Não é raro que materiais didáticos de história reservem às mulheres um papel secundário. A atuação feminina, muitas vezes, é relegada a apêndices da narrativa hegemônica, que dá protagonismo aos homens e suas ações, que, supostamente, seriam determinantes para o curso dos eventos históricos. Na tentativa de romper e complexificar tal estrutura – já muito questionada em meios acadêmicos – desenvolvi durante o mestrado o material “Caetana em quadrinhos”, livre adaptação no formato de narrativa gráfica sequencial (HQ) da obra historiográfica “Caetana diz não: história de mulheres da sociedade escravista”, da historiadora Sandra Lauderdale Graham, publicada em 2002. Ao longo da pesquisa, além da concepção e execução da HQ, propus reflexões sobre as possibilidades do uso pedagógico de quadrinhos no ensino de história, abordando questões de gênero e cultura escravista no Brasil Império.
Fazer com que a história não pareça, aos olhos dos estudantes, um amontoado de datas com pouco sentido ou impacto real em suas trajetórias pessoais é um desafio constante na prática docente. Não são poucas as vezes em que nós, professores, nos questionamos sobre como contornar a impessoalidade e o distanciamento presente nas aulas e nos materiais didáticos, sem que isso resulte num teor excessivamente anedótico ou num esvaziamento do pensamento crítico.
Diante disso, é notório o crescente interesse de professores em outras linguagens que contribuam na construção do conhecimento histórico em sala de aula: filmes, quadrinhos, recursos multimídia e interativos, dentre outros. A ascensão de tal campo de interesse é sugestiva da demanda escolar por recursos complementares aos métodos tradicionais, como o livro didático e a aula expositiva. Esses meios alternativos colocam novas possibilidades em relação à apropriação de diferentes linguagens da cultura contemporânea enquanto portadora de concepções de história.
Em minha trajetória como professora de história do ensino básico, vislumbrei o universo dos quadrinhos como um caminho possível e promissor diante dessas inquietações. Em especial, destaco a leitura de “Maus”, do sueco Art Spiegelman, como decisiva para meu engajamento na criação de Caetana. A obra evidenciou para mim que os quadrinhos têm um potencial altamente mobilizador, porque podem, com a sensibilidade do desenho e a força da palavra, comover. E, não obstante, os quadrinhos também podem tratar de valores humanos essenciais, criando pontes com o conhecimento histórico de uma forma que não pode ser reproduzida num simples esquema de lousa.
Em meados do século 19, em uma fazenda de café localizada no Vale do Paraíba, Caetana, uma jovem escravizada, recusou de forma enfática o casamento imposto por seu proprietário. Embora o casamento tenha sido realizado pela Igreja, ela afirmava ter “repugnância pelo matrimônio” e jamais permitiu sua consumação por Custódio, um homem também escravizado. Diante da obstinada recusa, Tolosa, proprietário do casal, iniciou uma interferência pela anulação do matrimônio. O caso, bastante curioso e um tanto improvável, foi magistralmente apresentado e analisado pela historiadora Sandra Lauderdale Graham em “Caetana diz não – Histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira”.
Diante do papel secundário relegado às figuras femininas em materiais didáticos, a fascinante trajetória de Caetana pode instigar o debate, em sala de aula, sobre o protagonismo feminino e a história das mulheres. Além disso, Caetana apresenta uma oportunidade de intersecção com as questões raciais, demonstrando a força da atuação de mulheres negras em suas próprias trajetórias e na história do Brasil. Busquei com a adaptação, portanto, desenvolver um material a partir da perspectiva de gênero e raça, capaz de contribuir na solidificação de valores antirracistas e de igualdade de gênero.
A adaptação da história de Caetano para quadrinhos inclui não só a HQ propriamente dita, mas também materiais de apoio para professores e estudantes. No conteúdo direcionado aos estudantes, apresento uma contextualização do local onde se passou a história de Caetana, com algumas informações complementares sobre a produção cafeeira. Há também uma síntese das informações que temos sobre cada um dos envolvidos na querela, abordando aspectos que não puderam ser contemplados ao longo do quadrinho. Em outra seção, os estudantes podem conhecer mais sobre os meandros de um tribunal eclesiástico oitocentista e, por fim, o último texto propõe uma reflexão sobre como a história foi escrita a partir de uma perspectiva exclusivamente masculina e caracterizada pela ausência das mulheres. Para encerrar, há uma seção voltada ao diálogo com colegas professores. Nele, compartilho sugestões de leituras e trechos da pesquisa sobre família escravizada e gênero realizadas ao longo do mestrado.
A minha adaptação para quadrinhos da obra de Graham não se propõe absoluta, embora refletida e verossimilhante. A partir da documentação apresentada pela autora, elaborei um roteiro que comportou espaço de ficcionalização dentro do campo possível e que foi construído no aporte bibliográfico da historiografia sobre o tema, documentação histórica e nas séries fotográficas produzidas no período.
Como questão central no processo de construção da protagonista, empenhei-me em não reproduzir ou endossar estereótipos recorrentes nas representações gráficas de mulheres negras. Tradicionalmente, estas aparecem de forma ora sexualizada, ora desumanizada, e muito raramente como protagonistas. Meu intuito foi me contrapor a personagens como menino Azeitona (revista “Tico-Tico”) e empregada doméstica Maria Fumaça (da revista “Cirandinha”), ambos de Luiz Sá (1907-1979), populares no Brasil nos anos 1950, ou ainda ao polêmico Tintim no Congo, de Hergé (1907-1983), representações imagéticas racistas e que compõem um repertório coletivo persistente.
Nesse sentido, insiro o quadrinho de Caetana como uma possibilidade de construir outros referenciais sobre mulheres negras no espaço escolar. Anseio que essa narrativa possibilite deslocamentos em relação aos saberes tradicionalmente associados às mulheres escravizadas, marcados pela predominância exclusiva de elementos de sujeição e violência. Não se trata de relativizar a brutalidade inerente ao processo de escravização, mas de reconhecer a potencialidade transgressora e o protagonismo histórico dessas personagens.
Roberta Veloso
ProfHistória/Unicamp
Orientadora: Luana Saturnino Tvardovskas
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