Além disso, mostra que o continente africano, em suas múltiplas experiências culturais, não pode ser considerado científica e tecnologicamente atrasado e que houve – ao longo do histórico e perverso sistema colonial escravocrata, que perdurou, no Brasil, por quase quatro séculos – grandes apropriações do conhecimento científico ancestral africano em diferentes níveis.
Essa perspectiva precisa conectar-se com a base afro-indígena para também valorizar e reconhecer os vínculos profundos que o povo brasileiro tem com as culturas africanas (povos de língua banto, iorubás, fon etc.) nos últimos séculos; vínculos que, mais recentemente, têm sido renovados com a presença de imigrantes e refugiados negros vindos de países africanos.
Vale lembrar que, quando os europeus invadiram o território hoje denominado América (Pindorama ou Abya Yala, em línguas indígenas), os povos originários do continente americano tinham suas culturas, línguas, seus saberes, fazeres e modos de ser e de viver.
Os legados dos povos originários estão materializados, por exemplo, em suas perspectivas cosmológicas; explicações sobre a organização do mundo; técnicas; domínios tecnológicos na materialização do tempo; relações interdisciplinares com os fenômenos do céu e da atmosfera terrestre; previsão de fenômenos astronômicos cíclicos que exigem observação sistemática e teorização organizada do pensamento.
Tarefa árdua
Mas, apesar do rico e vasto legado ancestral dos povos originários e negros africanos em diáspora para a constituição de nosso conceito contemporâneo de nação, vivemos em um país que tem, no racismo contra negros e indígenas, uma de suas tecnologias sociais mais afiadas e mortíferas, seja qual for o indicador social em análise (saúde, educação, cultura, moradia, segurança etc.).
O ensino de física e astronomia em perspectiva afro-indígena não pode ganhar ares de folclore ou ser desumanizado – ou seja, receber adjetivos como ‘etno isso’, ‘etno aquilo’ simplesmente. Antes, ele reconhece que a etnofísica e a etnoastronomia branca, europeia, colonizadora, masculina, hétero e cis normativa precisa ser tensionada em suas bases fundantes, pois esse olhar dominante não pode ser a norma e, muito menos, a régua da universalidade do mundo, sua única forma de expressão.
Essa é uma tarefa árdua para um modo de fazer ciência que não leva em conta a ‘natureza’ (ontologia) da diferença. Talvez, esse seja o maior desafio para a aplicação do artigo 26A da LDB, porque, nesses movimentos, os privilégios são expostos, e o discurso da meritocracia fragiliza-se.
A perspectiva afro-indígena pode abarcar outro programa de educação e divulgação científica. Nele, projetos diferenciados (por exemplo, educação escolar quilombola e indígena) são partes integrantes e crítica da Quarta Revolução Industrial – afinal, oferecem, ao país, outras interpretações para os conceitos de desenvolvimento, sustentabilidade e inovação. Mais: o diferencial desses projetos está no fato de eles levarem em consideração as especificidades (história, território, memória, ancestralidade e conhecimentos) dessas populações em consideração.
Visto através das lentes afro-indígenas, o ensino de física e astronomia nos ajudaria a compreender – e solucionar – questões sociocientíficas fundamentais. Por exemplo, a implantação de grandes projetos científicos e tecnológicos no âmbito da física e astronomia hegemônica, como a de telescópios e observatórios, usinas hidrelétricas e bases de lançamento de foguetes – muitos deles ocupando territórios sagrados ou vistos como parte integrante da cultura de grupos negros, quilombolas e indígenas.