A cura que vem do intestino alheio

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Os primeiros resultados significativos do chamado transplante de microbiota fecal para tratar infecções recorrentes foram publicados em 2013 nos EUA. De lá pra cá, a técnica foi aprimorada e novos estudos vieram corroborar seu sucesso. O princípio é simples: repopular o intestino do paciente receptor com microrganismos benéficos de um doador saudável. Cientistas acreditam que, no futuro, doenças crônicas, sem tratamento definido e que hoje afligem milhões de pessoas poderão ser tratadas com a ingestão de uma simples cápsula, feita de microrganismos que um dia habitaram o intestino de alguém.

A história dos transplantes de órgãos humanos começou na década de 1950 com transplantes de rins e progrediu rapidamente, nas décadas seguintes, para os de fígado, coração, pâncreas e pulmões. Atualmente, a medicina já contempla o transplante de órgãos artificiais ou órgãos criados em laboratório. Com todo esse progresso, pode ser uma surpresa para o leitor que, na atualidade, um dos transplantes mais promissores para o tratamento de inúmeras doenças seja o de microbiota fecal (TMF).

À primeira vista, pode parecer estranho; afinal, quem gostaria de receber fezes de outra pessoa? E por que alguém faria tal procedimento? Resumidamente, a ideia por trás do transplante de microbiota fecal não é simplesmente a de transferir fezes de uma pessoa para outra, mas sim a de repopular o intestino do paciente receptor com os microrganismos benéficos que vivem no intestino do doador. Mas, para entender por que isso é importante, vamos falar brevemente sobre o conceito de microbiota.

Essencial para a saúde

Nós – e todos os seres vivos do planeta – vivemos em associação muito próxima a uma multidão de diferentes microrganismos: bactérias, vírus, archaeas, fungos e até os protozoários, que habitam os diferentes tecidos do corpo humano sem causar danos. São trilhões e trilhões de células microscópicas que vivem na nossa pele, boca, nos intestinos, órgãos genitais e onde mais conseguirem se instalar.

Os mais preocupados com limpeza podem se apavorar só de pensar nessa ideia, e podem até tentar se livrar desses microrganismos, com álcool gel, sabonetes que prometem eliminar 99,99% dos germes e antibióticos, mas, mesmo assim, não terão sucesso. Ainda bem! Porque esse conjunto de microrganismos, conhecido como a microbiota humana, é essencial para nossa boa saúde!

As descobertas mais recentes da microbiologia mostram que ser colonizado por uma quantidade enorme de microrganismos não é prejudicial; muito pelo contrário. Esses microrganismos ajudam na nossa digestão, produzem compostos importantes para nossa saúde (como vitaminas), estimulam nosso sistema imune e bloqueiam (por competição) o acesso de microrganismos que nos fazem mal.

São trilhões e trilhões de células microscópicas que vivem na nossa pele, boca, nos intestinos, órgãos genitais e onde mais conseguirem se instalar

Em paz com a microbiota

Nosso organismo evoluiu para conviver pacificamente com a microbiota. O que nos causa problemas não é a quantidade de microrganismos presentes, mas sua qualidade. Quando nossa microbiota sofre alterações que levam a um desequilíbrio nas populações microbianas que a compõem, dizemos que a microbiota está em ‘disbiose’. Nesses casos, podemos ser acometidos por diferentes doenças e síndromes, que podem ser leves e autolimitadas, como uma diarreia passageira, ou crônicas e graves, como a colite pseudomembranosa, a doença inflamatória intestinal, a diabetes, a asma e até doenças do sistema nervoso.

Vejam o exemplo de pacientes acometidos por infecções gastrointestinais pela bactéria Clostridioides difficile. Essa bactéria causa pavor em qualquer médico ou microbiologista que trabalha na área clínica de um hospital. O C. difficile é um patógeno oportunista, quer dizer, ele espera que nossas defesas estejam baixas para causar uma infecção.

Pessoas acometidas por essa bactéria podem sofrer de diarreia intensa, precisando ir ao banheiro 10 vezes ou mais por dia. Essa infecção também é acompanhada por fortes cólicas, enjoos, febre e perda de apetite. Alguns casos mais graves podem evoluir para um quadro conhecido como megacolon tóxico, que pode levar à ruptura da parede intestinal com infecção generalizada e até a morte do paciente.

