Infecção humana controlada: o impulso ao teste de vacinas

A realização de estudos em que voluntários são infectados propositalmente com um agente infeccioso selecionado e mantido em laboratório pode acelerar e reduzir os custos de testes de candidatos vacinais e a solução de problemas de saúde no Brasil

A descoberta das vacinas e o seu desenvolvimento foram, sem dúvida, importantes conquistas para a saúde, por aumentar a longevidade e a capacidade produtiva dos povos. Um exemplo atual foi o da vacina contra a covid-19 e seus efeitos positivos sobre a mortalidade no mundo. Embora as vacinas já estejam disponíveis para um grande número de doenças, há demanda por vacinas para várias outras infecções, como as causadas por vermes (esquistossomose, ancilostomíase, filariose) e pelo vírus zika, a doença de Chagas e a leishmaniose. Há ainda necessidade de aperfeiçoamento de algumas vacinas já existentes, como as da dengue, malária e tuberculose.

O desenvolvimento de vacinas é um processo longo e complexo, que se inicia com a seleção de antígenos vacinais (moléculas que irão desencadear a resposta imune), testes em modelos animais e, finalmente, estudos em humanos (chamados clínicos). Com custo extremamente elevado, tanto em termos de capital humano quanto financeiro, esses estudos clínicos impactam o valor final das vacinas para o público. Eles caracterizam-se por envolver três fases longas, sendo que apenas na última fase é possível determinar se o candidato vacinal protege contra a infecção.

Os estudos de infecção humana controlada (EIHC) são capazes de acelerar o desenvolvimento de vacinas, pois possibilitam que os testes de eficácia ocorram ainda na primeira fase, além de serem menos onerosos e envolverem um número bem mais reduzido de participantes. Nesses estudos, o voluntário é infectado propositadamente com o agente infeccioso, que é cuidadosamente selecionado e mantido em laboratório em condições controladas. Os participantes são selecionados e adequadamente informados sobre a doença, a necessidade de uma vacina para aquele agente infeccioso, os procedimentos a que serão submetidos, os riscos e benefícios, para tomar uma decisão autônoma de participar ou não do estudo.

Nas últimas décadas, cientistas têm desenvolvido pesquisas para acelerar os testes de candidatos vacinais utilizando EIHC. As vacinas para malária, cólera, gripe, rotavírus, diarreia (Escherichia coli), pneumococos, dentre outras, tiveram seu desenvolvimento otimizado e acelerado pelo uso racional e eficiente dessa tecnologia e hoje contribuem de forma positiva para a saúde pública mundial.

Infelizmente, os estudos de infecção humana controlada para acelerar o desenvolvimento de vacinas profiláticas são, em sua maioria, feitos em países desenvolvidos. Como consequência, os países em desenvolvimento permanecem dependentes dessas tecnologias internacionais. Raramente, os EIHC são realizados em países em desenvolvimento como o Brasil. Isso se deve, em grande parte, à desinformação e ao desconhecimento sobre os seus benefícios.

Nesse ponto, é preciso engajar diferentes públicos nos estudos – pesquisadores, comitês de ética, não especialistas e outras partes interessadas –, para promover uma melhor compreensão do que são EIHC, favorecendo a discussão sobre sua implementação e sobre estarem de acordo com os princípios éticos e garantindo a participação ativa nas tomadas de decisão relacionadas a esses estudos.

É importante que países em desenvolvimento criem meios de acelerar a busca por soluções para seus próprios problemas, utilizando todas as tecnologias disponíveis, como os EIHC. O Brasil e outros países, como os da África, se beneficiariam muito das vacinas resultantes dessa tecnologia, porque ainda sofrem intensamente com os danos de infecções como malária, bem como com o atraso no desenvolvimento cognitivo de crianças infectadas com verminoses, como a ancilostomíase.

A Resolução n.º 466 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que orienta a pesquisa com seres humanos, é muito clara com relação a esse tipo de estudo. Ela regulamenta as pesquisas para que sejam conduzidas de forma ética e humana. Entretanto, tanto especialistas quanto não especialistas têm dúvidas, preocupações e resistência em relação a estudos com seres humanos e tomam suas decisões sem antes terem esclarecimento adequado sobre o tema.

Portanto, é necessário e urgente ampliar a discussão sobre EIHC no Brasil, se existe a intenção de combater as doenças e a pobreza que tanto afetam a nossa sociedade. O uso de infecção humana controlada certamente levaria o Brasil a um novo patamar de desenvolvimento de vacinas e contribuiria para acelerar a solução de problemas de saúde nacionais de forma segura e econômica.

Rodrigo Correa Oliveira
Vice-presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas,
Fundação Oswaldo Cruz

Helton Santiago
Instituto de Ciências Biológicas,
Universidade Federal de Minas Gerais

Maria Flavia Gazzinelli
Escola de Enfermagem,
Universidade Federal de Minas Gerais

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