Agricultura familiar: o rural vivo e dinâmico

Departamento de Sociologia
Universidade Federal Fluminense
Departamento de Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro

No Brasil, a agricultura familiar é responsável pela produção de grande parte dos alimentos que chegam à mesa da população e representa uma diversidade cultural que agrega vitalidade ao campo. Essa atividade é praticada em quase 80% dos cerca de 5 milhões de estabelecimentos agrícolas no país, empregando algo em torno de dois terços da mão de obra no campo. Apesar desses números, o governo federal, nos últimos anos, tem praticado um verdadeiro desmonte das políticas públicas para esse setor.

A agricultura familiar está na origem de importantes debates, tanto acadêmicos quanto políticos, e pode remeter a uma diversidade de sujeitos no imaginário coletivo. Quase sempre, o senso comum associa a agricultura familiar àqueles moradores do campo mais pobres, relativamente isolados, que vivem em condições precárias, com pouquíssima terra, sobre a qual praticam produção agrícola rudimentar que atende apenas a sua subsistência.

Ainda que esse perfil faça parte do que é definido como agricultura familiar, ela vai além dele. Este modelo de agricultura esteve, por exemplo, na base do modelo de desenvolvimento agrícola de países europeus e dos EUA, elevando essas nações à condição de grandes potências agrícolas mundiais.

A agricultura familiar representa um modelo de produção estruturado ao redor da família e que está integrado a diversos tipos mercados, seja adquirindo insumos e novas tecnologias, seja vendendo os alimentos e as matérias-primas que produzem. Não se trata, portanto, de um grupo social que predominava no passado e que se mantinha relativamente afastado do mercado, avesso às tecnologias e pouco integrado à sociedade.

PAISAGEM TÍPICA DA AGRICULTURA FAMILIAR, EM NOVA FRIBURGO-RJ. DESTAQUE PARA AS PEQUENAS PARCELAS DE PRODUÇÃO DIVERSIFICADA DE HORTALIÇAS E FRUTÍFERAS (CRÉDITO: EVE ANNE BÜHLER)

A agricultura familiar representa um modelo de produção estruturado ao redor da família e que está integrado a diversos tipos mercados, seja adquirindo insumos e novas tecnologias, seja vendendo os alimentos e as matériasprimas que produzem

Pesquisas em ciências sociais buscam compreender como a agricultura familiar incorpora e reage às transformações na vida rural e produção agrícola. O desenvolvimento tecnológico, a mercantilização da agricultura (e natureza), a relação campo-cidade e as mudanças culturais são dimensões determinantes nessas transformações, alimentando debates sobre o futuro da agricultura familiar e do próprio mundo rural.

Em certos contextos históricos e políticos, consolidou-se a expectativa de que a agricultura – à semelhança de outros setores da economia – se industrializaria e, com isso, predominaria, nesse setor, um modelo concentrador de terras e tecnologias baseado em uma agricultura patronal.

Ao longo do tempo, a chegada do capitalismo no campo parecia, de fato, apontar para o desaparecimento inexorável dos camponeses e das formas de produção que não se convertessem integralmente a esse sistema econômico e social.

Acreditava-se que esse processo efetivaria, no campo, aquilo que já estava consolidado nas cidades: a separação entre a classe que detinha os meios de produção e a classe que não os possuía. A esta última, não restaria outra forma de participar do processo produtivo que não fosse ofertando sua força de trabalho.

AGRICULTORES AGROECOLÓGICOS DE MORRINHOS DO SUL-RS, PREPARANDO A PRODUÇÃO PARA COMÉRCIO DIRETO NA FEIRA DOS AGRICULTORES ECOLOGISTAS DE PORTO ALEGRE (CRÉDITO: VALTER LÚCIO DE OLIVEIRA)

Acreditava-se que esse processo efetivaria, no campo, aquilo que já estava consolidado nas cidades: a separação entre a classe que detinha os meios de produção e a classe que não os possuía

Formato de gestão

Vale notar que essas previsões não se efetivaram. Ainda que tenhamos uma agricultura fortemente capitalista representada por parcela do agronegócio, outras formas de viver e produzir no campo não estão desaparecendo, mas, sim, se transformando e resistindo. Em especial, a agricultura familiar vem demonstrando grande vitalidade e relevância, tanto em sua dimensão social quanto econômica.

