Uma reflexão filosófica sobre os microrganismos

Os microrganismos são onipresentes em nosso planeta, o que tem levado cientistas a terem um olhar mais filosófico sobre a vida desse grupo de seres vivos. Uma das lições mais importantes dos unicelulares procariontes (bactérias e arqueias) é que o modelo clássico de ‘árvore da vida’, proposto por Charles Darwin, não retrata toda a complexidade da evolução. Esses microrganismos transferem seus genes não apenas para seus descendentes diretos, fazendo a chamada transferência lateral de genes, trazendo novas luzes ao conceito do que é uma espécie.

Apesar da visão geral de que os microrganismos (bactérias, vírus, fungos e protozoários) são agentes causadores de doenças, a maioria deles não é prejudicial aos seres humanos – na verdade, muitos são benéficos e até essenciais ao nosso bem-estar e ao funcionamento do planeta. Nas palavras do químico e microbiologista francês Louis Pasteur (1822-1895): “O papel do infinitamente pequeno na natureza é infinitamente grande”. De fato, os microrganismos são as formas de vida mais importantes, diversas e antigas da Terra.

A compreensão disso começou a surgir em 1674, a partir da confecção de um microscópio simples, por Antonie van Leeuwenhoek (1632-1723). Esse comerciante e cientista amador holandês foi a primeira pessoa a visualizar bactérias e a reportar à Royal Society of London a ocorrência, em amostras como saliva, infusão de pimenta e água de chuva, do que chamou de ‘animálculos’.

Com o tempo, a ampliação das técnicas e dos instrumentos permitiu observar a onipresença dos microrganismos, preconizada no século 19 por Pasteur, o que os torna o grupo de seres vivos mais bem-sucedidos que já habitou a Terra. Como disse o paleontólogo estadunidense Stephen Jay Gould (1941-2002), “Nosso planeta sempre esteve na ‘Idade da Bactéria’, desde que os primeiros fósseis – de bactérias, é lógico – ficaram enclausurados nas rochas há mais de três bilhões e meio de anos”.

O mundo que habitamos é, portanto, um mundo microbiano. Tal constatação tem permitido que biólogos e filósofos explorem as consequências de se levar os micróbios a sério, no momento de refletir sobre problemas filosóficos colocados pela biologia. Em seu livro Filosofia da microbiologia, a pesquisadora da Universidade de Sydney Maureen O’Malley convida os filósofos e os biólogos a olharem mais de perto para as lições que os micróbios podem nos ensinar. Segundo a autora, essa atitude pode nos levar à reorientação das discussões filosóficas e à reconceituação de tópicos importantes da biologia. Aceita um convite para considerar os micróbios por outra perspectiva?

 

A árvore da vida

A “árvore da vida” é uma representação icônica da ascendência de organismos, na forma de relações de linhagens, a partir de uma origem comum (a raiz), contendo bifurcações (galhos) com extremidades que representam a diferenciação resultante do processo de especiação (processo de surgimento de uma nova espécie) por meio da evolução. É tal a sua importância para a compreensão da evolução que é a única imagem no livro Origem das Espécies, de Charles Darwin (1809-1882)- (Figura 1). A partir de dados morfológicos, registros fósseis e estudos moleculares, os biólogos evolucionistas inferem relações filogenéticas que capturam as relações evolutivas entre os seres vivos. É uma imagem poderosa e com profundas consequências metafísicas, pois organiza a forma como compreendemos a formação de novas espécies, a realidade e as relações entre os seres vivos.

Figura 1. Árvore da vida: a ideia de uma árvore, representando a evolução da vida e as relações entre os seres vivos, foi descrita por Darwin no livro “A origem das espécies” (1859). FONTE: HTTPS://EN.WIKIPEDIA.ORG/WIKI/ TREE_OF_LIFE_(BIOLOGY)

No entanto, pesquisas recentes lançam dúvidas sobre a adequação dessa imagem, uma vez que a complexidade e a diversidade do mundo biológico não podem ser reduzidas a um processo envolvendo herança vertical (quando um organismo recebe material genético de seu antecessor) e variação gradual seguida por seleção natural, como proposto por Darwin.


