Na década de 1990, eram comuns os programas televisivos de humor que recorriam a piadas preconceituosas com pessoas gordas, assim como pessoas pretas, mulheres e pessoas LGBTQIA+. Hoje, embora esse humor tenha perdido força na televisão, muitas pessoas continuam enxergando o corpo gordo como uma piada. Não é à toa que, em diversos filmes, séries e novelas, o personagem gordo é o alívio cômico, é o motivo da risada, não tendo geralmente qualquer protagonismo. Não é à toa, também, que frequentemente se diz que “tal humorista ficou sem graça depois que emagreceu”.
Em um estudo que avaliou a presença de mulheres gordas na teledramaturgia brasileira, identificou-se que, das 40 personagens dos núcleos principais das seis maiores telenovelas de 2016 e 2017, apenas quatro eram gordas e nenhuma tinha algum protagonismo e relevância na trama.
O estereótipo do indivíduo gordo como uma pessoa preguiçosa, doente e risível está presente até hoje tanto na ficção quanto na vida real. Mas o que a ciência tem a dizer sobre obesidade e gordofobia?
Quando se trata de obesidade, é importante ter em mente que, sim, vivemos um grave problema de saúde pública. Dados de 2019 do Ministério da Saúde apontam que cerca de 50% da população possuem excesso de peso (ou seja, têm índice de massa corporal – IMC – maior do que 25) e 20% da população são obesos (IMC maior do que 30). Tudo indica que, depois da longa quarentena pela qual passamos, devido à pandemia de covid-19, esses números aumentarão.
Diversos órgãos já classificam a obesidade como uma epidemia no país e as doenças associadas a essa condição têm custado caro ao sistema de saúde brasileiro.
As pesquisas são claras ao dizer que há correlação entre a condição de sobrepeso e de obesidade e a mortalidade por doenças cardíacas. Por isso, não é correto dizer simplesmente que está tudo bem se a obesidade no país aumentar drasticamente.
Mas, nesse contexto, muitas pessoas se amparam em um discurso médico para lembrar constantemente a toda pessoa gorda que ela precisa urgentemente emagrecer, o que também não é correto.
Em junho de 2020, o canal Porta dos Fundos publicou um vídeo humorístico em que o personagem recebe uma ligação de um laboratório para contar o resultado do seu teste de covid-19.
A graça do vídeo está em mostrar que o organismo do personagem estava tão destruído pelo sedentarismo, uso de cigarro e consumo de industrializados, que o próprio coronavírus morreu ao entrar.
Um detalhe importante é que o ator escalado para dar vida a esse personagem havia sido Fábio de Luca, uma pessoa gorda. Após a publicação, foram tantas as pessoas que criticaram o vídeo e apontaram gordofobia, que o grupo Porta dos Fundos o retirou do ar e publicou uma regravação com Rafael Portugal, um ator magro.
O primeiro vídeo associava um personagem gordo a péssimos hábitos alimentares, a um organismo pútrido e ao sedentarismo. Esse estereótipo não apenas contribui para uma forte opressão e discriminação das pessoas gordas, como também é equivocado.
Médicos e nutricionistas garantem que é perfeitamente possível uma pessoa obesa ser mais saudável do que uma pessoa magra. Magreza não é sinônimo de saúde e não só obesos têm diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e problemas articulares.
Outra questão é que o excesso de peso e a obesidade são condições multifatoriais, ou seja, possuem diversas causas. Dentre elas, há fatores genéticos, fisiológicos, sociais, psicológicos, nutricionais. Portanto, quando alguém diz a uma pessoa gorda que ela é assim porque quer ou porque não se esforça para emagrecer, está ignorando uma série de fatores que podem dificultar muito esse processo.
Além disso, uma pessoa pode perder peso tomando remédios fortes, fazendo cirurgias, adotando dietas agressivas ou longos períodos de jejum. Até o consumo de algumas drogas pode fazer emagrecer, devido à perda de apetite. Isso não significa que a saúde melhorou.