Em meio à grande diversidade de sujeitos do campo – com suas formas de viver, habitar e produzir –, a agricultura familiar designa um formato de gestão da propriedade, do trabalho e da exploração dos recursos naturais que tem, na família, seu elo central – ou seja, na gestão dessa atividade, não são levados em conta apenas interesses econômicos, mas também valores morais, políticos e espirituais.

Essas especificidades fizeram com que o governo federal elaborasse programas de políticas públicas voltados especificamente para esse segmento. Merece destaque o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que visa a financiar linhas de crédito para esse setor.

Para delimitar quem se enquadra nesse perfil – e, assim, possa acessar esses recursos –, a lei correspondente circunscreve a agricultura familiar às seguintes características: i) o trabalho familiar deve predominar, e a contratação de trabalhador assalariado deve ser eventual; ii) pelo menos, 50% da renda familiar devem ser provenientes de atividades desenvolvidas no estabelecimento agrícola; iii) a área da propriedade não pode ultrapassar quatro módulos fiscais – um módulo tem entre cinco hectares (ha) e 110 ha, dependendo da região em que está localizada.

Modelo de desenvolvimento

O processo histórico de ocupação do espaço rural brasileiro promoveu uma dualidade entre grandes e pequenos estabelecimentos agrícolas, fazendo com que, hoje, o país esteja entre os mais desiguais do mundo do ponto de vista fundiário. Há décadas que essa desigualdade alimenta debates acalorados sobre quais tipos de estabelecimentos seriam os mais adequados para fomentar o desenvolvimento.

A partir da década de 1950, economistas ligados à então recém-criada Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) passaram a difundir a chamada industrialização por substituição às importações (ISI), modelo de desenvolvimento econômico em que a industrialização se daria graças à demanda interna por bens industriais produzidos nacionalmente.

Nesse cenário, a modernização da agricultura de pequeno e médio porte assumiu papel importante, pois ela demandaria insumos agrícolas de origem industrial (agroquímicos, maquinário e implementos agrícolas) que incentivariam a construção de novas plantas industriais no país. Em contrapartida, essa modernização melhoraria a produtividade agrícola, fornecendo mais alimentos a preços mais baratos para os trabalhadores das cidades.

Vale destacar, ainda, que esse modelo estava, segundo alguns desses economistas, atrelado à necessidade de se realizar reforma agrária que desconcentrasse a posse da terra e eliminasse latifúndios que, além de improdutivos, representavam o poder político do atraso.

O objetivo era desenvolver o país e modernizar sua economia graças a uma população numerosa no campo, distribuída em estabelecimentos agrícolas modernos e de porte moderado.

Ainda hoje, tanto esse debate iniciado na década de 1950 quanto o papel econômico assumido pela agricultura familiar permanecem como importantes referências para se pensar o modelo de desenvolvimento que almejamos.

A agricultura familiar continua sendo vista por analistas políticos e acadêmicos como a forma mais adequada de organização social da produção para favorecer uma melhor distribuição da terra e da renda no campo – visão em que sempre se reforça o caráter autônomo da gestão do patrimônio e das atividades por parte dos agricultores familiares.

PRODUTOS DA AGRICULTURA FAMILIAR EM MERCADO MUNICIPAL DE BARREIRAS-BA (CRÉDITO: VALTER LÚCIO DE OLIVEIRA)

A agricultura familiar continua sendo vista por analistas políticos e acadêmicos como a forma mais adequada de organização social da produção para favorecer uma melhor distribuição da terra e da renda no campo Atividade

Atividade majoritária

Os dados do Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola 2017, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), reafirmam fatos que precisam ser conhecidos para que se entenda melhor o papel da agricultura familiar no país. O primeiro é a constatação de que essa atividade é majoritária, pois representa 77% do total de mais de 5 milhões de estabelecimentos agrícolas no Brasil.

Figura 1. Número de estabelecimentos agrícolas familiares e não familiares, por estado (2017) Crédito: Censo agropecuário 2017 (IBGE)/Elaboração: Bühler, E. A.; Oliveira, V. L. de; Aguiar.

