Em uma aula de história sobre nazifascismo para alunos do nono ano, o professor relatava à turma o drama vivido por judeus, ciganos, homossexuais, entre outros grupos minoritários, socialmente excluídos e até exterminados pelo regime na Alemanha de Hitler. Subitamente, a narrativa foi interrompida pelo intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras). A turma contava com alunos surdos incluídos e, dentre eles, uma aluna mostrava-se ansiosa para expor sua dúvida. A jovem perguntou se os surdos também estavam entre as vítimas do nazismo. A questão desconcertou o professor, que ignorava aquela informação. Para não deixar a estudante sem retorno, ele respondeu de forma vaga, usando generalizações, porém confessou o seu desconhecimento a respeito do tema e prometeu pesquisar para oferecer uma resposta mais a contento.
Naquele momento, ocorreu ao professor que, para além de uma curiosidade a respeito de um fato específico, a pergunta feita pela aluna abrigava em si um questionamento mais complexo: onde estão os surdos na história?
Esse professor era eu, e o episódio serviu de mote para a criação de um projeto que pretende incluir a história dos surdos aos conteúdos curriculares da disciplina história em turmas da educação básica com alunos surdos incluídos. Os primeiros argumentos do projeto foram apontados na dissertação que defendi no Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória), cujo produto didático já foi apresentado na edição nº 371 da Ciência Hoje. O projeto segue como pesquisa de doutorado para o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Por meio do projeto “Onde estão os surdos na História?” pretendemos levar à sala de aula o protagonismo surdo na trajetória humana, ainda negligenciado pela historiografia e pelo currículo da história ensinada. Lembrar, para citar alguns exemplos, que Ludwig van Beethoven (1770-1827), Francisco de Goya (1746-1828) e Thomas Edison (1847-1931), gênios ímpares das artes e da ciência, eram surdos. Revelar personagens menos conhecidos, como a surdocega Hellen Keller (1880-1868), ativista de causas como os direitos humanos e o sufrágio feminino; Eduard Huet (1822-1882), responsável pela criação das primeiras escolas para surdos no Brasil e no México; e Ferdinand Berthier (1803-1886), intelectual francês que liderou as primeiras formas de associação dos surdos e foi correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Além da representatividade, propomos fomentar um debate a respeito dos direitos das pessoas surdas pelo viés da perspectiva histórica, de modo a serem entendidos não como benesses, mas frutos da mobilização da comunidade surda ao longo do tempo. Por fim, o projeto deve abordar a história dos surdos sob o ponto de vista dos próprios, seja por intermédio de autores surdos, seja pelas memórias dos integrantes surdos das comunidades escolares, respeitando-se o lema dos movimentos das pessoas com deficiência: “Nada sobre nós, sem nós.”
As ações relacionadas ao projeto já vêm ocorrendo em uma escola pública da Baixada Fluminense (RJ). A unidade de ensino é polo na educação de surdos. Desde o mês de março de 2021, professores de história, a professora da sala de recursos para surdos, uma intérprete de Libras e um profissional surdo da escola têm se reunido para aprender e trocar conhecimentos referentes à história dos surdos. Além disso, esse grupo também é responsável por definir e organizar os materiais produzidos, bem como as atividades realizadas para o projeto, com apoio da equipe diretiva. Questionários também foram respondidos por professores e alunos, nos quais se buscou verificar conhecimentos prévios, interesses e expectativas sobre a temática abordada.
Os conteúdos referentes à história dos surdos foram tratados nas aulas da disciplina, tendo como material de referência textos e atividades incluídos em apostilas produzidas pelos professores. Os textos caracterizam-se por serem curtos e objetivos, com palavras-chave destacadas e relacionados a imagens, de modo a facilitar a leitura pelos estudantes surdos, os quais, não raro, apresentam dificuldades quanto à fluência na modalidade escrita da língua portuguesa.
Já as atividades buscam mais do que fixar os conteúdos aprendidos, propondo reflexões e diálogos entre o passado e o presente dos surdos. Exploram a dimensão da pesquisa, como também habilidades e linguagens outras que não a escrita: produção de desenhos, histórias em quadrinhos, entre outras. Em classe, a apresentação de tais materiais e o feedback dos alunos foram intermediados por um intérprete de Libras. No entanto, a fim de que os estudantes surdos possam ter acesso mais autônomo aos textos e atividades, esses deverão ganhar uma versão em língua de sinais nas próximas etapas do projeto.
Extrapolando o espaço da sala de aula, o projeto se expandiu para a escola como um todo, tornando-se tema da Semana dos Surdos, evento regular da unidade de ensino que busca valorizar os alunos surdos e contribuir na formação continuada de seus profissionais da escola no que tange à educação desses estudantes. Em sua edição de 2021, as palestras da Semana dos Surdos abordaram o início da inclusão de surdos na escola; as memórias e experiências acadêmicas/profissionais de seus ex-alunos surdos e a história da educação de surdos, incentivando toda a comunidade escolar a conhecer e a refletir sobre o lugar das pessoas surdas na História. Esperamos assim contribuir para a formação de sujeitos conscientes de seu passado, capazes de valorizar e respeitar as diferenças humanas no presente.
Paulo José Assumpção dos Santos
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Surdez – GEPeSS (GEPeSS/DGP-CNPq)
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientadora:
Celeste Azulay Kelman
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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