Uma vacina do Brasil para o mundo

“Essa tem sido a história do Butantan desde o seu nascimento. Lá no início do século 20, foi criado para fazer frente a uma epidemia de Peste Bubônica. Está dentro da trajetória desenvolver vacinas, combater epidemias e pandemias”, diz Dimas Covas, presidente do instituto, ao lembrar como, no início de 2020, quando muitos ainda duvidavam da gravidade do coronavírus, a instituição começou a se preparar para trazer um imunizante para o país. Mais de um ano depois e de milhões de doses da CoronaVac produzidas, o médico coloca suas fichas na Butanvac, vacina desenvolvida pelo Butantan em um consórcio internacional, que poderá ser 100% produzida nas fábricas do instituto. Para ele, a vacina – de baixo custo e acessível – é uma grande esperança para o Brasil e, principalmente, para os países pobres, onde a vacinação ainda engatinha. “A maior lição disso tudo é que a ciência é fundamental para a vida moderna. Nós só vamos progredir enquanto civilização quando a ciência for, de fato, valorizada. E não é isso que nós vemos no Brasil”, lamenta.

CH:Qual a importância de se produzir uma vacina brasileira, com insumos nacionais, no cenário atual em que já há outros imunizantes em uso no país?

DC:O Brasil tem um dos maiores programas de vacinação pública do mundo, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que é mantido, majoritariamente, por Butantan e Fiocruz. O Butantan é o maior fornecedor de vacinas para o PNI. Entregamos 80 milhões de unidades por ano da nossa vacina da gripe, por exemplo. Uma emergência sanitária como essa, que pegou a todos de surpresa e ainda vai permanecer por algum tempo, exige vacinas, e essas vacinas precisam ser produzidas aqui para dar ao Brasil independência nessa área. Tivemos um grande desafio no ano passado, que está sendo progressivamente vencido, e esse avanço deve se consolidar na hora em que tivermos a produção nacional. O Butantan trabalha nesse sentido desde o ano passado e, neste momento, tem uma vacina em uso amplo no país, a CoronaVac; e outra em estágio avançado de desenvolvimento, a Butanvac, que, sem dúvida, traz grande esperança para o próximo ano.


É uma grande esperança. A Butanvac pode resolver o problema do Brasil no segundo semestre de 2022 e, também, ajudar países mais pobres, que são os que têm dificuldade na vacinação

CH:Quais as principais características da Butanvac? Ela apresenta evolução em comparação à primeira geração de vacinas?

DC:A Butanvac já incorpora os muitos conhecimentos gerados sobre o vírus com a primeira geração de vacinas. Ela tem uma constituição antigênica aperfeiçoada e que induz, como já demonstrado nos experimentos animais, uma elevada resposta imunogênica. Sem dúvida, é uma vacina melhor nesse sentido. O segundo ponto importante é ser produzida numa tecnologia vacinal muito disseminada no mundo, a mesma plataforma da vacina da gripe. Existem fábricas da vacina da gripe espalhadas no mundo todo, e o objetivo da Butanvac é exatamente ser acessível a essas populações através das produções locais. Ela foi desenvolvida num consórcio internacional, e nesse momento são três países que desenvolvem estudos clínicos: Brasil, Tailândia e Vietnã. Esperamos que, até o final do ano, já tenhamos os resultados desses estudos para solicitar, ao menos, o uso emergencial para o começo do próximo ano. Aqui, no Butantan, já foi feita uma produção inicial correspondente a mais de 10 milhões de doses. Então aguardamos os resultados desses estudos clínicos para ter sua composição final. É uma grande esperança. A Butanvac pode resolver o problema do país no segundo semestre de 2022 e, também, ajudar países mais pobres, que são os que têm dificuldade na vacinação.

CH:Como foi desenvolvida a Butanvac? Qual o desafio da testagem diante de muitas pessoas já estarem vacinadas?

