Astroturismo, uma viagem pela noite estrelada

Observatório do Valongo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Agência Astrotrilhas
Observatório do Valongo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Geociências
Universidade Federal do Rio de Janeiro

O fascínio pelas estrelas encanta a humanidade há milênios. Ao entender o caminho dos astros no céu, começamos a sondar os mistérios da natureza, a nos questionar sobre a imensidão do universo e sobre nós mesmos. A vida moderna tem nos privado da visão monumental das estrelas, mas o astroturismo tem buscado resgatar essa conexão, associando ecoturismo, preservação ambiental, astronomia e outras ciências correlatas.

CRÉDITO ABERTURA: FOTO IGOR BORGO

Mas, afinal, o que é o astroturismo? É uma modalidade relativamente recente que tem como motivação a visitação de destinos adequados à observação e à contemplação dos astros, integrando práticas de ecoturismo, geoturismo, turismo de experiência e turismo científico. As atividades de observação podem ocorrer em locais escuros, longe das luzes das cidades, ou a partir de observatórios astronômicos, planetários, casas e museus de ciência com foco em astronomia, mesmo em centros urbanos.

Esse segmento do turismo envolve práticas sustentáveis e valorização dos aspectos culturais, o que contribui para a difusão do conhecimento, ações de cunho educacional por meio do ensino de ciências e promoção de atividades inovadoras de divulgação científica. O turismo astronômico também busca estimular vínculos mais profundos da interdisciplinaridade entre as ciências.

O astroturismo tem se destacado como um tipo de turismo científico integrado, resgatando o contato ancestral da humanidade com o céu estrelado

FOTO: DANIEL MELLO, ASTROTRILHAS E ARRAIAL DO CÉU

Pesquisas recentes apontam que o astroturismo proporciona a seus adeptos o hábito de buscar conhecimento, relaxamento e impressões sensoriais significativas, provocadas pelo contato com o ambiente noturno e a noite estrelada. A associação entre o espaço geográfico e o espaço sideral na experiência turística é profundamente impactante e só experienciada no astroturismo.

Projeto promove astroturismo nos parques brasileiros

Com esforços importantes nos anos recentes, o Rio de Janeiro tem despontado como estado pioneiro no desenvolvimento do astroturismo em território nacional. Algumas ações nessa direção são: campanhas conjuntas de conscientização sobre os riscos da poluição luminosa realizadas por entidades independentes, criação da Semana Comemorativa do Céu Escuro, promoção e reconhecimento de locais com potencial para o astroturismo, apelo por legislação nas esferas estaduais e federais para mitigação da poluição luminosa, atividades de ensino, divulgação e popularização da astronomia por clubes e instituições públicas e a certificação internacional do primeiro Dark Sky Park do país, entre outras.

No começo de 2021, um grupo de pesquisadores da UFRJ em colaboração com profissionais do setor de turismo criaram o projeto Astroturismo nos Parques Brasileiros (AstroParquesBR), com apoio do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que tem como objetivo estudar os parques e reservas em potencial. Os parques e reservas fluminenses serviram como “laboratórios”.  Foram realizados trabalhos de campo a fim de caracterizar a qualidade do céu noturno a partir da medição quantitativa da poluição luminosa, analisar as condições ambientais, estruturais, os equipamentos turísticos disponíveis e obter registros astrofotográficos que mostrem a beleza do céu estrelado.

Ao longo das atividades, o projeto teve repercussão nas mídias e nos círculos acadêmicos, expandindo suas atividades para além dos objetivos meramente de pesquisa. Em 2022, o AstroParquesBR passou a oferecer, com enorme sucesso, atividades públicas de observação dos astros nos parques, organizadas e executadas diretamente pela equipe e assessoradas pela gestão dos parques. Para maiores informações sobre o projeto, acesse no Instagram @astroturismoparquesbr  ou escreva para astronomiaparquesbr@gmail.com.

Poluição luminosa

O fascínio pela noite estrelada tem, no entanto, esbarrado em um problema delicado: a poluição luminosa, que pode ser definida como o excesso de luz artificial. Voltada a atividades humanas, essa iluminação é, muitas vezes, mal direcionada ou aproveitada e se expande para além dos locais onde é utilizada. Seu efeito mais notável é fazer com que o céu adquira tonalidade clara e acinzentada, o que dificulta a observação das estrelas nas grandes cidades. Devido a esse fenômeno, estima-se que 80% da população mundial não consiga mais ver a Via Láctea. A poluição luminosa atua também como relevante fonte de agressão aos ecossistemas, causando alterações nos ciclos biológicos, no equilíbrio ambiental e na saúde humana. Nunca iluminamos tanto o nosso planeta como neste começo de século 21.

