Dinamarquesa quase abandonou a ciência após experimentar a força do preconceito de gênero na Universidade de Cambridge, mas voltou à pesquisa e descobriu a consistência do núcleo terrestre
Dinamarquesa quase abandonou a ciência após experimentar a força do preconceito de gênero na Universidade de Cambridge, mas voltou à pesquisa e descobriu a consistência do núcleo terrestre
Em sua obra-prima de 1864, o escritor Jules Verne (1828-1905) conta a história de um trio de aventureiros que, através de uma passagem em um vulcão na Islândia, faz a “Viagem ao centro da Terra”, que denomina o livro. Lá eles encontram ricas fauna e flora pré-históricas e, até mesmo, alguns hominídeos, tipo homem das cavernas. É uma bela história de ficção científica.
Hoje em dia, sabemos que o centro da Terra é muito diferente do descrito pelo autor francês. Nosso planeta tem um raio médio de 6.371 km, quase a mesma distância de São Paulo até Miami, nos Estados Unidos. Nós habitamos a superfície sólida (a crosta terrestre), com, em média, 30 quilômetros de espessura, mas que se reduz a entre 5 e 10 quilômetros em alguns pontos. Para se ter uma ideia, isso é tão fino em relação ao raio da Terra que seria como a casca de uma maçã em relação à polpa da fruta.
Embaixo da crosta da Terra, há um manto, uma camada fluida de rochas, principalmente silicatos de ferro e magnésio, quentes e semiderretidos, que pode chegar à temperatura de mais de 2.000 graus Celsius. O manto tem em torno de 3.000 quilômetros de espessura. Abaixo do manto, está o núcleo da Terra, que pode ser dividido entre núcleo interno e externo.
Quando Verne escreveu seu romance, os geólogos ainda discutiam sobre as características das camadas que formam o interior do nosso planeta. Não havia consenso sobre a espessura do manto, tampouco sobre a presença de um núcleo sólido. Foi apenas no século 20 que o interior da Terra foi revelado. Muitos cientistas contribuíram para desvendar esse mistério, mas foi da dinamarquesa Inge Lehmann (1888-1993) a contribuição crucial: ela descobriu o núcleo interno da Terra. E isso aconteceu em uma época em que o preconceito de gênero esmagava as carreiras e os sonhos das mulheres.
Quando Verne escreveu seu romance, os geólogos ainda discutiam sobre as características das camadas que formam o interior do nosso planeta. Não havia consenso sobre a espessura do manto, tampouco sobre a presença de um núcleo sólido
Inge nasceu em uma família abastada de Copenhage. Seu pai era professor de psicologia e pesquisador. Vários de seus parentes eram personalidades da sociedade dinamarquesa. Inge estudou em uma escola progressista para época, que tratava meninos e meninas igualmente. Isso foi marcante, como revelou Inge em sua biografia: “Nenhuma diferença entre o intelecto de meninos e meninas era reconhecida, um fato que trouxe uma certa decepção mais tarde na vida quando tive que reconhecer que essa não era a atitude geral”
Em 1907, a jovem entrou na Universidade de Copenhage, onde se fascinou pela matemática, a área em que se formou. Ótima aluna, recebeu uma bolsa de estudos de um ano na prestigiosa Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Mas Cambridge era muito diferente da Universidade de Copenhage. Lá as mulheres podiam assistir às aulas, mas não eram aceitas em bibliotecas e laboratórios, e não recebiam diplomas. Tanta discriminação fez Inge desistir do curso e voltar para casa completamente desestimulada. Para se sustentar, passou anos trabalhando em uma empresa de seguros até voltar à Universidade de Copenhague para um mestrado em matemática.
Cambridge era muito diferente da Universidade de Copenhage. Lá as mulheres podiam assistir às aulas, mas não eram aceitas em bibliotecas e laboratórios, e não recebiam diplomas
Depois do mestrado, Inge seguiu na universidade como assistente de um professor de ciências atuariais, mas, em 1925, sua carreira científica começou a mudar. Foi convidada para trabalhar com o professor Niels Erik Nørlund (1885-1981), recém-nomeado chefe do serviço de geodésia do governo dinamarquês.