O C. difficile pode se proteger em uma estrutura chamada esporo bacteriano – um tipo de casulo super-resistente onde a bactéria fica num estado de dormência. Esses esporos são acidentalmente ingeridos e se instalam no intestino, onde podem novamente germinar (retornar ao estado ativo). A bactéria ativa produz toxinas que causam o quadro da doença. Normalmente, a germinação e a atividade do C. difficile são controlados pela nossa própria microbiota intestinal, mas indivíduos que sofrem uma disbiose na microbiota são mais susceptíveis e acabam desenvolvendo a infecção por C. difficile.

O lado mau dos antibióticos

A disbiose intestinal muitas vezes está associada ao uso de antibióticos. Parece contraintuitivo que um antibiótico seja responsável por uma infecção, mas é fácil de entender. Quando alguém toma um antibiótico para tratar uma infecção, por exemplo, apesar do sucesso do tratamento, a medicação se espalha por todos os tecidos do corpo e, inadvertidamente, destrói parte dos microrganismos que habitam de modo pacífico o intestino, causando uma queda na população e na diversidade das espécies que ali estão. Isso abre caminho para a colonização pelo C. difficile (antes controlado pela microbiota).

É mais ou menos como uma floresta incendiada. Imagine nossa microbiota intestinal como uma floresta rica e verde, cheia de árvores, arbustos e plantas de diferentes espécies. De repente um incêndio destrói a maioria dessas plantas, exceto por uma erva daninha resistente ao fogo, que começa a crescer rapidamente, tomando todo o terreno e consumindo os nutrientes da terra. O fogo é o antibiótico, e a  erva daninha, o C. difficile.

Tratar a infecção por C. difficile com um novo antibiótico, às vezes funciona muito bem. Mas lembrem-se de que essa bactéria produz esporos resistentes! Então, em alguns casos, o novo antibiótico é inofensivo para a bactéria, o paciente desenvolve uma doença crônica e passa a ter episódios recorrentes, e cada um deles é um risco à sua vida. É aí que entra o transplante de microbiota fecal.

Transplante de microbiota fecal

Os primeiros registros escritos do uso do transplante de microbiota vêm da China, cerca de 700 anos antes da Era Cristã. Um texto chamado ‘Cinquenta e duas fórmulas de tratamento’ traz detalhes da preparação do “suco dourado”, feito a partir de fezes humanas frescas ou fermentadas e usado de forma genérica para desintoxicação. Textos posteriores, no século 4, também da China, descrevem o uso de preparações contendo fezes humanas para o tratamento de diarreias graves, constipação ou dor abdominal.

Na medicina moderna, o primeiro uso do transplante de microbiota fecal descrito foi uma tentativa feita pelo microbiologista norte-americano Stanley Falkow (1934-2018) na década de 1950. Falkow coletou amostras de fezes de pacientes que receberiam um tratamento com antibióticos em preparação para um procedimento cirúrgico. Apesar do sucesso da cirurgia, os pacientes constantemente reclamavam de sintomas gastrointestinais.

Falkow sugeriu que os antibióticos estavam destruindo a microbiota intestinal dos pacientes e pediu para que eles coletassem fezes antes de tomar os antibióticos. Ele colocou essas fezes secas em capsulas de gelatina e produziu pílulas para que os pacientes ingerissem após a recuperação da cirurgia.

O diretor do hospital descobriu o que estava acontecendo e demitiu Falkow imediatamente. Os pacientes que receberam e ingeriram essas pílulas reportaram menos problemas intestinais do que os que não as receberam; mas esses resultados nunca foram publicados.

Em 1958, um grupo de cientistas liderados pelo cirurgião norte-americano Ben Eiseman (1917-2012), na Universidade do Colorado (EUA), obteve um sucesso estrondoso tratando quatro pacientes com colite pseudomembranosa grave, usando enemas (inserção de líquidos pelo ânus) com material fecal de doadores saudáveis. Outros 16 casos foram selecionados para serem submetidos ao mesmo procedimento, com uma taxa de sucesso de 94%.

Em 2013, foram publicados os resultados do primeiro grande teste clínico randomizado do uso de transplante de microbiota fecal para tratamento de infecção recorrente por C. difficile nos EUA. A taxa de sucesso chegou a 80% em comparação aos 31% obtidos com o uso de antibiótico (vancomicina). Esses dados foram confirmados por inúmeros estudos e testes clínicos na década passada.