DC:O Butantan tem a sua fábrica da vacina da gripe, que é a maior do Hemisfério Sul, com capacidade de 860 milhões de doses por ano, e tem toda uma linha de pesquisa em relação à vacina da gripe. Para aproveitar essa estrutura, ano passado, começamos a tentar fazer o cultivo do coronavírus na mesma base, da inoculação do vírus no ovo, e nos associamos com outras instituições que tinham o mesmo interesse. Esse consórcio conseguiu o desenvolvimento da vacina relativamente rápido e, agora, já está na fase clínica (com humanos) tanto aqui como na Tailândia e no Vietnã. Com a evolução da vacinação aqui no Brasil, houve sim certa dificuldade nessa fase inicial de estudos, porque envolve o teste de segurança em voluntários que não tenham sido vacinados. Mas estamos superando e procurando trabalhar com pessoas de regiões que ainda não estão adiantadas na imunização. A testagem está mais avançada na Tailândia do que no Vietnã e, brevemente, devem apresentar os resultados da fase 1. Esses dados são sempre compartilhados, e isso nos ajudará na rapidez da aprovação da vacina.

CH:Podemos chamar a Butanvac de “uma vacina brasileira”? Acredita que o Brasil demorou a desenvolver uma vacina que pudesse ser 100% feita aqui?

DC:A Butanvac é totalmente nacionalizada. Não acho que uma vacina nacional tenha demorado. O desafio do desenvolvimento de vacinas é enorme e, na realidade, o que aconteceu foi uma grande velocidade no desenvolvimento das primeiras vacinas. Antes da pandemia, era impensável desenvolver uma vacina em menos de quatro a cinco anos. No começo deste ano, já havia vacinas. Foi uma velocidade muito grande. Somos capazes de fazer isso aqui no Butantan, porque temos muita experiência nesta área. Estamos ainda no meio desse esforço. Continuamos responsáveis pela fase final de produção da CoronaVac aqui no país, mas logo teremos o domínio do ciclo completo, com uma nova fábrica que entra em operação no ano que vem. Além disso, o Butantan tem mais três vacinas em desenvolvimento, em plataformas diferentes. Temos a perspectiva de ter uma vacina combinada de gripe e coronavírus para o ano que vem, entre outros projetos. Temos, também, parcerias com a própria Fiocruz no desenvolvimento de vacinas nessa área.


O Butantan tem mais três vacinas em desenvolvimento, em plataformas diferentes

CH:Pode falar um pouco mais sobre essa vacina combinada contra gripe e covid-19?

DC:Tudo indica que enquanto o vírus permanecer circulando no mundo, se é que vai deixar de circular, existe a possibilidade de ele se tornar endêmico como o vírus da gripe, que se manifesta de forma importante nos meses de outono-inverno, o que traz a necessidade da vacinação anual. Se esse cenário se confirmar, também necessitaremos de uma nova campanha vacinal contra covid-19 uma vez por ano. Estamos nos preparando para essa eventualidade e, por isso, trabalhamos a combinação da vacina da gripe com a Butanvac, já que ambas usam a mesma tecnologia. A pesquisa está em fase pré-clínica.


Trabalhamos a combinação da vacina da gripe com a Butanvac, já que ambas usam a mesma tecnologia. A pesquisa está em fase pré-clínica

CH:Tem notícias sobre como está o desenvolvimento de outras vacinas no país? As instituições têm colaborado entre si?

DC:A grande diferença para outras iniciativas, muitas que ainda de bancada, quase ‘prova de conceito’, é que o Butantan tem o ciclo completo: vai da pesquisa fundamental até a produção. E é isso que faz a diferença. Transformar uma vacina da bancada em um produto na fábrica é outro mundo, é uma complexidade muito maior, e, com exceção da Fiocruz e do Butantan, não temos outras instituições no Brasil preparadas para esse desenvolvimento. Estamos desenvolvendo mais de uma vacina com a Fiocruz, uma delas é feita na plataforma vacinal do ovo embrionado e outra baseada em técnicas de proteínas e peptídeos recombinantes. São iniciativas que ainda estão numa fase preliminar, não estão em estudos pré-clínicos em animais, mas estão caminhando.

CH:Todas as vacinas já em uso precisarão ser atualizadas?

