Novas fronteiras no transplante de órgãos

A série sul-coreana Round 6 lançou luz sobre o mercado de tráfico de órgãos humanos. Um sistema ético de distribuição de órgãos e o avanço do conhecimento científico são essenciais para que o transplante, fundamental para o tratamento de diversas doenças relacionadas à falência de órgãos, seja acessível a um número cada vez maior de pacientes.

CRÉDITO: A PARTIR DE FOTO ADOBE STOCK

Sucesso recente da plataforma de streaming Netflix, a série sul-coreana Round 6 (Squid Game) lançou diversos debates a partir de um enredo perturbador em que um grupo de pessoas endividadas participa de jogos sádicos na busca por um prêmio milionário. Além de suscitar debates acalorados a respeito dos limites do comportamento humano diante das dificuldades financeiras e da ambição pela riqueza, a série também lança luz sobre o mercado ilegal e lucrativo de tráfico de órgãos humanos. Mas antes de falar sobre essa rede criminosa que, para além da ficção, existe no mundo real, é preciso conhecer mais sobre os transplantes, sua história e os mais recentes avanços nessa área. 

O processo científico que possibilitou o desenvolvimento do transplante de órgãos foi longo e fascinante, revolucionando o tratamento de diversas doenças que causam perda de função de órgãos do corpo. Mas o método envolve uma série de etapas para que seja bem-sucedido, tais como organização ética e criteriosa da lista de espera de potenciais receptores, seleção de receptores compatíveis com os doadores disponíveis, tratamento imunossupressor adequado e boa adesão ao tratamento. 

O transplante de órgãos é considerado o padrão-ouro para o tratamento de diversas doenças relacionadas à perda de função de um órgão do corpo. Segundo dados de 2019 publicados em 2020 no Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), o Brasil ocupou a segunda posição no número absoluto de transplantes renais e foi o segundo colocado em número absoluto de transplantes hepáticos, com órgãos predominantemente provenientes de doadores falecidos, em ambos os casos. Apesar disso, o número de transplantes realizados no país ainda é insuficiente para a enorme quantidade de pacientes em lista de espera pelos mais diversos órgãos. Em dezembro de 2020, 43.643 pessoas estavam em lista de espera para transplante de órgãos no Brasil, sendo a maioria delas pacientes com doença renal crônica. 


O TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS É CONSIDERADO O PADRÃOOURO PARA O TRATAMENTO DE DIVERSAS DOENÇAS RELACIONADAS À PERDA DE FUNÇÃO DE UM ÓRGÃO DO CORPO

Um pouco de história

O mistério científico envolvido no funcionamento adequado do órgão ou tecido transplantado foi compreendido a partir de várias observações e experimentos realizados ao longo dos anos. O primeiro marco desse processo de que se tem registro ocorreu durante a Batalha da Grã-Bretanha, campanha militar travada durante a Segunda Guerra Mundial, quando o zoólogo da Universidade de Oxford Peter Medawar (1915-1987) e o cirurgião plástico escocês Tom Gibson (1915-1916) avaliaram o uso de pele de cadáveres para o tratamento de vítimas de bombas incendiárias. Eles observaram que pessoas que receberam enxertos de pele de um mesmo doador, mesmo após o enxerto anterior ter sido rejeitado, tiveram uma sobrevida decrescente. Essa observação forneceu evidências de que a rejeição estava relacionada à resposta do sistema imunológico do receptor contra o enxerto. Mas como impedir essa reação? 

Entre 1940 e 1950, foram realizados diversos experimentos com a exposição do corpo à radiação ionizante, que exerceria dano ao ácido desoxirribonucleico (DNA) e morte de células do sistema imunológico, a fim de diminuir a resposta imunológica em transplantes de pele e rim. Até que em 1953, o biólogo Rupert Billingham (1921-2002), o imunologista Leslie Brent (1925-2019) e, mais uma vez, Medawar injetaram leucócitos isolados a partir do baço ou da medula óssea de camundongos adultos (doadores) em camundongos recém-nascidos (receptores), na tentativa de desenvolver quimerismo leucocitário completo, condição em que haveria populações de células geneticamente distintas, uma vez que o sistema imunológico dos recém-nascidos ainda não estava suficientemente desenvolvido para rejeitar as células infiltradas. Esse mesmo experimento foi realizado posteriormente em camundongos adultos (receptores), após irradiação total do corpo. O procedimento possibilitou que tanto camundongos neonatos quanto adultos irradiados fossem capazes de aceitar outros tecidos dos doadores dos leucócitos originais, mas apenas deles! Esses resultados foram os primeiros exemplos de tolerância adquirida ao transplante de um doador específico. 

