Há muito se discute no Brasil o quanto a educação é, de fato, um direito. O educador e jurista brasileiro Anísio Teixeira (1900-1971) trouxe tal questionamento já no final dos anos 1950: “educação não é privilégio”, afirmara o autor ao defender a educação como um direito, lutando pela universalização da escola pública gratuita e de qualidade no país.
Nas duas últimas décadas do século 20, com a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, a educação no país passou a ser formalmente garantida como “direito de todos e dever do Estado e da família”. No entanto, inúmeras pesquisas, ano a ano, constatam as enormes desigualdades educacionais que assolam o país, tanto no ensino básico quanto no ensino superior. Apesar de alguns avanços recentes na democratização das instituições educacionais, ainda temos um sistema de ensino desigualmente marcado por critérios de raça, classe e gênero entre estudantes, assim como por diferenças regionais.
Se tais desafios não são novos, com a eclosão da pandemia de coronavírus em 2020 e o consequente fechamento do espaço físico das escolas, tais mecanismos de criação e reprodução de desigualdades se mostraram ainda mais atuantes. Diversos operadores de diferenciação social se acentuaram, aumentando as distâncias educacionais entre escolas públicas e privadas, ricos e pobres, “herdeiros” e “não herdeiros”, como diria o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). Para além do quadro já existente, somaram-se às desigualdades educacionais e sociais as chamadas desigualdades digitais.
Vale ressaltar que as desigualdades digitais, no geral, refletem, reproduzem ou espelham desigualdades sociais mais amplas, já se constituindo desde o final do século 20 como mais um lócus de estratificação social no Brasil. Há algum tempo, são corriqueiros debates sobre inclusão e exclusão digital ou sobre divisões digitais, ressaltando o caráter altamente desigual do acesso, do uso e do aproveitamento das possibilidades oferecidas pelas tecnologias de informação e comunicação.
Conforme diferentes estudos indicam, as desigualdades digitais apresentam forte correlação com critérios de renda e classe social, além da articulação com outros marcadores sociais da diferença, como cor/raça, gênero, idade e território. Embora a internet tenha se disseminado no Brasil no final dos anos 1990 entre as classes média e alta, foi apenas nos anos 2010 que se popularizou, especialmente por meio dos celulares, de custo bem mais baixo que o de computadores, do aumento do uso de redes de conexão 3G/4G e de maiores investimentos governamentais em infraestrutura e iniciativas como o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL), iniciado em 2010. Ainda assim, o Brasil segue marcado por intensas desigualdades digitais.
Dados da pesquisa TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) Domicílios de 2019 apontaram que 20 milhões de domicílios brasileiros não possuíam internet (28% da quantidade total). Ao fazermos a intersecção com classe, apareciam desigualdades muito expressivas: enquanto nas classes econômicas A e B a presença da internet beirava os 100% em 2019, nas classes D e E, o acesso caía para 50%. Em relação à posse de equipamentos, as desigualdades também eram grandes: nas classes A e B, a posse de computador era um item frequente (95% e 85%, respectivamente); já nas classes D e E, a presença do computador caía para 14%.
O TIC Domicílios 2020, realizado já durante a pandemia e com uma metodologia de pesquisa adaptada às condições impostas pela mesma, aponta um aumento de domicílios e usuários conectados, mas mostra também a persistência de desigualdades de acesso, especialmente nas classes D e E. O celular continua sendo o dispositivo de conexão mais utilizado, sendo que nas classes D e E ele representa o único meio de acesso disponível para 90% dos usuários. Comparativamente, esse número cai para 11% na classe A e para 25% na classe B. Ainda assim, os dados mostram um crescimento expressivo do acesso à internet nos domicílios das classes C e D/E (figura 1).
No Brasil, embora diferentes políticas educacionais, como o Plano Nacional de Educação 2014-2024, prevejam a ampliação da conectividade e do uso de tecnologias digitais no processo educacional, pesquisas indicam grandes desigualdades. Dados da pesquisa TIC Educação, cujo objetivo é compreender o acesso, o uso e a apropriação das TICs em escolas privadas e públicas brasileiras, são reveladores desse cenário.
Nesse levantamento, em 2019, apenas 14% das escolas públicas declararam utilizar alguma plataforma ou ambiente virtual de aprendizagem, número que chegava a 64% nas escolas particulares, apontando então para diferença muito expressiva entre a rede pública e a rede privada. Outro dado relevante destacado em 2019 era a baixa formação de professores para tecnologias digitais, revelando que apenas 33% tiveram algum tipo de formação para uso do computador e da internet para atividades escolares.
Já o TIC Educação 2020, realizado também durante a pandemia, apresenta dados mais detalhados. Aponta, por exemplo, que apenas 21% das escolas (públicas e privadas) ofereciam atividades remotas antes da pandemia. Além disso, dentre os maiores desafios encontrados para a realização de atividades pedagógicas durante a pandemia aparecem como os mais apontados: dificuldades de pais/responsáveis para apoiar os/as alunos/as (93%) e a falta de dispositivos tecnológicos para acesso (86%).
Além do acesso à internet e da posse de equipamentos digitais adequados, o chamado ‘letramento digital’ também é um fator de desigualdade, uma vez que nem todos os usuários têm intimidade com as tecnologias – dispositivos, redes de conexão, aplicativos, plataformas – para saber manejá-las corretamente. Os usos das tecnologias são muito diversos e se relacionam com diferenças ligadas a escolaridade, capital cultural, idade, tipo de inserção profissional, entre outras variáveis.
