Chernobyl: a melhor investigação nuclear dos últimos tempos

Série reconstitui causas e consequências da explosão na usina nuclear soviética e apresenta retrato realista da época e do lugar do acidente.

A série Chernobyl, dirigida por Johan Renck e produzida pela HBO/Sky, está sendo classificada como um dos maiores sucessos de público em 2019. O tema da série não poderia ser mais complexo, pois aborda não somente os eventos do acidente nuclear ocorrido em maio de 1986 em Chernobyl (na antiga União Soviética), como também reproduz e explica de forma didática e simples as causas que levaram ao desastre. E o faz sem sensacionalismo, sem preconceitos contra a energia nuclear. Mas, acima de tudo, a série mostra a coragem de certos homens e mulheres na busca e divulgação da verdade, em contraposição a um governo que não primava pela transparência.

Dividida em cinco capítulos, Chernobyl tem no seu elenco principal Jared Harris, que interpreta o químico russo Valery Legasov (1936-1988), chefe da comissão que investigou o acidente, e Stellan Skarsgård, interpretando o político ucraniano Boris Shcherbina (1919-1990), que foi chefe do Conselho de Ministros da União Soviética e supervisionou a gestão de crises soviéticas na época. Emily Watson interpreta o personagem fictício Ulana Khomyuk, que representa a comunidade científica soviética engajada em ajudar Legasov. Khomyuk ficou responsável por investigar os fatos que levaram ao acidente, enquanto Shcherbina e Legasov se dedicaram aos trabalhos de antecipar e resolver problemas e remediar as consequências do desastre em termos humanos e ambientais.

A série começa no dia do acidente, mostrando o trabalho dos operadores da usina n.º 4 do ponto de vista de um espectador, com a sequência de eventos e decisões que levou à explosão e ao posterior incêndio da unidade. Pode-se observar a reação de espanto dos operadores, que não compreendem o que está acontecendo, mas não há qualquer explicação técnica ou científica para o telespectador.

Os capítulos seguintes são dedicados a investigar o porquê do desastre e mostrar as reações do governo soviético, as perdas materiais e humanas, as consequências e resoluções. O espectador se sente participando de um filme de detetive, onde aos poucos a verdade vai sendo desvendada.

O último episódio faz a conexão com o primeiro, mostrando a manhã do dia do acidente e reconstituindo a ação de cada envolvido na tragédia. O ponto alto do capítulo é a cena magistral em que o cientista Legasov dá uma aula de física de forma clara e descomplicada, durante o julgamento dos responsáveis pela central nuclear, explicando o que levou ao acidente. Por fim, a reconstituição dos eventos antes e após o acidente, mostrada de forma didática e realista, torna a série imperdível.

 

Acertos

A série é um retrato realista da época e do lugar do acidente. É importante lembrar que a cidade de Pripyat foi construída para abrigar os trabalhadores das quatro centrais nucleares de Chernobyl e suas famílias, e representava o sonho de prosperidade ligado à indústria nuclear soviética, com bons salários, boa moradia e boa alimentação.

Sob vários aspectos, a reconstituição dos fatos foi primorosa, mostrando a burocracia vigente na União Soviética e a forma de atuar de um governo que já dava sinais claros de falência. Algumas cenas foram incríveis, como a dos biorrobôs que fizeram a limpeza no que restou do teto do reator nuclear, reproduzindo exatamente as filmagens originais feitas no local em 1986. Cenários como o da sala de operação da central nuclear ficaram perfeitos e permitiram ao espectador testemunhar cada decisão e ato dos operadores.

As filmagens foram feitas em locais como as cidades de Kiev (Ucrânia) e Chernobyl e a central nuclear RBMK de Ignalia, na Lituânia, uma usina similar à de Chernobyl. Todo esse conjunto fez com que a série passasse a sensação de realidade na maior parte do tempo.

 

 

A imprecisão

Afora o fato de a direção fazer algumas adaptações, a abordagem escolhida para as vítimas da síndrome aguda da radiação (SAR) deixa a desejar. Embora a reconstituição dos sintomas da síndrome seja realista, alguns efeitos da radiação foram exagerados. Duas cenas chamam a atenção: quando se vê crianças apresentando sinais de SAR, já que não há registro de tal ocorrência; e quando a cientista Khomyuk declara que a esposa grávida de um bombeiro recebeu radiação por ter ficado cuidando do marido no hospital e o bebê teria absorvido essa radiação, o que dá a entender que o bombeiro havia se tornado radioativo. Mas, na realidade, o bombeiro foi irradiado; portanto, não poderia ter transmitido a radiação para sua esposa.

O número total de vítimas do acidente é até hoje uma questão controversa e disputada. Após a evacuação da população, não foi feito o seguimento e controle dessas pessoas. O governo da União Soviética afirmou serem 31 vítimas fatais. Mas essas foram as mortes imediatas. Entidades de radioproteção alegam, por exemplo, que houve aumento de câncer de tireoide em crianças devido à ingestão de leite contaminado e outros produtos. Provavelmente esses números jamais serão conhecidos com exatidão.

 

Por trás da história

Dois dias após o acidente em Chenobyl, trabalhadores da Usina Nuclear de Forsmark, na Suécia, apresentaram contaminação em suas roupas. Primeiro, suspeitaram de testes nucleares, mas, com a análise da composição da contaminação, identificou-se que a fonte de radioatividade era típica de um reator nuclear soviético.

Inicialmente, houve intensa recusa da União Soviética em fornecer informações. Então, Estados Unidos e França passaram a utilizar satélites de alta resolução e puderam identificar avarias no teto do reator nuclear. Mesmo assim, o governo soviético resistiu a admitir oficialmente a real dimensão do acidente.

Estima-se que 600 mil pessoas, entre civis e militares, integraram as equipes de emergência que ajudaram a limpar e remediar a região. É difícil estabelecer o custo econômico total do desastre, mas, segundo Mikhail Gorbachev, último líder da União Soviética, o país gastou o equivalente a 18 bilhões de dólares na época (41,1 bilhões de dólares em valores atuais) no processo de confinamento e descontaminação da usina nuclear, o que praticamente levou a União Soviética à falência e foi um fator importante para sua dissolução em 1991.

Mas fica sem resposta o verdadeiro custo humano da tragédia, tanto para os cientistas que lutaram para descobrir a verdade e contá-la ao mundo, quanto para a população que sofreu as consequências do acidente.

Vale lembrar que o acidente de Chernobyl traz a receita perfeita para um desastre de grandes proporções: negligência de governo, construtores e operadores, corrupção e falta de transparência nas informações. Mas isso todos nós já sabemos. Será?

Elizabeth May Pontedeiro

Programa de Engenharia Nuclear,
Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe),
Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Comissão Nacional de Energia Nuclear (aposentada)

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