Ciência básica no centro da inovação

Departamento de Biologia Celular e Molecular
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo (USP)

Doutor em ciências pela USP
Gerente de pesquisa, desenvolvimento e inovação na indústria farmacêutica

O conhecimento gerado por pesquisas desenvolvidas sem o objetivo de produzir aplicações práticas imediatas para a sociedade é fundamental para promover o avanço tecnológico e dar origem a produtos nas mais diferentes áreas

CRÉDITO: IMAGEM ADOBESTOCK

O que nomeamos ‘ciência básica’ é a pesquisa orientada pela curiosidade, despida de qualquer interesse de gerar aplicações práticas imediatas para a sociedade. Mas é importante que essa ciência seja vista como uma força criadora de conhecimento que pode produzir inovações, impactar avanços tecnológicos e trazer benefícios para a sociedade.

Um excelente exemplo de pesquisa científica orientada pela curiosidade é o estudo do comportamento coletivo de pássaros que voam em bandos. Segundo estudiosos, “o principal objetivo da interação entre os indivíduos em grandes agregações é manter a coesão do grupo, uma necessidade biológica moldada pela pressão evolutiva para a sobrevivência”. Assim, a questão central é entender que tipo de interação garante essa forte coesão do bando. Um dos estudos em que essa questão foi colocada demonstrou que cada pássaro interage com um número fixo de vizinhos (entre seis e sete), contrariando a ideia de que a interação ocorreria com todos os indivíduos dentro de uma distância fixa. Essa descoberta revelou que a distância topológica é mais relevante para a organização do bando. 

Para além do fato de que comportamento coletivo é um fenômeno natural fascinante, é difícil imaginar alguma aplicação para esse conhecimento, ou que algum benefício para a sociedade viesse de um estudo como esse. No entanto, ao ler uma entrevista de Frank Allgöwer (então vice-presidente da Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa – DFG) ao jornalista Fabricio Marques na revista Pesquisa Fapesp, aprendemos sobre a importância fundamental desse estudo para o desenvolvimento da robótica de enxame. A partir dele, demonstrou-se que minirobôs atuando de maneira interligada, como uma agregação (enxame), são muito mais eficientes do que robôs maiores, que atuam de forma independente, como máquina única.

Entre inúmeros outros, um exemplo interessante de pesquisa básica que, de maneira não planejada, pode vir a representar um enorme avanço para a saúde humana é o estudo do sistema de secreção de Toxoplasma gondii. T. gondii é um organismo unicelular que causa a toxoplasmose, doença com sequelas muito graves associadas à sua forma congênita, ocular ou enquanto infecção oportunista em indivíduos imunodeprimidos. À parte do interesse médico, há décadas a complexidade do sistema de secreção desse parasito, responsável por sua mobilidade e pela invasão celular, tem cativado a atenção de pesquisadores da área. Hoje sabemos que o sistema de secreção, orquestrado por três organelas distintas, produz proteínas específicas para deslizar no meio extracelular, ancorar-se ou invadir células hospedeiras. Esses estudos melhoraram a compreensão de como T. gondii, empregando proteínas secretadas, atravessa a barreira hematoencefálica (que regula a passagem de moléculas para o sistema nervoso central) e atinge os neurônios.

Nesse caso, também é fascinante ver como a conexão de conhecimentos em diferentes domínios gera inovação de aplicação prática. Sem qualquer relação com o T. gondii, doenças que acometem o sistema nervoso central (SNC) são de interesse de pesquisadores que têm como grande desafio entregar moléculas terapêuticas, como proteínas, através da barreira de proteção do SNC. Por sua natureza, a barreira hematoencefálica dificulta a chegada ao SNC de proteínas terapêuticas destinadas ao tratamento de doenças causadas pelo mau funcionamento dos neurônios. Recentemente, pesquisadores especializados no sistema de secreção do T. gondii uniram-se a especialistas em tratamento de doenças do SNC para modificar o sistema de secreção do parasito, permitindo o transporte de proteínas terapêuticas para os neurônios por meio da fusão com proteínas do próprio parasito. Essa abordagem teve sucesso na entrega da molécula terapêutica. Os resultados demonstram que o sistema desenvolvido é promissor, apesar de ainda apresentar limitações, e que futuras melhorias podem ampliar suas aplicações.

A ciência básica de qualidade é fundamental para o avanço do conhecimento e seus resultados são necessários para promover a inovação e o desenvolvimento tecnológico

Portanto, a ciência básica de qualidade é fundamental para o avanço do conhecimento e seus resultados são necessários para promover a inovação e o desenvolvimento tecnológico. Porém, o caminho para o conhecimento sobre o voo dos pássaros ou o sistema secretório de parasitos se tornar, respectivamente, um sistema de navegação robótica e um sistema de entrega de drogas é complexo e depende da interação sistêmica entre diferentes setores, como a academia, o governo e a indústria – a chamada hélice tripla –, além de empresas inovadoras (startups), agências de financiamento, incubadoras, aceleradoras, prestadores de serviços, investidores privados e órgãos regulatórios.

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