Nas últimas duas décadas, diversas publicações e estudos acadêmicos vêm correlacionando e até estabelecendo relações de causalidade entre a disbiose intestinal e doenças extraintestinais. Esses estudos, somados ao marcante sucesso no tratamento da infecção recorrente por C. difficile, despertaram grande interesse da comunidade médica no transplante de microbiota fecal, e novas pesquisas e testes clínicos com alvos em outras doenças estão em curso atualmente.

Tais testes estão mostrando que o transplante de microbiota fecal pode ser útil no tratamento de condições que afligem outros órgãos fora do trato gastrointestinal, como psoríase, síndrome metabólica e obesidade, arteriosclerose, esteatose hepática, encefalopatia hepática, resistência à insulina,  diabetes, esclerose múltipla, doença de Parkinson, entre outras.

Quando nossa microbiota sofre alterações que levam a um desequilíbrio nas populações microbianas que a compõem, dizemos que a microbiota está em ‘disbiose’

Como é o transplante?

O princípio do transplante de microbioma é muito simples: repopular um sítio anatômico do paciente receptor com microrganismos benéficos do microbioma de um doador saudável. Na prática, porém, essa técnica é complicada e requer muito cuidado. O primeiro – e crucial – passo para esse tipo de transplante é a seleção do doador.

Os critérios ideais de seleção de doadores ainda não estão bem estabelecidos na literatura médica e, por questões de segurança, os candidatos são submetidos a extensos e rigorosos métodos de triagem. Os doadores devem ser saudáveis, sem doenças crônicas ou agudas, e submetidos a uma avaliação similar à usada para selecionar doadores de sangue.

Além disso, os doadores passam por exames laboratoriais, como hemograma completo, bioquímica do sangue, exames de fezes e urina, e o material doado é analisado para detectar qualquer microrganismo indesejado que possa causar doença no receptor. Após essa exaustiva seleção, as taxas de elegibilidade reportadas na literatura ficam em torno de 3%.

Após a coleta das fezes do doador, esse material deve ser processado. As fezes são diluídas e homogeneizadas em soluções salinas fisiológicas, com pH controlado, e o material é filtrado em gaze para remover partículas grandes, como fibras alimentares e qualquer resto de alimento não digerido. Também é adicionado um componente crioprotetor, para evitar a formação de cristais de gelo, que destroem os microrganismos ali presentes. Logo depois, esse material é armazenado em ultracongeladores a -80°C até o momento do uso.

Para efetuar a transferência entre doador e receptor, o método mais usado atualmente é a colonoscopia. O colonoscópio é inserido no reto do paciente receptor até alcançar o início do intestino delgado e, à medida que é retirado, o material do doador é depositado no cólon. Outros métodos de transferência testados incluem sondas nasogástricas, enemas, supositórios e pílulas. Após o transplante, pacientes receptores são monitorados regularmente, e qualquer evento adverso é imediatamente reportado.

Transplante de microbiota no Brasil

No Brasil, a infecção por Clostridioides difficile é o principal causador de diarreia associada ao uso de antimicrobianos no ambiente hospitalar, e muitos pacientes sofrem de infecção recorrente; mas, infelizmente, o transplante de microbiota ainda não está estabelecido em nossos hospitais. Em 2015, um estudo de São Paulo reportou o uso do transplante de microbiota fecal para tratar 12 pacientes com infecção recorrente por C. Difficile, obtendo uma taxa de sucesso de 90%.

Um grande avanço que permitirá o estabelecimento dessa técnica no Brasil foi a criação de uma unidade de coleta de fezes no Centro de Transplante de Microbiota Fecal (FMTC), associado ao Banco de Tumores e Tecidos do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) (IAG-HC/UFMG). Esse centro foi estabelecido na última década e contou com a parceria do Laboratório de Bacteriose da Escola de Veterinária da UFMG e da Unidade de Endoscopia do IAG-HC/UFMG.

A equipe do FMTC é formada por gastroenterologistas, endoscopistas, microbiologistas, biomédicos e farmacêuticos. No futuro, doadores saudáveis poderão depositar suas fezes nesse banco, que poderá realizar todos os procedimentos de triagem e análise do material para garantir a segurança do mesmo, e assim distribuí-lo para todos os hospitais do país.