PESQUISAS RECENTES LANÇAM DÚVIDAS SOBRE A ADEQUAÇÃO DA “ÁRVORE DA VIDA”, UMA VEZ QUE A COMPLEXIDADE E A DIVERSIDADE DO MUNDO BIOLÓGICO NÃO PODEM SER REDUZIDAS A UM PROCESSO ENVOLVENDO HERANÇA VERTICAL

Na verdade, a seleção natural opera em conjunto com processos geradores de diversidade, e um deles permite que microrganismos procarióticos (unicelulares, com célula sem núcleo) transfiram genes para organismos que não são seus descendentes diretos, incluindo genes importantes para a definição da própria linhagem, na chamada transferência horizontal ou transferência lateral de genes (TLG). Esse tipo de transferência é tão prevalente entre esses seres que alguns cientistas questionam se é possível organizar os procariontes (bactérias e arqueias) por meio de modelos padrão de filogenia, baseados na herança vertical.

O fato de genes que estabelecem importantes vias metabólicas procarióticas terem sido adquiridos por transferência lateral de genes fez com que esse mecanismo fosse considerado um evento fundamental na evolução dos procariotos, e responsável, juntamente com a herança vertical, por moldar e reforçar a coesão dos principais grupos bacterianos. A TLG seria também a principal forma de surgimento de inovações evolutivas nesses microrganismos: através da transferência tanto de genes individuais, como de conjuntos de genes, genomas completos e de genes de microrganismos endossimbiontes (simbiontes intracelulares) para o genoma do hospedeiro, como no evento que originou mitocôndrias, cloroplastos e a célula eucarionte.

Alguns exemplos, entre muitos, podem ilustrar melhor o sucesso da transferência lateral de genes (TLG) entre grupos diferentes:

A aquisição de mais de mil genes de origem bacteriana, que permitiu a mudança do ancestral de Haloarchaea (uma classe de arqueias que vive em águas extremamente salgadas) do ambiente anaeróbico para o aeróbico;

As bactérias marinhas transferiram para as bactérias intestinais da população japonesa genes que codificam enzimas para digestão dos polissacarídeos das algas marinhas. Assim, os japoneses conseguem absorver os carboidratos presentes nas algas em sua dieta. Esse é um exemplo de evolução do holobionte (que é a soma do organismo hospedeiro e toda sua microbiota simbiótica);


AS BACTÉRIAS MARINHAS TRANSFERIRAM PARA AS BACTÉRIAS INTESTINAIS DA POPULAÇÃO JAPONESA GENES QUE CODIFICAM ENZIMAS PARA DIGESTÃO DOS POLISSACARÍDEOS DAS ALGAS MARINHAS. ASSIM, OS JAPONESES CONSEGUEM ABSORVER OS CARBOIDRATOS PRESENTES NAS ALGAS EM SUA DIETA

A possível transferência de genes relacionados à biossíntese de aminoácidos sulfurados de bactérias para artrópodes herbívoros pode ter tornado esses invertebrados capazes de neutralizar o cianeto produzido por plantas das quais se alimentam.

 

Mas essa transferência lateral de genes ocorre de forma aleatória? Em geral, não. Essa aquisição gênica horizontal é mais frequente entre organismos mais próximos, do ponto de vista evolutivo, do que entre mais distantes. Essa preferência de parceiros de troca reforça a identidade do grupo e faz com que ele persista de uma forma reconhecível, ao longo do tempo.

Assim, uma população seria um agregado de indivíduos com material genético compartilhado, uma vez que o fluxo de genes entre esses indivíduos cria um grande reservatório genético, em um sistema comum, com genes em movimento, e não limitados a espécies individuais. As células individuais, em uma população, podem, então, não só fazer uso de seu próprio material genético, como ter acesso a uma fonte mais extensa no pool genético ao seu redor, um pangenoma, como veremos mais adiante.

A extensão e o significado dessas transferências horizontais é tal que a construção de filogenias, admitindo apenas descendência vertical, é violada. Assim, alguns cientistas propõem o abandono do modelo clássico da “árvore da vida” em favor da adoção de um modelo em teia, rede ou anel (Figuras 2 e 3). A ideia seria a de que os três domínios da vida (Arqueia, Bactéria e Eucarioto) teriam surgido de uma população de células primitivas com arsenais genéticos diferentes, e os eucariotos teriam evoluído não a partir de um único ancestral procariótico, mas de um pool de espécies que compartilham genes por mecanismos de TLG.


