Ao final da Segunda Guerra Mundial, dentre os países que ajudaram a derrotar o nazifascismo, foram os Estados Unidos que tiveram a infraestrutura acadêmica e industrial mais preservada. Além disso, o país expôs ao mundo sua hegemonia política, quando encerrou a guerra com a explosão da bomba atômica sobre duas cidades japonesas. Finalmente, foi para lá que migrou a maior parte dos cientistas e intelectuais europeus que, durante e depois da guerra, conseguiram escapar da Europa.
Foi, portanto, esse país que teve as melhores condições de produzir uma explicação sobre as relações entre ciência e tecnologia, em que esta última era sempre o ponto de chegada de um processo que tinha início em uma pesquisa científica. Essa explicação não resistiu por muito tempo à prova das evidências empíricas, e atualmente as relações entre o conhecimento científico e as inovações – como são chamados hoje os novos produtos e processos que embutem tecnologias e que chegam ao mercado – são bem mais complexas.
Mas o fato é que, desde o nascimento da ciência moderna, no século 17, a maior parte das atividades científicas esteve, direta ou indiretamente, voltada para a solução de problemas concretos. E, dando um grande salto no tempo, desde o final do século passado, quando foi lançado o projeto Genoma Humano, temos testemunhado algo que, no terreno da biologia, pode ser denominada uma nova revolução científica – a revolução genômica.
Essa revolução remeteu a compreensão dos fenômenos biológicos às moléculas que compõem as células dos organismos vivos e, assim, abriu imensas novas possibilidades, não só de compreender a sua organização, mas também de intervir nela, com o objetivo de preservar e melhorar a vida dos indivíduos. No meu ponto de vista, foram essas novas possibilidades que colocaram em um novo patamar a pesquisa científica no campo da biomedicina.
Nesse contexto, criou-se o termo pesquisa translacional no início da década de 1990, no Instituto Nacional de Câncer nos Estados Unidos. Foi imaginado como um novo conceito, capaz de acelerar a troca entre ciência básica e clínica, deslocando os achados de pesquisa básica do laboratório para ambientes envolvendo pacientes e populações. Em 2003, os National Institutes of Health (NIH), a agência norte-americana de fomento à pesquisa em saúde, abraçou a ideia. Daí, ela ganhou o mundo e disseminou o atraente mote: ‘da bancada para a beira do leito’.
Até aqui examinei o como. Agora importa explorar o porquê. A rigor, a ideia de um tipo especial de pesquisa chamada ‘translacional’ não carrega qualquer nova dimensão epistemológica. Também não traz nova abordagem metodológica ao fazer científico. Trocas entre ciência básica e clínica ou ‘da bancada para a beira do leito’ são disseminadas e bastante antigas. Então, vale perguntar por que granjeou tanto prestígio uma nova denominação que, a rigor, é apenas um novo rótulo para uma velha prática, ou uma nova forma de marketing científico.
Acredito que a resposta esteja mais no lado da ‘beira do leito’ do que ‘da bancada’. Atualmente, a beira do leito é cada vez mais tecnológica e a tecnologia campeã são os medicamentos, produzidos pelo segundo segmento industrial mais importante do mundo em termos de pesquisa e desenvolvimento (o primeiro é o das tecnologias de informação e comunicação).
E são os Estados Unidos o país onde a indústria farmacêutica é mais desenvolvida (cinco das 10 maiores empresas globais), detém o maior mercado (cerca de 35% do mercado mundial) e produz mais receita financeira (cerca de 40% em termos globais). Além disso, é uma indústria que, desde o final do século 20, vive uma mudança radical em suas tecnologias produtivas.
A mais que centenária rota tecnológica usada na produção de medicamentos era a síntese química (síntese de moléculas relativamente pequenas, primeiro extraídas de produtos naturais e, mais tarde, de moléculas inventadas). No final do século passado, essa rota veio perdendo terreno para uma nova rota, não mais química, mas biotecnológica, baseada em moléculas grandes, produzidas por manipulação genética de microrganismos ou células e que se descobriu serem bem mais eficazes no enfrentamento de muitas doenças crônicas. E os alvos biológicos e mecanismos capazes de reagir a essas moléculas vinham dos laboratórios de pesquisa, atores principais da revolução genômica.
No meu ponto de vista, aí está o principal determinante do lançamento e do sucesso da pesquisa translacional. Um virtuoso reforço nas relações entre a pesquisa biomédica e a indústria farmacêutica norte-americana. Pode haver outros determinantes e pode-se também achar que esse que estou propondo não seja o principal. Mas eu gostaria de ser convencido.
Reinaldo Guimarães
Núcleo de Bioética e Ética Aplicada,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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