Geodésia é a área que estuda as formas, as dimensões e o campo gravitacional da Terra, monitora as características geográficas de um território, a cartografia e a topografia. Envolve, portanto, muitas áreas de conhecimento, incluindo matemática e física. Inge caiu nesse departamento como uma luva.
Havia uma pressão internacional para que a Dinamarca contribuísse com dados sismológicos da Groenlândia, território dinamarquês de 2 milhões de quilômetros quadrados. E Nørlund defendeu e teve aprovada a ideia de que a Dinamarca precisava reafirmar sua soberania sobre a Groenlândia para a comunidade internacional, construindo uma rede de estações sismológicas. O trabalho foi confiado a Inge.
Para entender o que Inge descobriu no futuro, é preciso falar antes de terremotos. Quando um terremoto acontece, vibrações intensas, chamadas de ondas sísmicas, se espalham a partir do ponto inicial de ruptura, o foco, como ondulações em um lago. Essas ondas são o que faz o chão tremer e podem percorrer grandes distâncias em todas as direções.
Um aparelho chamado sismógrafo é capaz de detectar e medir as ondas sísmicas. Se houver vários deles espalhados pelo mundo, conectados e gerando dados, é possível determinar a posição exata do foco do abalo sísmico, e o ponto onde ele atinge a superfície terrestre, chamado de epicentro. Quando ocorre um terremoto, dois tipos principais de ondas sísmicas são liberados: as ondas P (primárias), as primeiras detectadas e que envolvem ondas de compressão desencadeadas pelo solo; e as ondas S (secundárias), que vêm em um segundo momento, balançam o solo para frente e para trás, e são as mais violentas.
Essas ondas sísmicas podem ser usadas, pelos cientistas, para extrair informações sobre o interior da Terra. É como se elas fossem um raio X, atravessando nosso planeta. Como o interior do planeta não é uniforme, uma onda sísmica pode sofrer refração e reflexão à medida que se propaga de um tipo de meio para outro, e a velocidade de propagação das ondas sísmicas depende da composição e do estado do meio por onde se propagam. Na época, os geofísicos discutiam como era o interior da Terra. Isso era feito a partir de dados sobre os tempos de chegada das ondas sísmicas. Foi graças a essa técnica que, no início do século 20, os geofísicos postularam que o interior da Terra era preenchido por um material fluido ou semifluido. Tipo um bombom recheado.
Quando acontece um terremoto, as ondas do tipo S são detectadas até uma distância angular de 104 graus do epicentro desse terremoto – a partir daí, elas somem. Isso acontece porque as ondas S não se propagam em meio líquido (no caso, o manto terrestre). Já as ondas P sofrem refração e se concentram após 140 graus de distância angular do epicentro do terremoto. Entre 104 e 140 graus nada acontece, é uma zona fantasma. Ou pelo menos era nisso que se acreditava.
Em 1929, um grande terremoto atingiu a Nova Zelândia. As estações da Groenlândia, controladas por Inge, estavam dentro da chamada zona fantasma. Atenta aos sismógrafos, ela percebeu algo inusitado: ondas do tipo P. Só que essas ondas não deveriam ser detectadas ali. Inge se debruçou sobre o fenômeno por anos, mas na era pré-digital, sem computador para ajudar, o trabalho era muito mais intenso.
Inge registrava os dados em pedaços de papelão rasgados de caixas de farinha de aveia. Depois, ela se sentava no jardim de casa e colocava todos os pedaços ao seu redor. Movimentando esse “quebra-cabeça” improvisado, ela começou a perceber que a única coisa que poderia explicar a detecção de ondas P na zona fantasma era terem sido refletidas por algo no centro da Terra. Foi quando ela descobriu que no centro da Terra havia um núcleo interno duro, sólido. Isso foi uma mudança significativa no entendimento da estrutura interna da Terra.
Inge continuou trabalhando por anos e fez muitas descobertas importantes. Ela se aposentou do serviço de geodésica e foi trabalhar como pesquisadora nos Estados Unidos. Em 1971, recebeu a Medalha William Bowie, a maior honraria em geofísica. Aos 99 anos, escreveu seu último artigo científico, cinco anos antes de morrer, em sua cidade natal.
Em 1971, Inge recebeu a Medalha William Bowie, a maior honraria em geofísica. Aos 99 anos, escreveu seu último artigo científico, cinco anos antes de morrer, em sua cidade natal
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