Em 2013, foram publicados os resultados do primeiro grande teste clínico randomizado do uso de transplante de microbiota fecal para tratamento de infecção recorrente por C. diffi cile nos EUA. A taxa de sucesso chegou a 80% em comparação aos 31% obtidos com o uso de antibiótico (vancomicina)

Transplante em outros sítios do corpo

Recentemente, pesquisadores israelenses publicaram os resultados de um estudo exploratório, usando o transplante de microbiota vaginal (TMV) para o tratamento de vaginose bacteriana recorrente. Essa doença é causada por um desequilíbrio (disbiose) nas populações de bactérias que habitam o canal vaginal, e os sintomas podem causar grande desconforto para a paciente, como coceira intensa, queimação e desconforto ao urinar.

Em muitos casos, a vaginose pode ser tratada, mas, em algumas mulheres, os sintomas retornam de forma recorrente. Nesse estudo, cinco mulheres foram tratadas com TMV, e quatro delas apresentaram sucesso em longo prazo, com remissão total dos sintomas. Apesar do pequeno número de pacientes, os resultados foram animadores e novos estudos clínicos estão em andamento.

Questões a considerar

Como todo procedimento médico, o transplante de microbiota não é isenta de riscos. O fator crucial no sucesso do transplante é a seleção de um doador saudável, que não transfira microrganismos que façam mal ao receptor. Esses microrganismos podem estar num estado dormente ou em pequenas quantidades e passarem despercebidos em testes de laboratório.

Outro problema é que bactérias intestinais muitas vezes carregam genes de resistência a antibióticos, que, por sua vez, podem ser transferidos para outras bactérias na vizinhança. Os testes de triagem para seleção de doadores devem levar isso em consideração, mas para detecção de todos os genes de resistência presentes em uma amostra, seria necessário sequenciar e analisar todo o DNA bacteriano das fezes do doador.

Outra questão importante é que, apesar dos avanços no estudo da microbiota humana, muitas espécies de microrganismos que habitam nosso intestino ainda permanecem pouco estudadas, e suas atividades metabólicas e interface com a saúde humana ainda são desconhecidas. Os benefícios do transplante de microbiota são promovidos pela transferência de uma comunidade saudável, ou seja, a mistura exata da quantidade de cada espécie de microrganismo ali presente. A grande questão é que nós ainda não sabemos ao certo qual é a receita dessa mistura e, para piorar, não parece existir uma receita universal que contemple toda a diversidade humana.

Para algumas doenças, o transplante funciona muito bem, independentemente da composição da comunidade microbiana das fezes do doador. Esse é o caso da infecção recorrente para C. difficile: basta que o doador seja um indivíduo saudável para que o método atinja altas taxas de remissão.

Para outras doenças, como a síndrome metabólica e a encefalopatia hepática, a composição da comunidade da microbiota do doador é um fator importante. Parece ser necessário que haja compatibilidade entre a microbiota do doador e do receptor. No futuro, técnicas avançadas de sequenciamento de DNA deverão ser utilizadas para selecionar a melhor combinação possível entre a microbiota do doador e do receptor.

Existem muitas outras questões a serem respondidas para que esse tipo de transplante se torne uma prática universal. Por exemplo, os cientistas estão começando a entender o impacto dos vírus e fungos presentes no intestino para a saúde humana, assim como as consequências dessa transferência no sistema imune do receptor. Também é necessária uma padronização dos critérios de seleção dos doadores, e até um registro universal e criação de um banco de doadores, otimizado para diferentes tipos de doenças, e que permita o acompanhamento em longo prazo da saúde do doador.

Muitos cientistas acreditam que, no futuro, doenças crônicas e sem tratamento definido e que hoje afligem milhões de pessoas poderão ser tratadas com a ingestão de uma simples cápsula, recheada de microrganismos que um dia habitaram o intestino de alguém.

“A Terra é um organismo vivo”. Essa foi uma das contribuições teóricas e filosóficas do geólogo escocês James Hutton (1726-1797) sobre a dinâmica geológica do planeta. Seu foco estava nos processos, fluxos e na transformação da matéria que modela a superfície terrestre ao longo do tempo geológico – processos e fluxos que permanecem ativos desde a formação do planeta até hoje.

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