“Não é exagero dizer que nós estamos em um genocídio em curso”. A declaração, dada em julho de 2020, é de Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). De fato, 2020 recolocou nas manchetes e no debate público a expressão ‘genocídio indígena’. O termo apareceu no relatório que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Instituto Socioambiental (ISA) realizaram, com revisão da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apontando que os Yanomami, ameaçados pelo garimpo ilegal e pela covid-19, correm um “risco de genocídio com a cumplicidade do Estado brasileiro”.
Elevando o tom, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 que a APIB apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 1º de julho, apontou que a irresponsabilidade sanitária se aliou ao racismo institucional contra os povos indígenas, denunciando, não um risco, mas um fato: “está em curso um genocídio”!
As denúncias não se limitam ao descaso na prevenção e controle da covid-19 entre os indígenas. Em novembro do ano passado, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e a Comissão Arns apresentaram informe ao Tribunal Penal Internacional (TPI), acusando o presidente Jair Bolsonaro de “crimes contra a humanidade” e “incitação ao genocídio contra os povos indígenas do Brasil”, incluindo na denúncia a redução da fiscalização e omissão no que diz respeito aos crimes ambientais na Amazônia. A resposta veio pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que classificou a denúncia como um absurdo: “genocídio fez Hitler com os judeus, os turcos com os armênios, fez Ruanda nos anos 1990, fez o Stalin na União Soviética”.
O conceito de genocídio foi cunhado pelo jurista polonês Raphael Lemkin (1900-1959), que publicou, em 1944, o livro Axis Rule in Occupied Europe (O regime do Eixo na Europa ocupada), no qual o genocídio é apresentado como uma técnica da ocupação nazista. O termo é definido como um plano coordenado visando à destruição dos alicerces essenciais dos grupos nacionais ou étnicos, para aniquilá-los física e/ou culturalmente. Ou seja, a um genocídio físico ele associava um genocídio cultural – tendo sido o precursor do conceito de etnocídio, que seria melhor definido em 1970 pelo antropólogo francês Robert Jaulin (1928-1996).
Para a conceituação de Lemkin sobre o genocídio, foi importante a reflexão sobre o colonialismo nas Américas, ou seja, o extermínio físico e cultural dos povos indígenas está associado à própria gênese do termo.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a concepção de genocídio de Lemkin foi parcialmente incorporada à Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, elaborada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948 – perdendo-se, entretanto, a dimensão do genocídio cultural. O genocídio é definido como “atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, nas seguintes ações: “(a) assassinato de membros do grupo; (b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; (d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; (e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo”.
O Brasil aprovou o texto da convenção em 1951, promulgando-o em 1952, e essa mesma definição foi estabelecida no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 1998.
As definições presentes na Convenção de 1948 apresentam algumas limitações, além da exclusão do genocídio cultural. Uma delas é que apenas pessoas físicas respondem pelo crime de genocídio, não Estados, pessoalizando um processo essencialmente coletivo. Além disso, a exigência de intencionalidade para a condenação por esse crime traz vários questionamentos.
Quando a exploração econômica leva ao contato forçado com um grupo indígena, ocasionando mortes por conflitos ou contaminação, pode-se alegar que não houve intenção de destruição do grupo, mas tampouco houve cuidado para impedi-la, assumindo-se o seu risco. Tal concepção também limita que agentes públicos sejam acusados de genocídio por omissão ou conivência.
Outra limitação não vem propriamente do conteúdo legal do paradigma estabelecido em 1948, mas de como as gerações o entenderam. Como afirma o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, em seu livro Genocídio indígena no Brasil, uma mudança de paradigma, de 2017, a associação do genocídio ao nazismo/Holocausto vinculou o seu conteúdo a mortes em massa, ação de Estado e motivação ideológica. Isso restringe em particular o entendimento dos casos de genocídio indígena, quando não há mortes em massa (as vítimas constituindo número ‘relativamente pequeno’), quando o extermínio não se origina no aparelho do Estado ou quando a motivação principal não é ideológica, mas econômica, por exemplo.