Nunca iluminamos tanto o nosso planeta como neste
começo de século 21

O Atlas Mundial do Brilho de Céu Noturno mostra as regiões mais afetadas pela poluição luminosa em nosso planeta. Regiões brancas, vermelhas e amarelas possuem céus completamente degradados; regiões verdes, azuis e escuras ainda possuem céus pouco ou não alterados pelo excesso de iluminação artificial. Fonte: Falchi et. al. (2016), The new world atlas of artificial night sky brightness, Creative Commons Attribution-Non Commercial License. Disponível em https://www.lightpollutionmap.info/

O astroturismo é um dos mais importantes aliados na luta contra a poluição luminosa, pois é parte da atividade mapear e preservar locais com condições ideais de observação dos astros para a exploração do turismo astronômico.

O astroturismo pelo mundo

Apesar de a poluição luminosa ser cada vez mais intensa, ainda há diversos locais no mundo com condições ideais para a observação astronômica, seja com finalidade científica, recreativa ou para pura contemplação. Segundo o Atlas Mundial do Brilho do Céu Noturno, regiões remotas e, obviamente, mais distantes dos centros urbanos, ainda preservam características de um céu escuro.  Entre os países que exploram as atividades, os Estados Unidos têm papel de destaque. Lá, o astroturismo está consolidado desde o começo do século 21, com participação importante na economia do setor turístico, principalmente nos estados do meio-oeste.

Na América Latina, o Chile tem posição de protagonismo,  um dos casos de maior sucesso no mundo. Alavancado primeiramente pela instalação de observatórios profissionais a partir da década de 1960, o país passou a investir em turismo astronômico no final dos anos 1990. As regiões de Atacama, Antofagasta e Coquimbo, que ocupam extensas áreas ao norte do país, estão entre as melhores do mundo para a observação astronômica, como atesta a presença de diversos observatórios profissionais de ponta. Há no Chile mais de uma dezena de observatórios didáticos, além de centros astronômicos e empresas que atuam na rota do astroturismo. Outros países que investem em boa estrutura para a atividade são Portugal, Espanha, Austrália, Canadá e Namíbia.

Os portugueses têm a região de Alqueva como o primeiro destino astroturístico reconhecido na Europa. A Espanha, a partir de ações e programas pioneiros do Instituto Astrofísico das Canárias, teve suas atividades em turismo astronômico estabelecidas a partir do começo deste século. Países do sudeste asiático, como Indonésia e Coreia do Sul, também têm voltado suas atenções para os céus noturnos, adotando políticas para atrair turistas. Na África, destaca-se a Namíbia com um dos céus mais escuros do planeta. Apesar de possuírem climas desfavoráveis, Reino Unido e  Canadá também atraem astroturistas.

Na África, destaca-se a Namíbia com um dos céus mais escuros do planeta

Parques e reservas de céu escuro

Algumas das regiões mais indicadas para a prática do astroturismo são parques, reservas e locais de conservação da natureza por já serem atrativos para o turismo, terem infraestrutura mínima para recepção dos visitantes e pela preservação ambiental estabelecida por lei. Não por acaso a maioria das atividades de turismo astronômico é praticada nesses locais, conhecidos genericamente como Parques de Céu Escuro (Dark Sky Parks). As melhores áreas para observação são certificadas pela International Dark Sky Association (IDA) e pela Fundación Starlight (FS), o que proporciona um fluxo de turistas durante todo o ano. Exemplos de conhecidos Dark Sky Parks incluem o Mont-Mégantic (Canadá), o Santuário Gabriela Mistral (Chile) e o famoso Parque Nacional do Grand Canyon (EUA).

Os Parques de Céu Escuro internacionalmente certificados possuem excelentes condições de céu noturno, prezam pela preservação e educação ambiental, executam programas de conscientização e redução da poluição luminosa nas cidades em seus entornos e estimulam o astroturismo como forma de turismo sustentável. Segundo dados mais recentes da IDA, FS e da International Union for Conservation of Nature (IUCN), há quase três centenas de Dark Sky Parks no mundo, e este número vem crescendo nos últimos cinco anos.

Os Parques de Céu Escuro internacionalmente certificados possuem excelentes condições de céu noturno, prezam pela preservação e educação ambiental

Mapa mundial das Reservas e Parques de Céu escuro, construído a partir de dados da International Union for Conservation of Nature (IUCN), disponível em http://darkskyparks.org/dsag/map/.

Astroturismo no Brasil

O Brasil possui muitas regiões aptas ao astroturismo. Por sua extensão continental e latitudinal e a distribuição desigual importante de densidade demográfica, o país tem potencial inequívoco para a atividade. Embora ainda incipiente, o setor começa a ganhar projeção no país, principalmente nos últimos dois anos e já há agências e profissionais atuando com foco específico no turismo das estrelas. Alguns dos roteiros oferecem atividades de turismo astronômico atreladas a outras formas de ecoturismo, astrofotografia, montanhismo ou mesmo na interface de atividades acadêmicas, astronomia amadora e de divulgação da ciência.