Saber fazer um currículo em um editor de texto on-line, organizar e catalogar correios eletrônicos ou mesmo realizar pesquisas na internet em fontes confiáveis (desviando-se das chamadas fake news) ainda são habilidades desigualmente aprendidas na sociedade brasileira, tornando-se um ‘privilégio’ de alguns grupos sociais.
Tendo a educação como foco, cabe questionar, cada vez mais, a conectividade como um ‘privilégio social’, quando já poderia e deveria ser compreendida como um direito. Este, aliás, é o entendimento da Organização das Nações Unidas (ONU), que já reconheceu o acesso à internet como um direito humano universal desde 2011.
Se tais desigualdades digitais já eram conhecidas no Brasil, durante a pandemia, com a transferência do ensino presencial para o chamado ensino remoto emergencial – que dependia de acesso aos conteúdos educacionais por meio de equipamentos eletrônicos –, tais diferenças se exacerbaram. À educação básica brasileira, já tão profundamente marcada por diversas formas de desigualdade, somou-se mais um fator de iniquidade social.
Dados da Rede de Pesquisa Solidária publicados em boletim de agosto de 2020 mostram que, entre março e julho de 2020, mais de 8 milhões de crianças de 6 a 14 anos não fizeram quaisquer atividades escolares em casa. Durante o mês de julho, enquanto apenas 4% das crianças mais ricas ficaram sem qualquer atividade escolar, tal número foi de 30% entre as crianças mais pobres. O relatório conclui: “Com a omissão do Estado no acompanhamento das famílias mais pobres, a diferença de atividades realizadas em casa, entre pobres e ricos, pode chegar a 224 horas, o equivalente a 50 dias letivos”.
Na rede estadual de educação de São Paulo, segundo dados do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), mesmo com a criação de um aplicativo para transmissão de aulas on-line que não consumia o pacote de internet do usuário, apenas 27,3% dos estudantes acompanhavam as atividades, quando mensurada a presença em alguns dias de maio e junho de 2020. No estado de São Paulo, perto do fechamento do ano, cerca de 500 mil estudantes não entregaram qualquer atividade, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo. Mais uma vez, a falta de conectividade foi uma das principais causas dessa perda de conexão com a escola, penalizando ainda mais os estudantes de menor renda.
Se no estado de São Paulo foram formuladas algumas iniciativas no setor educacional, ainda que insuficientes, no âmbito federal o completo descaso e omissão foi o que prevaleceu, mais uma vez. Enquanto os números de mortos pela covid-19 não paravam de subir, o governo federal liderado pelo presidente Jair Bolsonaro minimizou a crise, atacando o povo brasileiro por diferentes frentes.
Na educação, não foi diferente. O Ministério da Educação, em gestão atribulada, que resultou na demissão de um ministro em plena pandemia, recusava-se a adiar a maior prova brasileira de ingresso nas universidades, o ENEM, afirmando, no início de maio, que o sistema educacional “não foi feito para corrigir injustiças”. Ao contrário, o então ministro criou uma campanha nas mídias que afirmava que, mesmo diante de pandemia, “a vida não pode parar”, orientando todos os alunos a estudarem pela internet: “é preciso ir à luta e se reinventar”, afirmava a campanha de manutenção da prova.
Após grande pressão popular via redes sociais, a data da prova foi redefinida. Já em setembro de 2020, o novo ministro da educação, o pastor Milton Ribeiro, disse em entrevista a um dos principais jornais do país que a questão da volta às aulas e do acesso à internet para estudos não eram atribuições de seu ministério. Ao findar o ano de 2020, apesar de alguns projetos de lei formulados no Legislativo, nenhuma política pública federal de garantia à conectividade e à educação remota para estudantes do ensino público tinha sido aprovada no país.
Se a pandemia e o consequente fechamento do espaço físico das escolas representaram mais uma crise educacional no Brasil, intensificando desigualdades, cabe também ressaltar que esse processo teve um efeito positivo de promover a educação digital entre estudantes do ensino básico. Como discutimos acima, o uso de TICs em escolas públicas ainda era restrito no país. No entanto, a transferência forçada para o ensino remoto emergencial nesse período levou professores e estudantes de diferentes idades a uma familiaridade sem precedentes com variados recursos tecnológicos, revelando uma faceta positiva e inesperada dessa crise.
Ainda assim, queremos enfatizar como, mais do que nunca, durante a pandemia do coronavírus em 2020, a educação no Brasil se tornou um privilégio, deixando milhares de estudantes sem garantia de seu direito à educação. Nesse quadro de crise, coube a agentes diversos, como familiares, professores e diretores de escolas públicas, encontrar soluções criativas e paliativas para tentar manter a conexão com os estudantes que não tinham acesso a equipamentos digitais adequados ou à internet.
Neste período atual de reabertura das escolas, torna-se imprescindível estarmos atentos a essas diferentes formas de desigualdade para garantir o direito à educação. Como afirmou Bourdieu, reconhecer desigualdades no processo educacional torna-se imprescindível se não quisermos, mais uma vez, “favorecer os já favorecidos e desfavorecer os desfavorecidos”.
Renata Mourão Macedo
Carolina Parreiras
Núcleo de Estudos sobre os Marcadores Sociais da Diferença (Numas)
Universidade de São Paulo
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Valmor Moraes
Foi muito esclarecedor para meus estudos .