Em entrevista de fevereiro de 1970, o então ministro do Interior José Costa Cavalcanti (1918-1991) declarou: “recuso formalmente a acusação de que o governo ou o povo brasileiro tenham em qualquer época praticado o genocídio contra os nossos índios”. Entretanto, eram fartas as denúncias nacionais e internacionais de genocídio indígena durante a ditadura, relacionando-o à construção de estradas, como a Transamazônica, e à associação do regime com grandes empreendimentos mineradores, agropecuários e madeireiros. Ameaçava-se não apenas a existência material de milhares de indígenas, mas a preservação de suas formas tradicionais de vida.
O padre Antônio Iasi (1920-2015), vinculado ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), na CPI do Índio de 1977, acusou de genocídio contra o povo Nambiquara a Fazenda Vale do Guaporé, no Mato Grosso. Ações de agropecuárias, no Vale do Guaporé, envolviam queimadas e utilização do herbicida Tordon (agente laranja), devastando o meio ambiente e colocando em risco a própria vida dos indígenas. Em 1970, já havia surgido um termo que qualifica esses tipos de ação, em um contexto que envolvia também o uso do Tordon: ecocídio.
Segundo o advogado Flávio de Leão Pereira, no artigo ‘Desenvolvimentismo e ecocídio’, de 2018, esse termo passou a ser usado por acadêmicos a partir de 1970, em referência à guerra herbicida dos Estados Unidos no Vietnã, aliando à destruição ambiental “uma possível catástrofe para a saúde”. O conceito abarca da destruição de um ecossistema decorrente da ação humana às suas consequências para os povos que habitam esse território, desenvolvendo com ele relações de subsistência, identidade e pertencimento cultural.
Dos anos 1970 aos 1990, discutiu-se o estabelecimento do ecocídio enquanto crime internacional no âmbito da ONU, inclusive a sua incorporação ao Estatuto de Roma. Uma das questões polêmicas que emergiram girava justamente em torno da intencionalidade, já que muitos defendiam que o ecocídio poderia ser decorrente, não de uma ação intencional, mas da exploração econômica. A despeito das tentativas, o crime acabou não sendo tipificado até hoje, mas ainda existem muitas iniciativas no sentido de corrigir isso, em grande medida porque, como lembra Flávio de Leão Pereira, o ecocídio é uma dimensão fundamental do genocídio e etnocídio indígenas.
Essa associação já era evidente nos anos 1970. A política do governo militar para a Amazônia a concebia como área estratégica para a segurança e o desenvolvimento nacional, daí os inúmeros projetos de colonização e exploração econômica da região, e lemas como “integrar para não entregar”. Os números da destruição podem ser conjecturados a partir dos primeiros dados anuais de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 1988, quando estimou-se devastação de assustadores 21 mil km², como lembra o jornalista Rubens Valente em coluna de setembro deste ano no portal UOL.
A extensão do extermínio de indígenas associado ao desenvolvimentismo predatório é dificílima de avaliar. O relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma ser possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos com responsabilidade do Estado entre 1946 e 1988, além de muitos outros casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas.
Depois da redemocratização, os números do desmatamento caíram significativamente, mas a ação do Estado continuou ameaçando o meio ambiente e a sobrevivência física e simbólica dos povos indígenas. Exemplo disso é a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, iniciada pelo ex-presidente Lula e inaugurada no governo Dilma Rousseff. Seu legado de impactos ambientais, sociais e culturais para ribeirinhos e nove povos indígenas motivou o Ministério Público Federal a qualificar, em ação de 2015, a atuação do Estado brasileiro e da Norte Energia S/A como “ação etnocida”.
De acordo com o Inpe, o Pantanal teve em 2020 o pior outubro da história, com 2.825 focos de fogo, enquanto a Amazônia ultrapassou, entre janeiro e outubro, os números de todo o ano de 2019, registrando 89.604 focos. Já o desmatamento nesse bioma aumentou 34% entre agosto de 2018 e julho de 2019, e mais 9,5% no mesmo intervalo entre 2019 e 2020, alcançando a maior área devastada desde 2008: 11.088 km².
