Maconha medicinal e evidências científicas

Discutir o uso terapêutico da maconha em meio à gravíssima pandemia de covid-19 pode parecer algo inócuo, ou, no mínimo, irrelevante. Mas os dois temas, aparentemente tão díspares, se encontram em um ponto: a importância da informação científica na hora de se tomar decisões políticas. Portanto, à luz das melhores evidências disponíveis sobre o tema, quais as indicações e as implicações da maconha medicinal?

O conhecimento científico nem sempre é simples de ser interpretado, e as descobertas da ciência poderão sempre ser refutadas no futuro a partir de estudos posteriores. Mais ainda: temas como uma epidemia em curso por um vírus desconhecido e os efeitos de uma planta relativamente pouco pesquisada por conta do preconceito – apesar de longamente conhecida pela humanidade – acabam por gerar uma enorme quantidade de ruído e, por vezes, declarações públicas ou disseminação de informações absolutamente sem sentido.


Alguns médicos não gostam do termo “medicinal” associado a uma droga e preferem usar outras formas de dizer a mesma coisa: uso terapêutico da Cannabis, ou uso medicinal dos canabinoides

Para entrarmos no debate relativo às plantas do gênero Cannabis, popularmente conhecidas como maconha, a primeira pergunta que devemos nos fazer é se, de fato, existe algo que possa ser chamado ‘maconha medicinal’. Alguns médicos não gostam do termo ‘medicinal’ associado a uma droga e preferem usar outras formas de dizer a mesma coisa: uso terapêutico da Cannabis, ou uso medicinal dos canabinoides (as substâncias ativas presentes na planta). Em alguns casos, evita-se até mesmo qualquer referência à planta, focando em canabinoides específicos, como o canabidiol (CBD) ou o tetra-hidrocanabinol (THC).

Mas a planta, em si, pode ser terapêutica? Do ponto de vista histórico, o uso da maconha como remédio – algo preconizado há alguns milhares de anos – sempre foi fitoterápico, com a planta usada de diversas formas. Embora atualmente exista a possibilidade de trabalhar com moléculas, não se pode negar que há, sim, evidências de que a planta e seus extratos fitoterápicos possam ser medicinais, especialmente no caso da dor crônica.

Além disso, há comprovação científica do uso de derivados da planta para os seguintes problemas de saúde: espasticidade (rigidez) muscular causada por esclerose múltipla, náuseas e vômitos causados por tratamento do câncer e distúrbios do sono. Para algumas doenças, as evidências são mais limitadas, como no controle de comportamentos inadequados nas demências (como o Alzheimer), na fibromialgia ou no glaucoma. Já no tratamento da depressão, não há evidências conclusivas sobre o uso de maconha ou canabinoides.

Como atuam os canabinoides?

A maconha é uma planta complexa, composta por cerca de uma centena de canabinoides – que são óleos sintetizados somente por ela – e mais uma grande quantidade de outras substâncias, como, por exemplo, os terpenos, responsáveis pelo aroma característico, que pode mudar muito de uma variedade de cultivo para a outra.

Os canabinoides mais famosos são o CBD e o THC. O CBD costumava ser menos conhecido do que o THC, mas atualmente é a grande estrela do uso medicinal. Essa molécula é valorizada, entre outras razões, por aparentemente não induzir dependência nem causar alteração de consciência – o ‘barato’ – típico da maconha, pelo qual o principal responsável é o THC. Há muitos estudos em andamento, mas o CBD tem várias propriedades demonstradas, como a capacidade de causar sono e sedação e impedir crises epilépticas, e outras em vias de demonstração, como efeitos ansiolíticos e propriedades antipsicóticas. A tendência dos atores políticos conservadores é valorizar o papel do CBD como se este fosse o canabinoide “bom” e todo o resto da planta fosse composto por substâncias “malignas”.