Alguns municípios têm projetado o investimento em astroturismo e deverão colher bons frutos no cenário futuro. Dessa forma, o “astroturismo dark sky” começa a florescer em nosso país. Os observatórios profissionais, por sua vez, já recebem grupos turísticos em sessões de observação noturna, embora a maioria opere em regiões com alta poluição luminosa e tenha foco principal na educação e divulgação da ciência. Alguns exemplos são o Observatório do Valongo/UFRJ, na cidade do Rio de Janeiro; o Observatório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre; o Observatório Municipal Jean Nicolini (Campinas – São Paulo), e o Observatório Pico dos Dias (OPD), localizado na Serra da Mantiqueira, em Brasópolis  (MG), referência na astronomia profissional brasileira. Há também planetários espalhados pelas capitais brasileiras que, tradicionalmente, já recebem bom contingente de turistas.

Céu estrelado no Parque Estadual dos Três Picos, região serrana do estado do Rio de Janeiro. A Via Láctea, em todo o seu esplendor, cruza o céu e pode ser vista a olho nu nas noites de inverno (Crédito: Igor Borgo)

O Brasil possui inúmeras regiões indicadas para o astroturismo, com muitos locais com céu escuro, como informa o Atlas Mundial do Brilho do Céu Noturno. Áreas de clima mais seco e com maiores altitudes se destacam por oferecerem uma melhor transparência do céu e menores volumes anuais de chuva e nebulosidade. Nesse quesito, destacam-se as áreas de chapadas, serras, o semiárido e planalto central que, além disso, inclui os biomas do Cerrado e da Caatinga e, eventualmente, Mata Atlântica. Isoladas das grandes cidades e de beleza ímpar, todas essas regiões necessitam de proteção ambiental irrestrita (especialmente os biomas do Cerrado e Mata Atlântica, que são hotspots de biodiversidade), incluindo a do céu noturno.

O Brasil possui inúmeras regiões indicadas para o astroturismo, com muitos locais com céu escuro, como informa o ‘Atlas Mundial do Brilho do Céu Noturno’

Em dezembro de 2021, o Brasil entrou para a lista dos 30 países que possuem um Dark Sky Park: o Parque Estadual do Desengano, no estado do Rio de Janeiro, tornou-se o primeiro parque da América Latina a receber a certificação pela IDA, devido ao céu noturno de excelente qualidade. Esse feito certamente abre um caminho promissor para o astroturismo em escala nacional e coloca os parques e reservas do país como locais de destaque desse tipo de turismo.

O Parque Estadual do Desengano está localizado em uma das regiões mais escuras do estado do Rio de Janeiro, tendo obtido a certificação internacional como o primeiro Dark Sky Park do país. Na imagem acima, a Via Láctea e suas inúmeras nebulosas coloridas comprovam a qualidade do céu noturno do parque para o astroturismo (Crédito: Igor Borgo)

Mas apesar de o potencial brasileiro ser inegável, há desafios importantes para que o setor tenha sucesso no país. Entre eles, podemos apontar a necessidade de estudos de viabilidade e incentivo para as atividades de astroturismo nos parques e reservas, legislação e normas técnicas para uso correto da iluminação artificial em escala nacional, estruturação dos equipamentos e serviços turísticos e capacitação de profissionais de turismo, educação e ciência para atender a um público exigente.

Astroturismo para o futuro

Quais serão as apostas para o mercado do turismo no futuro? Uma amostra mais concreta da ascensão de um perfil de turista mais exigente e em busca de novas experiências é verificada entre as grandes empresas que operam no setor.  Companhias ou plataformas já estão registrando aumentos expressivos do número de turistas que contratam pacotes com foco em astroturismo ou que exigem, no mínimo, alguma atividade relacionada dentro do roteiro. No cenário pós-pandemia da covid-19, há a tendência de que atividades de turismo ao ar livre, de contato com a natureza e longe das grandes aglomerações sejam cada vez mais requisitadas. O resgate do contato da humanidade com a natureza parece ser também uma tendência, assim como o ato de novamente observar as estrelas, a Lua, os planetas e outros tantos fenômenos que motivaram o começo da nossa aventura de compreensão do universo.

O resgate do contato da humanidade com a natureza parece ser também uma tendência, assim como o ato de novamente observar as estrelas, a Lua, os planetas e outros tantos fenômenos que motivaram o começo da nossa aventura de compreensão do universo

Alcázar, E. J. (2017). Astroturismo: una nueva manera de mirar al cielo. Forum Calidad, año 28, 282, 42.

IAU (2020). A design Manual for Astro-Tourism Experiences. International Astronomic Union’s European Regional Office of Astronomy for Development, Santiago, Chile.

Stimac, V. (2019). Dark Skies – A Pratical Guide to Astroturism. Singapore: Lonely Planet Global Limited.

Marlin, M. (2021). Astrotourism: star gazers, eclipse chasers and the dark sky movement. New York: Business Expert Press.

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