As consequências para os povos indígenas são evidentes. Segundo o sítio Repórter Brasil, cerca de 60% das terras indígenas já foram atingidas por mais de 115 mil focos de incêndio até 29 de outubro deste ano. Watatakalu Yawalapiti, do Parque do Xingu, alertou: “perdemos muitas lideranças, nosso povo tá morrendo [de covid-19] e, para piorar a situação, nossa casa, que é nossa farmácia e nosso supermercado, está pegando fogo”.
Há muitas evidências associando as queimadas à abertura de pastos. Enquanto isso, o governo vem promovendo um desmonte ambiental, com Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente, que paralisou o Fundo Amazônia, reduziu a aplicação de multas, não executou todo o orçamento para fiscalização e prevenção a incêndios e exonerou, ou substituiu por militares, servidores experientes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Assim, apesar de Salles ter proposto, em reunião interministerial de abril deste ano, aproveitar a pandemia para “passar a boiada” (flexibilizando regras ambientais), ela já o estava fazendo. Esse cenário de ecocídio está associado à principal dimensão do genocídio indígena: as invasões de terras. Segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com dados de 2019, as invasões às terras indígenas aumentaram 134% entre 2018 e 2019.
Atualmente, tramitam vários projetos visando à exploração de terras indígenas, como o PL 191/2020, do próprio presidente, que propõe regulamentar a mineração e construção de hidrelétricas nesses territórios. Entretanto, talvez a principal ameaça aos direitos territoriais dos índios seja a tese jurídica do ‘Marco temporal’, que entende que esses povos só possuem direito à demarcação das terras que estivessem ocupando na data da promulgação da Constituição de 1988. Se o judiciário aceitar essa tese, serão negligenciados toda a violência e os processos de desterritorialização que os povos indígenas sofreram ao longo de séculos, notadamente durante a ditadura militar, bem como o direito originário ao território, reconhecido pela mesma Constituição.
O Estado brasileiro é, historicamente, genocida na sua relação com os povos indígenas, processo inextrincável de uma ação ecocida. Se as limitações jurídicas do termo genocídio e sua associação ao Holocausto muitas vezes inibem essa constatação, é importante deixar evidente que, para além de termo jurídico, genocídio é um conceito histórico e sociológico, que analisa processos de longa duração e transborda acusações sobre indivíduos específicos. É inegável que esse Estado promove, pela ação direta ou pela conivência e omissão, a destruição física e cultural dos povos indígenas, em uma associação direta com a exploração econômica e fundiária.
O líder indígena Ailton Krenak, em entrevista ao antropólogo Pedro Cesarino em 2016, afirmou que o “branco” (não índio) quer imprimir sua marca sobre tudo, criando uma única paisagem: “Ora, se virar única, então não é paisagem. A natureza da paisagem é a pluralidade, a diversidade, é a sucessão. […] Quando nós acabamos com todas as paisagens da terra, nós entramos em coma”.
Com uma vida não predatória ao meio ambiente, os povos originários são fundamentais na preservação da biodiversidade e do equilíbrio climático do planeta. Na Amazônia, por exemplo, o desmatamento em terras indígenas demarcadas é 66% menor em comparação às áreas não demarcadas, como mostra estudo recente publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
O binômio genocídio-ecocídio empreendido pelo Estado brasileiro é decorrente justamente da sua incapacidade de aceitar a pluralidade, de conviver com corpos e paisagens que não existem para produzir em seu nome. Em 1976, o então ministro do Interior Maurício Rangel Reis (1922-1986) afirmou que “os índios não podem impedir a passagem do progresso”. No ano passado, o presidente Jair Bolsonaro declarou que o Cimi “incita os índios contra o progresso”.
Mas esse progresso, construído sobre a destruição de paisagens e corpos, é progresso para quem? À custa de quanto sangue indígena mais? Quanto tempo até, finalmente, nos darmos conta da iminência do coma?
João Gabriel da Silva Ascenso
Colégio de Aplicação
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rayane Barreto de Araújo
Programa de Pós-graduação em História
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
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