O homem de Piltdown, uma ‘fake news’ arqueológica

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

A descoberta do suposto elo perdido entre os humanos modernos e ancestrais primatas surpreendeu a comunidade científica no início do século 20, mas não passava de uma grande fraude

CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

A reunião da Sociedade Geológica de Londres, no Reino Unido, de dezembro de 1912, anunciou uma descoberta que abalaria o mundo da paleoantropologia (a subárea da arqueologia que estuda a evolução humana): um registro fóssil do elo perdido entre o homem moderno e o nosso ancestral primata teria sido encontrado em solo inglês. A espécie ficou conhecida como Eoanthropus dawsoni ou, mais popularmente, homem de Piltdown, por ter sido descoberta perto de Piltdown, em Sussex, uma área rica em rochas da era do Pleistoceno. A notícia deixou grande parte dos cientistas britânicos em polvorosa, mas, logo, dúvidas começaram a surgir, e o que parecia um achado revolucionário se tornou um dos maiores engodos da história da ciência moderna. 

Essa grande armação foi criada por um arqueólogo amador que desejava a todo custo ser reconhecido no meio científico: Charles Dawson (1864 – 1916), um advogado e colecionador de fósseis e artefatos pré-históricos, que vivia na região de Sussex. Dawson nunca exerceu realmente a advocacia, e sua paixão pela arqueologia o levou a inúmeras descobertas. Aos 31 anos, já havia sido nomeado “colecionador honorário” do Museu Britânico e membro da Sociedade Geológica e da Sociedade de Antiquários. Mas ele sonhava em ser nomeado para a Sociedade Real de Londres, a mais prestigiosa instituição científica do país.

A história dessa fake news do século 20 começa mais ou menos assim: em 1908, trabalhadores de um sítio de construção do vilarejo de Piltdown encontraram um fragmento de um crânio. Imediatamente chamaram Dawson, que além de arqueólogo, era o advogado sênior do condado de Sussex e, frequentemente, responsável por supervisionar obras na região. Ele reconheceu que era um crânio humano e percebeu que aquilo poderia ser um achado significativo. Ele chamou esse sítio arqueológico de Piltdown I, mas não encontrou outras peças no local. Em 1911, caminhando por uma área próxima, ele identificou outro pedaço de um crânio humano e acreditou se tratar de fragmento do espécime anterior.

Ancestral à inglesa

Empolgado, Dawson escreveu, em fevereiro de 1912, uma carta a seu amigo Smith Woodward (1864-1944), um importante geólogo do Museu de História Natural de Londres, contando sobre seus achados. A partir daí, uma certa euforia parece ter tomado conta dos envolvidos. Afinal, se essa descoberta fosse confirmada, seriam as primeiras evidências de um ancestral humano encontrado na Inglaterra. 

Nesse ponto, nossa história recebe um tempero extra. Anos antes, cientistas alemães haviam encontrado os ossos do Homo heidelbergensis, uma espécie de hominídeo desaparecido há cerca de 500 mil anos. O mundo estava à beira da Primeira Guerra Mundial, e a disputa entre Alemanha e Inglaterra transbordava para além dos territórios e colônias, chegando até o campo da ciência. Um achado como esse, em solo britânico, despertava um sentimento nacionalista de orgulho na população. 

Woodward e Dawson montaram uma expedição para explorar a área, e convidaram um jovem paleontologista, o francês Pierre de Teilhard de Chardin (1881 – 1955), dono de boa reputação nas altas esferas da arqueologia e paleontologia. Entre junho e setembro, eles vasculharam a região de Piltdown e recuperaram sete fragmentos adicionais do crânio, além de uma mandíbula, dentes e ferramentas primitivas. A equipe também escavou muitos ossos e dentes de animais, indicando que o suposto ancestral humano praticava a caça. Os ossos de animais eram, em sua maioria, da família dos elefantes e castores, porém tipos já extintos há mais de 500 mil anos, fato que ajudou a indicar a idade do sítio arqueológico. 