CRÉDITO: CENSO AGROPECUÁRIO 2017 (IBGE)/ELABORAÇÃO: BÜHLER, E. A.; OLIVEIRA, V. L. DE; AGUIAR,

A figura 1 mostra que a agricultura familiar predomina em todos os estados brasileiros – inclusive, naqueles em que o agronegócio é forte –, sendo mais numerosa no Nordeste, seguido pelo Sudeste e Sul.

A grande diversidade dessa atividade, bem como seu peso social e econômico diferenciado entre os estados, lança desafios específicos a serem pautados pelas políticas públicas. Por exemplo, na região Nordeste – onde está o maior número de agricultores do país –, oito de cada 10 estabelecimentos são de agricultura familiar.

Figura 2. Superfície ocupada pela agricultura familiar e não familiar, por estado (2017)

CRÉDITO: CENSO AGROPECUÁRIO 2017 (IBGE)/ELABORAÇÃO: BÜHLER, E. A.; OLIVEIRA, V. L. DE; AGUIAR, P.

Apesar de mais numerosa em termos de estabelecimentos, a agricultura familiar ocupa só 23% da área total das terras agrícolas no país. A figura 2 mostra que, exceto em Pernambuco, ela ocupa sempre área menor que a da agricultura não familiar.

Apesar de mais numerosa em termos de estabelecimentos, a agricultura familiar ocupa só 23% da área total das terras agrícolas no país

Essa discrepância entre o número de estabelecimentos e a área ocupada pela agricultura familiar pode ser reforçada quando se comparam as figuras 1 e 2. No Nordeste – que concentra metade da agricultura familiar do país –, ela ocupa apenas 36% da área agrícola regional.

Mesmo com tão pouca área – qualquer que seja a escala em que analisemos sua presença –, a agricultura familiar é fundamental para a manutenção e criação de emprego, sendo responsável por 67% do pessoal ocupado na agricultura no país.

Em suma, quando se fala de agricultura e do agro, devemos ter em mente que a agricultura familiar é a principal fonte de renda para muitas famílias no Brasil e que, apesar da pouca área que ocupa, consegue fornecer alimentos para uma população fortemente concentrada nos centros urbanos.

Nesse sentido, a agricultura familiar fomenta renda e qualidade de vida no campo, sustentando o desenvolvimento econômico local, ao mesmo tempo que é fundamental para as cidades, pois provê quantidade e variedade de alimentos indispensáveis à segurança alimentar e nutricional da população.

Políticas públicas

Apesar de sua enorme importância, a parcela de recursos destinada a esse setor está muito aquém de suas necessidades e é acentuadamente menor do que aquela destinada à agricultura empresarial. O Plano Safra 2022/2023 – programa do governo federal que, a cada ano, aloca recursos para apoiar a produção agropecuária do país – recebeu cerca de R$ 341 bilhões, mas apenas 6% desse total foram alocados para a agricultura familiar.

Mesmo contanto com pouco apoio, a agricultura familiar é responsável pela produção de grande parte dos alimentos que chegam à mesa do consumidor. Segundo o IBGE, no Brasil, a agricultura familiar responde por 48% do valor da produção de café e banana; nas culturas temporárias, é responsável por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% do feijão.

Mas, além dessa dimensão mais evidente relacionada à produção, a agricultura familiar desempenha outras funções importantes. Governos de outros países (sobretudo, os dos mais desenvolvidos) criaram políticas públicas que visam a manter famílias agricultoras vivendo no meio rural e em pequenos municípios.

Dessa forma, essas nações reconhecem não só a importância econômica das famílias agricultoras, mas também o fato de elas serem repositórios de práticas e estilos de vida ancestrais, promovendo relações sociais apoiadas em valores e conhecimentos transmitidos de geração em geração.

O cuidado com a natureza, a gestão da paisagem rural, a preservação de práticas alimentares, a manutenção do saber-fazer e de conhecimentos locais potencializam e dinamizam a vida e a economia das regiões. Todos esses ‘serviços’ nem sempre são considerados pelo poder público e pela sociedade em geral.

