tentando consertar as coisas, mas a tragédia se amplia. Ray Bradbury não deixou que seu caçador voltasse para arrumar as coisas. Uma viagem ao passado ideal é aquela que só o viajante percebe: o observador não interfere no experimento. Se interferir, melhor não repetir o experimento.

Não deixa de ser curioso que no conto de Bradbury uma das consequências era de que um candidato fascista à presidência da república perdera as eleições pouco antes do safari. Na volta, por causa da borboleta morta, o fascista era o vencedor. Poderia ser uma solução Deus exmachina interessante para os dias de hoje. Será que existiriam pessoas viajando no tempo sem o devido cuidado? Brincadeira!

Contrariando o alerta de Ray Bradbury, C.J. volta ainda uma quinta vez ao passado sozinha, tentando mais uma vez consertar o passado. Fica em aberto para o espectador qual seria a nova versão do presente. Produzido por Spike Lee, o pano de fundo, anunciado e que assombra os personagens, é a tensão racial nos Estados Unidos. Ficam apenas sugeridos e em aberto seus múltiplos desdobramentos possíveis, como os das viagens no tempo.

Peter Schulz

Faculdade de Ciências Aplicadas
Universidade Estadual de Campinas

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