Felizes com sua descoberta, Dawson e Woodward convocaram uma reunião da Sociedade Geológica Britânica para dezembro de 1912, onde apresentaram uma reconstrução do crânio do que seria o elo perdido entre macacos e humanos, Eoanthropus dawsoni. A maioria dos cientistas britânicos acolheu a ideia entusiasticamente, assim como a imprensa. Apesar do alvoroço, dúvidas começaram a surgir na comunidade científica na própria Inglaterra e, principalmente, na Alemanha e nos Estados Unidos.

RECONSTRUÇÃO FEITA EM 1913 DO “EOANTHROPUS DAWSONI”_CRÉDITO:WIKIMEDIA COMMONS

Dawson e Woodward convocaram uma reunião da Sociedade Geológica Britânica para dezembro de 1912, onde apresentaram uma reconstrução do crânio do que seria o elo perdido entre macacos e humanos, Eoanthropus dawsoni

Símio ou humano?

A primeira voz a se levantar foi a do britânico Arthur Keith (1866 – 1955), da Sociedade Real de Cirurgiões. Ele percebeu que a mandíbula tinha características mais parecidas com as de um símio do que de um humano. Outros autores apoiaram essa observação, e muitos acreditavam que o crânio do homem de Piltdown era, na verdade, uma mistura de ossos de duas espécies diferentes. Em 1913, Chardin descobriu um dente canino que encaixava perfeitamente na mandíbula. Dawson e Woodard comemoraram o achado, mas esse dente também parecia ter pertencido a um macaco. Arthur Keith argumentou que um canino desse tipo teria impedido o tipo de desgaste que foi observado nos molares, por dificultar a mastigação lateral, típica dos humanos. 

Um grande embate entre cientistas prosseguiu nos anos seguintes à descoberta, mas a maioria dos especialistas percebeu que o achado se tratava de um engano, ou pior… uma fraude! Dawson faleceu repentinamente em 1916, mas Woodard permaneceu um ferrenho defensor do homem de Piltdown até sua morte em 1944.

Um grande embate entre cientistas prosseguiu nos anos seguintes à descoberta, mas a maioria dos especialistas percebeu que o achado se tratava de um engano, ou pior… uma fraude!

Após anos no esquecimento, o homem de Piltdown foi redescoberto em 1953, quando três famosos cientistas, Kenneth Page Oakley (1911-1981), Wilfrid Edward Le Gros Clark (1895 – 1971) e Joseph Weiner (1915-1982) conduziram uma minuciosa análise e revelaram a verdade por trás do caso. Utilizando um microscópio potente, eles observaram que os dentes molares foram limados para se parecerem com os humanos, e isso aconteceu após a morte do animal. Uma análise química mostrou que os ossos da mandíbula foram tingidos para parecerem mais antigos. Já os fragmentos do crânio tinham uma coloração natural, que sugeria que eram mais antigos do que a mandíbula. E por fim, a pá de cal, a datação dos ossos, utilizando técnicas que medem a absorção e perda de flúor e nitrogênio, mostraram que os ossos do crânio tinham, no máximo, cerca de 50 mil anos, enquanto a mandíbula era provavelmente de um orangotango moderno. Absolutamente todas as peças recolhidas em Piltdown haviam sido forjadas, inclusive uma grande ferramenta em forma de bastão, feita de osso de um tipo de elefante já extinto, que havia sido talhado com uma faca de metal.

O farsante

A pergunta cabal, porém, era sobre: quem eram os responsáveis pela farsa. Em 2016, cientistas britânicos publicaram uma nova análise das manipulações feitas nas amostras, utilizando técnicas como tomografia computadorizada e espectrometria. A conclusão foi que o perpetrador da farsa teria sido o próprio Dawson. Para piorar, com o passar dos anos, outras fraudes cometidas por ele foram descobertas. 

Charles Dawson entrou para a história da ciência, não da forma que sonhava, mas, sim, como um alerta contra abusos e má conduta. Nos resta o alento de que, assim como a justiça, os mecanismos de autocorreção da ciência tardam, mas não falham. 

Charles Dawson entrou para a história da ciência, não da forma que sonhava, mas, sim, como um alerta contra abusos e má conduta

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