Poucos anos depois dessas pesquisas, em 1959, foram realizados os primeiros transplantes renais. Primeiramente, na cidade de Boston (EUA), pelo cirurgião norte-americano Joseph Murray (1919-2012) e, cinco meses depois, em Paris, pelo médico francês Jean Hamburger (1909-1992). Nos dois casos, o transplante envolveu gêmeos fraternos, com realização de doses subletais de irradiação e sem infusão de medula óssea do doador. Mesmo sem medicações imunossupressoras, que ainda não estavam disponíveis à época, os enxertos permaneceram funcionantes por mais de duas décadas.

 

Uma revolução nos transplantes

Essas experiências iniciais são reportadas no livro O Comitê da Morte, do escritor norte-americano Noah Gordon (1926-2021), que trata do início dos transplantes com doadores falecidos e o uso da imunossupressão, nos anos 1960. O entendimento progressivo dos mecanismos imunológicos envolvidos no processo de rejeição ao enxerto e o desenvolvimento de medicamentos imunossupressores cada vez mais potentes proporcionaram uma revolução no transplante de órgãos. A descoberta dos mecanismos de reconhecimento de antígenos presentes em células do órgão transplantado pelos linfócitos do receptor permitiu o desenvolvimento de um arsenal terapêutico poderoso na prevenção de rejeição, impactando na sobrevida do enxerto. 


O ENTENDIMENTO DOS MECANISMOS IMUNOLÓGICOS ENVOLVIDOS NO PROCESSO DE REJEIÇÃO AO ENXERTO E O DESENVOLVIMENTO DE MEDICAMENTOS IMUNOSSUPRESSORES PROPORCIONARAM UMA REVOLUÇÃO NO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS

O principal antígeno envolvido nesse processo é o antígeno leucocitário humano (HLA, do inglês human leukocyte antigen), presente em todas as células nucleadas (que possuem núcleo) do corpo. A identidade HLA é uma das informações fundamentais na listagem de um paciente em espera para transplante de rim. A lista de seleção de transplante renal é organizada a partir da compatibilidade entre os antígenos HLA entre o doador e os potenciais receptores, sendo que os mais semelhantes ocupam as primeiras posições na lista. Para o transplante renal, também são considerados para posicionamento na lista: a tipagem ABO, que identifica os grupos sanguíneos, uma vez que esses antígenos são expressos na superfície das células endoteliais, que recobrem o interior dos vasos sanguíneos,  do órgão doado; a doença que levou à falência do órgão e o tempo de tratamento em terapia renal substitutiva (diálise). 

Para a alocação de fígado, por sua vez, o critério utilizado é um escore de gravidade da doença hepática apresentada pelos potenciais receptores, uma vez que o enxerto hepático apresenta menor capacidade de desencadear mecanismos imunológicos de rejeição contra antígenos HLA do que o rim. 

O conhecimento desses mecanismos imunológicos é extremamente importante para evitar o surgimento de rejeição dos órgãos transplantados, processo em que são desencadeadas diversas respostas imunológicas que culminam com a falência do enxerto. O desenvolvimento de medicações imunossupressoras como 6-mercaptopurina e azatioprina permitiram a realização de transplante utilizando apenas medicações, sem a necessidade de irradiação ou transplante da medula. Entre os anos 1969 e 1980, os efeitos colaterais das medicações utilizadas ainda eram muito frequentes, e a mortalidade dos receptores de transplante era bastante elevada, em virtude da elevada ocorrência de rejeição aguda. A perspectiva melhorou drasticamente na década de 1980, com a introdução clínica da ciclosporina e, na década seguinte, do tacrolimo, drogas imunossupressoras mais potentes que proporcionaram redução significativa da rejeição aguda, com preservação da função e sobrevida prolongada dos enxertos e pacientes. 

 

Cenário brasileiro

O Brasil é referência mundial em transplantes, com mais de 90% dos procedimentos financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O transplante pode ser realizado a partir de um doador vivo, possível apenas para alguns órgãos como rim, parte do fígado e pulmão. Para o transplante a partir de doador falecido, é necessária a comprovação da morte encefálica do doador e o consentimento familiar. Nessa situação, os órgãos podem ser obtidos e distribuídos para os receptores em lista de espera, de acordo com a legislação vigente. 

O Sistema Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde, gerencia todas as informações sobre esses procedimentos no Brasil. Os candidatos a transplante são inscritos em uma lista de espera única e exclusiva para cada órgão. A captação e distribuição dos órgãos é realizada a partir de um sistema centralizado, com organização por regiões, de acordo com a localização de doadores e potenciais receptores. 