OS EUCARIOTOS TERIAM EVOLUÍDO NÃO A PARTIR DE UM ÚNICO ANCESTRAL PROCARIÓTICO, MAS DE UM POOL DE ESPÉCIES QUE COMPARTILHAM GENES POR MECANISMOS DE TLG

Figura 2. O modelo em teia ou rede mostra a evolução da vida a partir de uma comunidade de células ancestrais, com vários troncos e apresentando conexões entre ramos, onde teria ocorrido transferência lateral de genes. FONTE: OPENSTAX COLLEGE, PERSPECTIVES ON THE PHYLOGENETIC TREE. OCTOBER 16, 2013. PROVIDED BY: OPENSTAX CNX. LOCATED AT: HTTP://CNX.ORG/CONTENT/M44593/LATEST…E_20_03_06.JPG. LICENSE: CC BY: ATTRIBUTION
Figura 3. O modelo em anel propõe que os três domínios da vida teriam evoluído a partir de um pool de procariotos primitivos. FONTE: OPENSTAX COLLEGE, PERSPECTIVES ON THE PHYLOGENETIC TREE. OCTOBER 16, 2013. PROVIDED BY: OPENSTAX CNX. LOCATED AT: HTTP://CNX.ORG/CONTENT/M44593/LATEST…E_20_03_06.JPG. LICENSE: CC BY: ATTRIBUTION

O conceito de espécie

O conceito biológico de espécie é o mais difundido e o mais familiar aos livros didáticos de biologia. Segundo esse conceito, proposto pelo biólogo alemão Ernst Mayr (1904-2005) em 1942, espécies são agrupamentos de populações naturais que não se reproduzem no cruzamento com outros grupos de mesmas características. Ou seja, duas espécies são distintas uma da outra quando se encontram isoladas reprodutivamente – não se cruzam ou não geram descendentes férteis.

Mas, se considerarmos os microrganismos procarióticos, o grupo de maior diversidade entre os organismos vivos, o número de espécies descritas é subestimado, talvez devido à controvérsia existente sobre o conceito de espécie bacteriana. A espécie procariótica pode ser entendida hoje como um grupo de linhagens individuais, coeso do ponto de vista genômico, que compartilha um alto grau de similaridade em (muitas) características independentes e que é diagnosticável pelas propriedades fenotípicas. Esse conceito pode ser chamado de filo-fenético (filogenético, pela ancestralidade comum, fenético, pela similaridade fenotípica no máximo de características possíveis e genotípico, pela demarcação dos limites genômicos do grupo) e pode ser considerado pragmático, operacional, universalmente aplicável e bem-sucedido.

Em contraste com animais e plantas, nos quais a coesão genética pode ser caracterizada, em essência, por compatibilidade sexual e estrutura de população, a estrutura, a ecologia e a dinâmica das populações microbianas ainda são pouco conhecidas e, em muitos aspectos, a genômica procariótica difere daquela dos organismos eucariontes. Enquanto, nestes últimos, o fluxo gênico, vertical e hereditário garante a coesão genética entre as espécies, as idiossincrasias da genômica procariótica, como a ocorrência de TLG e a recente ideia da existência de um genoma central (genes essenciais, compartilhados por todos os membros de um grupo) e genes acessórios (presentes em apenas alguns indivíduos), gerando um pangenoma, problematizam a definição de um conceito biológico universal de espécies.

O conceito de pangenoma foi desenvolvido para explorar a fluidez dos genomas procarióticos. Ele também representa o conjunto de genes potencialmente disponível, através de TLG, para qualquer membro do grupo, assumindo, assim, a função de uma fonte compartilhada de recursos. Então, o genoma individual de uma célula procariótica não representa a totalidade dos recursos genéticos da população.