Apesar de haver problemas possivelmente causados pelo THC – falaremos sobre isso mais adiante –, este canabinoide também tem propriedades terapêuticas. Aliás, há mais propriedades terapêuticas identificadas de forma inequívoca no THC do que no CBD. A substância tem efeitos analgésicos, causa relaxamento muscular, induz aumento de fome em pessoas com falta de apetite devido a doenças crônicas e tem efeitos antieméticos, ou seja, inibe a náusea e o vômito. Estas duas propriedades finais são as que permitem que o THC isolado possa ser prescrito para o tratamento adjuvante da quimioterapia contra o câncer. Há ainda evidências de que doses baixas de THC têm propriedades antiepilépticas e que, quando usadas em conjunto com o CBD, têm efeitos mais potentes e duradouros do que no uso isolado do CBD. Por outro lado, em doses altas, o THC pode induzir crises epilépticas.

Ao se pensar nas concentrações de canabinoides para fins terapêuticos, seja na planta, seja em formulações laboratoriais, devemos ter em mente com que propósito esses produtos farmacêuticos serão usados. Para o tratamento de epilepsia são desejáveis produtos ricos em CBD e pouco THC (em alguns casos, nem se usa o THC). Para o tratamento de outros quadros, como dor crônica, rigidez muscular e inapetência, misturas equilibradas contendo os dois canabinoides são desejáveis.

Como o CBD combate parte dos efeitos indesejáveis do THC puro que atingem algumas pessoas (como ansiedade e sintomas paranoicos), estudiosos do uso medicinal da maconha sugerem que a combinação dos canabinoides – selecionados artificialmente nas plantas, por anos e anos a fio, pelo ser humano – poderia ser mais propícia do que o seu uso isolado. É o chamado efeito comitiva, como denominou o mais importante estudioso de maconha do mundo, o químico orgânico israelense Raphael Mechoulam.

 

Medicamentos e concentrações

O uso terapêutico de uma planta implica conhecimento muito maior de suas propriedades do que seu uso social (ou recreativo, como alguns dizem). No caso do uso da planta in natura, como no medicamento holandês Bedrocan, é necessário saber as concentrações de THC e CBD. O Mevatyl, que tem uma concentração de THC para CBD de um para um, é feito através de uma composição de extratos de plantas diferentes para se chegar aos seus níveis conhecidos de canabinoides. Outros óleos são extraídos de plantas com concentrações conhecidas, como no caso dos extratos de cânhamo (maconha com quase nenhum THC) que são usados em formas de se comercializar CBD de origem natural. No caso da maconha de uso social, devido à proibição, não há como saber a concentração de canabinoides – pelo menos no Brasil.

Por fim, os canabinoides podem também ser sintetizados em laboratório. O THC, quando é feito dessa forma recebe outro nome – dronabinol – e tem status legal diferenciado (não é proibido no Brasil, e é remédio registrado nos Estados Unidos). A comercialização de CBD sintético ainda não recebeu o registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas é uma formulação que provavelmente deve surgir em breve no mercado.


O argumento a favor do uso de canabinoides isolados, além de político, é baseado na ideia de que a pureza dos extratos apresente riscos menores. Mas há quem argumente que justamente um pouco dessa mistura poderia ser benéfica

O argumento utilizado a favor do uso de canabinoides isolados, além de político, é baseado na ideia de que a pureza dos extratos apresente riscos menores. Porém, há quem argumente que justamente um pouco dessa mistura poderia ser benéfica, como esperado no mencionado efeito comitiva: o CBD reduziria os efeitos colaterais indesejáveis do THC, e o THC poderia aumentar os efeitos terapêuticos do CBD. Além disso, em um cenário de plantio regulamentado no Brasil, cultivar maconha e fazer seu extrato parece ser, no momento, uma solução muito mais barata, algo que não pode ser desprezado em um país com enormes desigualdades como o Brasil.

Amparo na Justiça

A importação de medicamentos à base de cânabis já é normatizada pela Anvisa há alguns anos, e com uma decisão recente se tornou ainda mais corriqueira. É necessário alertar, porém, que a compra dos medicamentos regulamentados é um processo extremamente caro. Com liminares concedidas pela Justiça, diversas famílias, pacientes e, pelo menos, uma associação têm conseguido autorização para plantar maconha para uso medicinal. Ou seja, na falta de legislação que resolva o problema, a via judiciária está resolvendo o problema, ainda que de forma errática e ao sabor das percepções particulares de cada magistrado que decide sobre isso.