Apesar de estar presente em todas as regiões do território brasileiro, há maior concentração de centros de transplante no Sudeste e no Sul. Além da desigualdade regional na distribuição dos centros, ainda existem outros entraves para o aumento do número de transplantes realizados no país, como a elevada taxa de recusa de doação por parte dos familiares e o cuidado inadequado com os doadores após o diagnóstico de morte encefálica, reduzindo ainda mais o número de órgãos disponíveis para transplantes. 


APESAR DE ESTAR PRESENTE EM TODAS AS REGIÕES DO TERRITÓRIO BRASILEIRO, HÁ MAIOR CONCENTRAÇÃO DE CENTROS DE TRANSPLANTE NO SUDESTE E NO SUL

Diante desse cenário, uma alternativa para os receptores é o transplante com doadores vivos. Essa modalidade de transplante é possível para órgãos duplos, como os rins, ou com a retirada de parte do órgão, como o fígado e o pulmão. Pela legislação brasileira, parentes de até quarto grau e cônjuges podem ser doadores de órgãos, desde que não apresentem contraindicações médicas ao procedimento. Para os casos de candidatos à doação não-aparentados, a doação somente pode ser realizada com autorização judicial e após a aprovação do comitê de ética do hospital transplantador. 

 

Comércio é ilegal 

O comércio clandestino de órgãos para transplantação é considerado uma prática ilegal. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu, por meio de resolução publicada em 2004, a existência de comércio de órgãos e a necessidade dos países de proteger as pessoas mais pobres e vulneráveis do turismo para venda e transplante de órgãos e tecidos. Em 2008, as sociedades internacionais de Transplante e de Nefrologia redigiram um manifesto denominado Declaração de Istambul, que dispõe sobre os conceitos de tráfico, turismo e comércio de órgãos para transplante. O Brasil passou a ser signatário da Declaração de Istambul pela portaria número 201 de 7 de fevereiro de 2012, que estabeleceu as normas de transplantes para potencial receptor estrangeiro não residente no país a serem realizados em território nacional. De acordo com esse documento, a eventual realização de transplantes de órgãos, tecidos, células ou partes do corpo humano em receptores estrangeiros não residentes no território nacional por meio de financiamento com recursos do SUS só poderá ocorrer mediante a existência prévia de acordos internacionais em base de reciprocidade. 

Em 2017, a Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano elaborou uma recomendação aos governos, ministérios da saúde, sistemas judiciários, líderes religiosos e ao público em geral condenando o tráfico de seres humanos com a finalidade de remoção de órgãos e tráfico de órgãos e os reconhecendo como “crimes contra a humanidade”. Esta declaração também propõe medidas específicas para combater e prevenir estes crimes e para proteger as suas vítimas. 

 

Novas tecnologias 

A ciência segue em busca de soluções para reduzir a dificuldade que alguns pacientes em lista de espera para transplante têm para encontrar um doador. Uma técnica utilizada em alguns centros é o transplante repique, também conhecido como transplante dominó. Exemplo disso ocorre quando um paciente que apresenta uma doença hepática específica recebe um fígado de doador falecido, e esse fígado retirado do paciente é implantado em outro receptor, que tem sua sobrevida aumentada. 


A CIÊNCIA SEGUE EM BUSCA DE SOLUÇÕES PARA REDUZIR A DIFICULDADE QUE ALGUNS PACIENTES EM LISTA DE ESPERA PARA TRANSPLANTE TÊM PARA ENCONTRAR UM DOADOR

Outro método é o transplante pareado em que uma dupla de potencial doador e receptor incompatíveis é conectada a um par na mesma situação. Assim, digamos que o órgão do doador da dupla 1 vai para o receptor da dupla 2, e vice-versa.  Embora essa prática, que é feita com doadores vivos, já ocorra em alguns países com outros órgãos, o primeiro transplante renal pareado foi realizado no Hospital das Clínicas de São Paulo em 2020, como parte de um projeto de pesquisa. 

 

Órgãos de porcos

Em janeiro de 2021, médicos da Universidade do Alabama, em Birmingham (EUA), implantaram dois rins de um porco geneticamente modificado em um receptor humano com diagnóstico de morte cerebral, com resultados promissores, uma vez que houve filtração de sangue e produção de urina, sem a ocorrência de rejeição imediata do órgão. 

Um ano depois, em janeiro de 2022, uma equipe da Universidade de Maryland (EUA) realizou um transplante inédito de coração de porco geneticamente modificado para um paciente com doença cardíaca em estágio terminal para quem o transplante era o último recurso possível. Apesar de ser cedo para saber o impacto do transplante entre espécies diferentes a longo prazo, é inegável que isso é um sopro de esperança para os pacientes que estão na fila de espera.

Marcos Vinicius de Sousa
Marilda Mazzali
Faculdade de Ciências Médicas
Universidade Estadual de Campinas

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