Você já se perguntou por que os fiscais da saúde alheia apenas se preocupam com a saúde das pessoas gordas? Ninguém diz a um magro sedentário e de péssimos hábitos alimentares que ele precisa se cuidar, ir ao nutricionista, se exercitar.
Por trás desse discurso da saúde, esconde-se um tipo de violência simbólica cuja raiz são os padrões estéticos que cultuamos, que definem o que é socialmente aceito e o que deve ser punido e corrigido.
Ao longo da história, o ser humano tem criado tecnologias que, ao mesmo tempo em que facilitam a nossa vida, nos deixam mais sedentários. Hoje, muitas pessoas não precisam sequer levantar de uma cadeira para exercerem seus ofícios ou mesmo para se entreterem. Não precisamos investir horas comprando e cozinhando alimentos frescos, porque podemos recorrer aos congelados, enlatados, biscoitos, sucos em caixa.
O consumo excessivo de produtos açucarados e de baixa qualidade nutricional – que somos fortemente influenciados a buscar – é um fator importante para o crescimento da obesidade na população.
Uma estratégia adotada por mais de 40 países é a tributação desses produtos, que tem sido um instrumento eficiente para a redução do consumo e o aumento da saúde da população. Desde 2016, acumulam-se propostas para regulamentação de bebidas açucaradas no Brasil (como refrigerantes e sucos), mas o intenso lobby dessa indústria, que financia campanhas eleitorais e oferece vantagens a parlamentares, atravanca esse processo.
Apesar dessas iniciativas de promoção da saúde, se os pais de uma criança permitem, por exemplo, que ela tenha uma rotina mais sedentária, tenha como fonte de lazer o celular, o videogame, o computador e a televisão e coma muitos produtos açucarados, ela pode adquirir sobrepeso ou mesmo obesidade. A genética, o meio social, a condição psicológica e até o desmame precoce são alguns dos fatores que também podem influenciar esse processo. Nesse caso, se uma criança leva a condição de obesidade para a fase adulta, é justo dizer simplesmente que é culpa do indivíduo?
Os fiscais do corpo alheio que se convencem de que estão apenas incentivando as pessoas a emagrecerem a todo custo, como se isso fosse o suficiente para melhorar sua saúde, podem não estar ajudando em nada, pelo contrário.
O estigma social em torno do corpo gordo leva as pessoas a buscarem medidas extremas, não para alcançarem a saúde, mas a magreza. Disso decorrem diversos transtornos alimentares e até o próprio agravamento da obesidade.
Um relato frequente de pessoas com obesidade é o da chamada gordofobia médica. É muito comum médicos não investigarem sintomas de pessoas gordas porque atribuem automaticamente à obesidade, como se ela fosse a causa de todos os problemas.
Uma revisão de estudos sobre o estigma da obesidade entre profissionais de saúde concluiu que as pessoas gordas são tratadas como causadoras e culpadas da própria condição; muitas acreditam que o desprezo com que são tratadas é merecido e que a culpa de um equipamento médico não as suportar é delas.
Uma pesquisa realizada pela empresa Catho com 31 mil empresários, intitulada ‘A contratação, a demissão e a carreira dos executivos brasileiros’, detectou que cerca de 65% dos executivos têm objeções à contratação de profissionais obesos. Além disso, diversas reportagens revelam que aprovados em concursos públicos (para cargos diversos) são recorrentemente impedidos de tomar posse por possuírem alto IMC, critério que não costuma estar explicitado nos editais.
A vida das pessoas gordas é minada por diversas perdas de direitos. Se essas pessoas são privadas de dignidade, de acesso pleno ao sistema de saúde e de concorrência justa aos postos de trabalho e submetidas a chacotas e opressões que deterioram sua autoestima e saúde mental, é no mínimo perverso dizer que elas são culpadas pela própria obesidade. Quem deve dizer se o excesso de peso de uma pessoa é um problema para a saúde dela é um profissional de saúde, amparado por tantos exames quanto forem necessários.
Lucas Mascarenhas de Miranda
Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora
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