Varíola humana: erradicação e lições

Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz

O conhecimento acumulado ao longo da bem-sucedida história de combate à varíola contribui para o desenvolvimento de vacinas para outras doenças da mesma família, como a varíola do macaco, que vem assustando a humanidade recentemente

Uma das realizações mais notáveis da imunologia e da medicina modernas foi a erradicação da varíola. Desde a criação da vacina contra a doença, pelo médico franco-inglês Edward Jenner (1749-1823), até o esforço de erradicação liderado pelo médico norte-americano Donald Henderson (1928-2016), essa história nos trouxe muitos avanços e lições, incluindo a definição das características da varíola, o desenvolvimento da primeira vacina e o uso dessa ferramenta para prevenir outras doenças infecciosas intratáveis.

Dentre os diversos vírus do gênero Orthopoxvirus, só o da varíola, o Vaccinia e o da varíola do macaco podem infectar seres humanos. Enquanto o vírus da varíola causa uma doença sistêmica, o Vaccinia se replica apenas nos tecidos locais, provocando uma infecção atenuada e localizada. O vírus da varíola do macaco, que vem assustando a humanidade recentemente, é menos agressivo que o da varíola humana. Ele foi identificado pela primeira vez em macacos em 1958. O primeiro caso humano só foi confirmado em 1970, quando o vírus foi isolado de uma criança com suspeita de varíola na República Democrática do Congo.

O contato com o vírus Vaccinia confere proteção contra o vírus da varíola humana (imunidade cruzada), mas não se sabe se o mesmo acontece em relação ao vírus da varíola do macaco. Acredita-se que uma imunidade cruzada ao vírus da varíola do macaco tenha sido previamente alcançada com a vacinação contra a varíola. No entanto, a erradicação da doença e a subsequente falta de esforços para a continuidade da vacinação abriram caminho para que a varíola do macaco ganhasse relevância clínica. Além disso, como a maioria dos casos dessa varíola ocorriam na África rural, a suposta subnotificação pode ter levado a uma subestimação da ameaça potencial desse patógeno. Hoje a vigilância epidemiológica mundial está mais alerta e muitos casos de varíola do macaco estão sendo detectados em diversos países, incluindo Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos e Brasil.

O fato de o vírus Vaccinia ter capacidade atenuada em relação ao da varíola, mas ainda ser competente para se replicar, faz com que ele funcione de modo eficaz como vacina, ativando todas as células e moléculas tanto da imunidade inata quanto da adaptativa (gerada pelo contato com o vírus). Existe a esperança de que o vírus Vaccinia possa ser empregado também como vetor de transporte de genes de outros microrganismos patogênicos para uso vacinal. Para isso, esse vírus precisa ser modificado por engenharia genética. Outros vírus, como o da varíola aviária, também estão sendo avaliados para integrar esse grupo de vetores.

Vacinas compostas por vírus capazes de se replicar nos organismos são mais eficientes do que as vacinas incompetentes para replicação, pois são capazes de estabelecer uma infecção local autolimitada e ativar tanto a imunidade inata quanto a adaptativa. Além disso, uma vacina replicante pode ser administrada em doses menores do que uma vacina não competente para replicação, um ponto importante quando se avalia um programa para vacinação de milhões de pessoas em todo o mundo.

Portanto, o vírus Vaccinia representa um protótipo de vacinas ideais. Mas é preciso identificar os mecanismos que o diferem do vírus da varíola em termos de patogenicidade. Acredita-se que o vírus da varíola possua genes que codificam moléculas que burlam nossa primeira linha de defesa, a imunidade inata, permitindo a rápida replicação do vírus e sua disseminação pelo organismo antes de ocorrer a resposta imune adaptativa. Em comparação, o vírus Vaccinia não pode escapar efetivamente da resposta imune inata, o que contribui para que a infecção permaneça localizada.

Hoje já existem algumas vacinas que empregam o vírus Vaccinia modificado, como o Vírus Vaccínia Ankara (MAV), que possui licença para uso no Canadá e nos Estados Unidos. Pesquisas com seres humanos mostraram que o MAV tem forte resposta imune humoral (produção de anticorpos). Mas ainda não se sabe a eficácia específica dessas vacinas contra a varíola do macaco. É por isso que a Organização Mundial da Saúde insistiu para que os países que implantaram a vacina contra a varíola do macaco estudassem como o imunizante funciona e a melhor forma de usá-lo. Se quisermos conter esses surtos de varíola do macaco e aprender algo sobre a eficácia dessas vacinas, terá que ser um esforço concentrado e com protocolos organizados.

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