Deve-se ressaltar que iniciativas que dão melhores condições de vida às famílias rurais também minimizam a migração destas para as cidades – comumente, para suas periferias, já ‘inchadas’ e repletas de problemas sociais. Portanto, estimular e fortalecer a agricultura familiar, com base em políticas públicas dedicadas a esses agentes, significa também beneficiar a população urbana.

RESIDÊNCIA DE FAMÍLIA AGRICULTORA EM MEIO A CAMPOS CULTIVADOS E ÁREAS DE NATUREZA PRESERVADA – NOVA FRIBURBO-RJ (CRÉDITO: EVE ANNE BÜHLER)

Deve-se ressaltar que iniciativas que dão melhores condições de vida às famílias rurais também minimizam a migração destas para as cidades – comumente, para suas periferias, já ‘inchadas’ e repletas de problemas sociais

Mas, nos últimos anos, o poder executivo federal não só deixou de desenvolver novas ações e políticas públicas para esse setor, mas também extinguiu ou enfraqueceu as que já existiam.

Além dos poucos recursos destinados ao apoio à produção familiar no Plano Safra, o governo federal, entre outras ações, provocou: i) a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, órgão criado para atender à agricultura familiar e fomentar a política de reforma agrária; ii) o enfraquecimento do Programa Aquisição de Alimentos (PAA), que tem papel fundamental na garantia de mercado e preços justos e estáveis aos agricultores familiares; iii) a paralisação da política de reforma agrária; iv) o fechamento de unidades armazenadoras da produção agrícola, responsáveis por formar estoques reguladores dos preços e vinculadas à Política de Garantia de Preços Mínimos; v) a diminuição drástica de recursos para as políticas de construção de cisternas no meio rural.

Ofício milenar

O recente desmantelamento das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar pode afetar duramente os agricultores e resultar não só em dificuldades financeiras, mas também no abandono da própria atividade.

Esse desmonte pode ter outras consequências para a agricultura familiar, como a falta de atratividade dessa atividade econômica para as novas gerações, inviabilizando o processo da sucessão hereditária, por meio do qual a agricultura familiar tem se reproduzido ao longo das gerações.

Atualmente, o processo de definição do herdeiro do património familiar é mais incerto e depende de certas negociações internas à família; expectativas sobre o futuro da atividade; a valorização não só da profissão de agricultor, mas também das mulheres rurais – o que contribuiria para reverter processos de masculinização do campo.

Portanto, mais do que nunca, é necessário que as políticas públicas sejam pensadas para que filhos e filhas tenham interesse em se manter no campo como herdeiros e herdeiras de seus pais. Essas políticas deveriam promover o acesso à terra e às tecnologias, gerar oportunidades produtivas e comerciais, garantir segurança econômica, bem como boas condições de vida (saúde, educação, lazer etc.) para as famílias.

A família é a estrutura social que, ao longo dos séculos, tem sido a principal geradora de um ofício milenar (o de agricultor), transmitido, geralmente, de geração em geração. A vitalidade da agricultura familiar também está relacionada às diferentes conformações comunitárias que se estruturaram em distintas regiões do país e ao respeito e à valorização de suas particularidades, costumes e hábitos.

Apostar na agricultura familiar é reforçar um mundo rural vivo e dinâmico, em contraponto ao vazio social que predomina em áreas de grandes culturas agrícolas ou de pecuária extensiva. É também uma forma de promover um modelo de desenvolvimento mais integrador e consequente do ponto de vista social, econômico e ambiental.

ABRAMOVAY, R. Os paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Edusp, 2012.

BUHLER, E. A.; OLIVEIRA, V. L. Ruralidades metropolitanas I. O rural como opção. 2020. Filme. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=ex6gxjQG7Bs>

Mello, M. A. et al Sucessão hereditária e reprodução social da agricultura familiar. Agricultura São Paulo, São Paulo, v. 50, n. 1, pp. 11-24, 2003.

SCHNEIDER, Sergio. A diversidade da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

SABOURIN, E. et al. Le démantèlement des politiques publiques rurales et environnementales au Brésil. Cahiers Agricultures, v. 29, n. 31, 2022.

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