O CONCEITO DE PANGENOMA FOI DESENVOLVIDO PARA EXPLORAR A FLUIDEZ DOS GENOMAS PROCARIÓTICOS

Um exemplo dessa versatilidade genômica é dado pela Escherichia coli. Enquanto o genoma central dessa bactéria apresenta em torno de dois mil genes, seu pangenoma, considerando 20 linhagens diferentes, teria cerca de 18 mil genes. Em outras palavras, mais de 50% dos genes de uma linhagem consistiria de genes acessórios, a maioria deles frequentemente trocada entre linhagens. Sendo assim, os diferentes estilos de vida e ecologias que essa bactéria pode adotar, variando de ambiental a comensal ou patogênica, podem ser atribuídos a conjuntos específicos de genes acessórios. Logo, pode-se levantar a hipótese de que células procarióticas individuais funcionam de forma integrada em um metaorganismo, cujo genoma seria o pangenoma da população.

Os filósofos, portanto, ao considerar os micróbios, especialmente bactéria e arqueia, são provocados a assumir uma visão pluralista do conceito de espécie, pois, ao que tudo indica, nenhum conceito único funciona em toda a diversidade dos seres vivos.

 

A mente microbiana

Nossa tendência é atribuir processos cognitivos somente a seres vivos com sistemas nervosos complexos. No entanto, algumas pesquisas têm demonstrado complexas atividades cognitivas em microrganismos. Como exemplo, é possível citar a adaptabilidade bacteriana às mudanças do ambiente, por meio de uma linguagem química, que envolve a regulação da expressão e atividade de milhares de genes. Alguns mecanismos moleculares relacionados já foram descritos em bactérias, como: a quimiotaxia (orientação de um organismo) para encontrar nutrientes, evitar produtos químicos tóxicos, sentir pH e interagir com organismos hospedeiros em simbiose e patogênese; além da irreversível formação de esporos, mediante condições externas desfavoráveis. Assim, a adaptabilidade do sistema cognitivo bacteriano com o intuito de superar desafios seletivos, fortalece a visão contemporânea das células como entidades sencientes, que agem em resposta a estímulos sensoriais.


A ADAPTABILIDADE DO SISTEMA COGNITIVO BACTERIANO COM O INTUITO DE SUPERAR DESAFIOS SELETIVOS, FORTALECE A VISÃO CONTEMPORÂNEA DAS CÉLULAS COMO ENTIDADES SENCIENTES, QUE AGEM EM RESPOSTA A ESTÍMULOS SENSORIAIS

Outro exemplo de cognição bacteriana é o reconhecimento de parentesco (comportamento cooperativo, que aumenta a aptidão dos indivíduos participantes), observado em alguns estudos envolvendo Myxococcus xanthus e Bacillus subtilis, que apontaram não apenas diferenças genéticas entre os isolados, mas também a formação de diferentes grupos sociais. Segundo o biólogo evolutivo e escritor Richard Dawkins, em seu livro “O gene egoísta” (1976), esse processo está relacionado ao conceito de gene barba verde – capacidade de reconhecer e de conferir um comportamento cooperativo ou útil àqueles indivíduos que possuem a mesma característica (gene/alelo). Diante disso, há uma valorização crescente do fato de que as bactérias reconhecem seus vizinhos, e isso leva a funções sociais importantes, como desenvolvimento multicelular, formação de biofilme (comunidades de bactérias envoltas por substâncias, principalmente açúcares, produzidas pelas próprias bactérias, que conferem à comunidade proteção contra agressões) e detecção de quórum (sinalização que regula diversos comportamentos cooperativos, incluindo bioluminescência, virulência e motilidade). Assim, tem emergido uma visão ampliada da cognição, em que não existem unidades, mas sistemas interativos.

Por tudo isso, as implicações de um olhar mais filosófico sobre a vida microbiana, tomando-se os microrganismos como fonte de dados, pode fazer com que conceitos como individualidade, identidade, unidade de seleção, nível de seleção, vida, causalidade, entre outros, adquiram novas compreensões. Fica aqui, portanto, o convite para se levar os micróbios mais a sério.

Gabriela Frois Duarte
Laboratório de Biologia e Tecnologia de Micro-organismos
Departamento de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Ouro Preto

Sarah Eliane de Matos Silva
Doutoranda em Neurociências
Universidade Federal de Minas Gerais

Francisco Ângelo Coutinho
Faculdade de Educação
Universidade Federal de Minas Gerais

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