DC:A emergência de variantes cada vez mais agressivas, muitas delas com resistência às vacinas desenvolvidas anteriormente, apontam para que haverá necessidade de atualização vacinal com as cepas que vão estar dominando, uma situação muito parecida com a da gripe. Mas esse processo de atualização da vacina não é tão complexo. Trocar o vírus original por um vírus variante ou fazer uma recombinação, no caso das vacinas recombinantes, é, relativamente, mais fácil desde que o processo de fabricação esteja desenvolvido.

CH:Por que alguns países ainda não reconheceram a CoronaVac? Como está esse processo?

DC: Hoje, além da questão da saúde pública mundial, existem também os aspectos geopolíticos. Existe uma corrida entre blocos de países, principalmente aqueles que detêm a indústria de produção de vacinas, para saber qual é a que vai dominar esse cenário, porque, seguramente, ainda necessitamos de muitos bilhões de doses de vacina. A grande contraposição é entre as multinacionais do ocidente e o outro grande produtor de vacinas, a China. A China, entre todos os países que produzem, é o que mais tem contribuído na exportação de vacinas, principalmente exportando para países de renda média e baixa. Essa contraposição se reflete na questão das aprovações pelos países. As duas grandes vacinas chinesas, feitas pela Sinopharm e pela Sinovac, foram aprovadas pela Organização Mundial da Saúde e deveriam ser aceitas por todos os países signatários da OMS. A orientação é clara nesse sentido. A União Europeia já orientou os países-membros a reconhecerem a vacina, alguns já o fizeram, e esse movimento acontecerá progressivamente.

CH:E o que pode falar sobre as críticas e ataques que a CoronaVac vem sofrendo?

DC: É uma guerra que não é científica, é política e ideológica, que foi inaugurada no ano passado pelo presidente da República, quando declarou que não iria comprar a “vachina”, a vacina da China. Essa batalha contra a vacina continua. Periodicamente, a autoridade maior do nosso país fala mal da vacina, diz que não funciona, que tem problemas etc. É uma guerra sem sentido em um país que ainda tem altos níveis de transmissão do vírus e precisamos evoluir muito rapidamente na vacinação. A vacinação tem sido o principal fator na redução dos casos de internação e óbitos. Se nós tivéssemos sido mais rápidos nessa vacinação, teríamos poupado milhares e milhares de vidas. Isso reflete a irresponsabilidade das autoridades que deveriam cuidar da saúde pública, mas ficam cuidando da política e não da aplicação da vacina no braço dos brasileiros.


É uma guerra que não é científica, é política e ideológica, que foi inaugurada no ano passado pelo presidente da República, quando declarou que não iria comprar a “vachina”

CH:Por que a vacina não está sendo indicada pelo Ministério da Saúde para a terceira dose? Ela é, de fato, menos eficaz em idosos, como apontam algumas pesquisas?

DC: Todas as vacinas, inclusive da Moderna, da Pfizer e da Astrazeneca, são menos eficazes nos idosos. Isso reflete o fenômeno que acontece com os idosos de forma geral, não só com as vacinas contra a covid, mas com qualquer vacina, até a da gripe. É a imunossenescência, o sistema imunitário das pessoas idosas vai, progressivamente, perdendo a capacidade de resposta. Nesse cenário, para todas as vacinas em uso neste momento, está sendo recomendada a terceira dose. Algumas só para essa população e outras para a população em geral. Reino Unido, Estados Unidos e Israel já estão começando a dar a terceira dose para a população em geral. E agora no Brasil tivemos essa decisão, que é mais preventiva neste momento porque os dados que vêm de fora se referem, especificamente, à introdução da variante delta, que ainda não é a mais importante aqui. A terceira dose é preventiva, no sentido de trazer um reforço imunitário para os idosos acima de 60 anos e também para os portadores de imunodeficiência. Sem dúvida alguma, a decisão é correta, mas essa discussão tem assumido o protagonismo, e as pessoas se esquecem de um fato fundamental: no Brasil, ainda existem 28 milhões de pessoas acima de 60 anos que não receberam a segunda dose, segundo dados do Ministério da Saúde. O grande desafio do momento é adiantar a segunda dose, e não tenho visto nenhum movimento forte nesse sentido. Por fim, os dados científicos disponíveis mostram que, para indivíduos acima de 60 anos, a terceira dose da CoronaVac aumenta em até 3.000% o nível de anticorpo. É uma resposta fantástica, portanto, não tem motivo para ser descaracterizada como vacina para a terceira dose.