Amparo na Justiça

A importação de medicamentos à base de cânabis já é normatizada pela Anvisa há alguns anos, e com uma decisão recente se tornou ainda mais corriqueira. É necessário alertar, porém, que a compra dos medicamentos regulamentados é um processo extremamente caro. Com liminares concedidas pela Justiça, diversas famílias, pacientes e, pelo menos, uma associação têm conseguido autorização para plantar maconha para uso medicinal. Ou seja, na falta de legislação que resolva o problema, a via judiciária está resolvendo o problema, ainda que de forma errática e ao sabor das percepções particulares de cada magistrado que decide sobre isso.

Riscos e formas de administração

Maconha não é algo inócuo, o que não é surpreendente: nenhum remédio o é. Do ponto de vista do uso recreativo, os maiores riscos estão associados, entre outros, ao impacto do uso fumado e com o risco de desenvolvimento de psicoses (um tipo de transtorno mental grave), principalmente com a maconha rica em THC e quando o início do consumo acontece cedo (infância ou adolescência). Porém, simplesmente não há base científica para se afirmar que, à parte do CBD, toda a planta da maconha seja maléfica ou impossível de ser usada de forma terapêutica.

Sobre as formas de administração da maconha medicinal, é importante lembrar que há uma miríade de possibilidades: ingestão pela boca, uso de emplastros, spray bucal e outras formas. Fumar não é a maneira mais desejável de se administrar um medicamento. Na verdade, não há medicamentos que normalmente sejam administrados assim, modernamente. A alternativa seria o uso de vaporizadores, quando a pessoa não conseguir usar ou não se adaptar a outras formas de administração. O comércio de vaporizadores no Brasil, no entanto, ainda é proibido. Ainda assim, principalmente em estados norte-americanos onde o uso da maconha in natura foi legalizado, muitos pacientes preferem fumar.

 

Efeitos da legalização

No caso do uso recreativo da maconha, os dados ainda são muito incipientes e heterogêneos para se analisar de forma definitiva. Em relação ao uso terapêutico, há dados consolidados sobre o impacto na sociedade de maneira bem mais segura, já que em determinados estados americanos, a legalização ocorreu há um bom tempo – quase 25 anos na Califórnia. Sendo assim, diferentemente do que dizem os seus detratores, não há evidência de que a aprovação de leis de maconha medicinal tenha aumentado o consumo em jovens, causado mais problemas de saúde na população e gerado mais acidentes de trânsito.


Legalmente, não há impedimentos, no Brasil, para se pesquisar com substâncias e plantas proibidas, mas isso envolve uma série de procedimentos de autorização que nem sempre são fáceis e envolvem custos

Agora, como fica a ciência brasileira em relação à pesquisa sobre terapias com maconha? Legalmente, não há impedimentos para se pesquisar com substâncias e plantas proibidas, mas isso envolve uma série de procedimentos de autorização que nem sempre são fáceis e que envolvem custos. Infelizmente a legislação corrente obriga que a Anvisa trate instituições públicas de pesquisa da mesma forma que a indústria farmacêutica, cobrando determinadas taxas para obter as autorizações legais. Ainda falta, no Brasil, um ambiente mais favorável à pesquisa nesse campo, o que é lamentável, pois as condições ecológicas do país, associadas ao conhecimento técnico na área agrícola nos permitiria fornecer matéria prima para laboratórios farmacêuticos em grandes quantidades.

É importante, portanto, concluir fazendo um lembrete a respeito da relevância da ciência neste momento e sempre. Precisamos superar ideias preconcebidas e medos para ter um olhar sobre esse e outros temas sem apavoramento e sem pressupostos contrários ou positivos. Dessa maneira, será possível abrir espaço para que as evidências científicas sejam encontradas e pavimentem o caminho para a tomada de decisão menos opinativa e mais embasada nos fatos, seja nas emergências graves de saúde pública, seja em propostas que quebrem preconceitos profundamente arraigados na nossa população.

Luís Fernando Tófoli

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria
Faculdade de Ciências Médicas
Universidade Estadual de Campinas

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