CH:Como avalia a distribuição de vacinas no PNI?

DC: Caótica! O PNI está descaracterizado. No caso da vacinação contra o coronavírus, o controle é diretamente com a Secretaria de Combate à Covid, que é caótica. Primeiro, não definiu critérios claros lá no início; depois, demorou a comprar a vacina, demorou para decidir quais seriam os melhores esquemas. Tenta recuperar a todo momento esse caos inicial, mas não tem sido fácil. Temos quase que semanalmente relatos de falta de vacinas para a segunda dose em diversos estados. O PNI deveria coordenar todos os estados, e isso não aconteceu. Então, cada estado passa a ter seu programa de imunização. Essa falta de uma coordenação central e de uma atuação clara do Ministério da Saúde se reflete na situação de fragilidade que o país tem enfrentado desde o começo da pandemia.

CH:Quando acredita que atingiremos a imunização necessária para controlar a pandemia?

DC: Falar em imunidade coletiva ou de rebanho neste momento é prematuro. Países que achavam que estavam atingindo a imunidade coletiva, como Israel, foram surpreendidos pela reemergência da variante delta. É um tópico em avaliação se a pandemia será controlada quando vacinarmos 85%, 90% ou 95% da população. O Brasil vai atingir esses níveis de vacinação entre o final do ano e o começo do próximo. Aí teremos uma cobertura vacinal próxima de 90% ou mais. Globalmente, estamos muito longe disso. Das, mais ou menos, cinco bilhões de doses de vacina aplicadas, menos de 2% foram para países pobres. Portanto, a pandemia poderá ser relativamente controlada nos países ricos que se vacinaram, mas estará nos países pobres. E enquanto o vírus estiver circulando em algum local com alta taxa, causando a possibilidade da emergência de novas variantes, o mundo não estará controlando a pandemia. Enquanto o mundo não se vacinar de forma global, a pandemia poderá permanecer. Com a Butanvac, o Butantan quer ser um exportador de vacinas para países pobres.

CH:O brasileiro está mais aberto à vacinação do que populações de outros países, como os Estados Unidos? O que poderia ter sido feito para que esse processo fosse acelerado?

DC: Os Estados Unidos não têm um programa de vacinação como o Brasil tem. Não faz parte da cultura americana a vacinação pública e gratuita, com mais de duas dezenas de tipos de vacinas, e isso é praxe aqui no Brasil. A chegada dessa pandemia trouxe a necessidade de as pessoas perceberem o grande papel das vacinas, e isso colocou por terra os movimentos antivacina que estavam querendo nascer. O descredenciamento da importância das vacinas praticamente desapareceu no Brasil. A adesão à vacina é muito elevada na população em geral. Isso é uma consequência importante dessa catástrofe que vivemos. O processo poderia estar ainda mais acelerado se tivéssemos um Ministério da Saúde minimamente eficiente, gerido por técnicos, médicos, epidemiologistas e não por generais.


O processo poderia estar ainda mais acelerado se tivéssemos um Ministério da Saúde minimamente eficiente, gerido por técnicos, médicos, epidemiologistas e não por generais

CH:A pandemia fez a população reconhecer mais o trabalho do Butantan e da Fiocruz?

DC: Indiscutivelmente. Essas duas instituições, que recentemente foram declaradas Patrimônio da Saúde Pública Nacional, por lei, são os pilares fundamentais das ações vacinais no Brasil. São instituições que, desde a sua origem, se dedicam a fazer a promoção da saúde através do que é fundamental para a vida moderna, que são as vacinas. O Butantan virou até um pop star nacional. Recentemente, atingimos a marca de um milhão de seguidores no Instagram. As pessoas não só começaram a prestar atenção às atividades do Butantan, mas também a entender o universo da vacina e da imunologia. Esse é um resultado positivo dessa desgraça toda que nos atinge.

Por Valquíria Daher
Jornalista, Instituto Ciência Hoje

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